12/03/2015

The girl next door

Seria eu, caso ainda fosse uma gárina-chával.

Os meus vizinhos oferecem-me coisas. Dão-se-me.
É o de baixo, com o bolo rei e o champanhe, na altura do Natal e do Ano Novo. Aparece-me à porta e, sob a forma de bolo e bebida, faz-me as festas.
É o da frente que, sob o pretexto de ter uma pequena horta não sei lá para aonde, traz-me hortícolas. Cá em casa, comem-se, amiúde, os tomates do Horácio. Ou a salada do Horácio.
É o do canto, que me traz fruta, já não sei a que pretexto, mas recebo-a na mesma, com um entusiasmo quase infantil, pois que, por muita fruta que me dêem, na minha casa ela voa a uma velocidade que mais parece um anjinho alado, e darem-me fruta significam menos carregos que eu faço, que isto, parecendo que não, farta-me de ser sempre o jerico daquela história, e os outros todos no papel do velho ou do rapaz. Cá no lar, é normal e frequente haver protestos porque alguém comeu a última banana do Paulo.
É uma das de cima, que me dá ovos e limões, do galinheiro da sogra, do limoeiro não sei de quem (da sogra também, se calhar). Parece que, de repente, toda a gente tem pomares e chiqueiros em Lisboa.
É o de lá de cima, do primeiro andar a contar do céu, o que mais perto está do Pai, que me quer oferecer um cão. Mas não é para comer. Acha ele que a minha casa ainda está pouco povoada, já nem digo de pessoas, que isso lhe parece irrelevante, mas, convenhamos, com duas gatas e dois passarinhos, meto aqui um cão, aonde? Vizinho, desiste do cão. Olha para mim e concentra-te nesta ideia: esta mulher merece que se lhe ofereçam coisas de comer. Vá, agora repete comigo. Comer, comer, comer.
É, desde há dois dias, a do lado, que veio bater-me à porta para me entregar uma lata de tinta, para eu pintar a porta da rua, diz ela que precisa e béu-béu-béu, eu delicada, que sim, que fique descansada, que vou pintá-la por fora e por dentro. Enquanto digo isto, faço aquela cara tão característica em mim, que é quando tenho tão boas não grandes intenções.


Agora tenho ali a tinta e não me apetece pintar a porta.
A vizinha passa pela minha porta seis, dez, mil vezes por dia. E nota que eu ainda não pintei a porta. Já a antevejo a tocar-me à campainha para me perguntar se a tinta estava estragada. E eu a responder-lhe, mentalmente, uma coisa qualquer, do estilo:


Na realidade, cortez e educadinha, hipócrita e socialmente formatada, como sou, recebo-os a todos assim,


e é por isto que todos me vêm cá dar os tomates, as bananas, os ovos, os limões, e a tinta para pintar a porta. E até os cães me largam, se eu deixar - só por eu ser assim.

10 comentários:

  1. Os limões, os tomates, os ovos... Claro que é de aceitar!

    Agora a tinta?! Olha lá, a mulher joga com o baralho todo?!

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    1. Eu aceito tudo. Até podem estar fora da validade, que eu uso tudo.

      Não joga, não. Tem a casa (tecto incluído) pintada de roxo.

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    2. Há doidos para tudo...

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  2. Anónimo13/3/15

    És um sonho de vizinha já percebi! :-P

    Beijos

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    1. Mas totalmente.
      Já os safei de cada situação, que quase todos me devem une petite délicatesse :P

      Beijos

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  3. Anónimo13/3/15

    pois eu , dos meus vizinhos recebo bom dia ou boa tarde conforme o andar em que vivem, pois também ouço uns grunhidos em jeito de saudação das adolescentes do 2º esquerdo. e barulho, das mesmas. os decibeis, para estes monstrinhos fizeram-se para praticar de forma ativa muito ativa. Daí que eu "coma" com algum desconforto provocado por vizinhança que dispensava. Quero crer que é Karma, tê-los ali desde há dois anos,

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    1. Eu tenho 35 vizinhos (35 casas com gente, dá cerca de 100 vizinhos, na verdade), em que os grunhidos são em bastante maior número do que os cumprimentos.
      Jamais incomodei quem quer que seja, nem com barulho, nem com roupa estendida com lixívia, nem com cinzeiros despejados ao vento, nem sequer com uma porta na cara. E não tenho o mesmo retorno.
      Mas a esquisita posso ser eu :)

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  4. Talvez a vizinha se venha oferecer para pintar ela a porta :)

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    1. Isso, eu aceitava :)
      Foi uma simpatia da parte dela, na verdade. Em tempos, também já me ofereci para lhe ficar com a filha, para ela ir ao ginásio. Isto parece uma aldeia :)

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