29/05/2020

Vistas largas

Hoje gostaria, se me derem licença, de debater aqui a fracturante questão da viseira. Note-se que não sou radicalmente contra nada dessas protecções anti-vírus, só tenho teorias muito íntimas acerca da sua eficácia. Também já fui anti-máscara - e ainda sou um pouco, por descrédito na maior parte dos modelos, materiais, tempo de uso, manuseamento e preservação entre utilizações, ambientes (todos) contaminados (não é por acaso que são máscaras cirúrgicas, feitas para o ambiente esterilizado de um bloco operatório), etecetera -, simplesmente uso-a porque a lei assim determina e quem sou eu para não ir à praia, pois se até o presidente e o PM já foram? Espero, portanto, ansiosamente, que a mesma lei não se lembre de tornar obrigatórias as viseiras. Tenho medo só da imagem mental.
A última vez que ouvi falar nelas, o esquema de utilização era este: só máscara, sim; máscara e viseira, sim; só viseira, não. Minha pobre e conturbada mente, tirou logo esta bonita conclusão: a viseira é só inútil. 
Bom, dir-me-ão, enfadados, que protege os olhos dos cuspigungos do povo. E só, respondo eu, enfática. Pois, se a viseira é aberta em cima, não protege dos raios e coriscos nem da profusão salivar alheia quando o portador da viseira se encontrar sentado, ou seja, de tudo o que caia de cima, cocós dos pombos incluídos. Mais vale um par de óculos como deve ser do que aquilo. 
A senhora que atende numa papelaria do meu raio pôs-se a produzir viseiras com folhas de acetato, e usa uma delas. Já esquecendo o nervoso miudinho que me provoca o abanicar constante das abas do papel plastificado, diz ela que é muito melhor (do que usar máscara), porque pode usar maquilhagem (que não usa), e não passar aquele calor que abafa a respiração quando usa máscara. Diz-me isto enquanto lhe observo gotículas de suor a brilhar no buço, enclausuradas atrás do plástico, felizmente, para mim, impossibilitadas de me acertar num olho. Ou assim.


28/05/2020

Ela fala tanto # 29

E sofre de sem-nocite. Ou eu sou excessivamente bem educada, o que pode igualmente constituir uma barreira à nossa comunicação. Dá-se que ela não reconhece uma indirecta, ou, quando acha que reconhece, ela sequer existiu enquanto tal.
Desbobinei, sabe-se lá a que propósito, o quanto me aborrecem as pessoas da minha idade: entre queixas, lamúrias, pequenas (enormes!) doenças, afecções, achaques e hipocondrias, não se inibem de fazer dos seus senãos tema de conversa, quer circunstancial, quer mesmo de encontros marcados a propósito de “nos encontrarmos”, “nos divertirmos”, “nos vermos, que há tanto tempo, e agora só em funerais, porque já ninguém casa nem baptiza os filhos”. Telefonemas, então, valha-nos o Senhor (Doutor): é de não atender, ou de atender já a gemer ou em prantos pela morte da bezerra, antes que nos suplantem ou suguem com as suas tragédias. Uma prosa que comece por “não sabes o que me aconteceu”, é mote para a fuga em frente, sem mais explicações. Quase todos estão estabelecidos na vida na pior acepção da expressão: não se mexem, não praticam actividade nenhuma, estão gordíssimos, mas depois também não bebem nem fumam. Imagino que até tenham máquinas melhores do que a minha, mas vivem obcecados com o colesterol, a ureia e os triglicéridos. Como se eu fosse médica! E ainda que fosse. Chatos.
Resposta dela a este sentido desabafo:
- As pessoas não vêem que são chatas? Eu, por exemplo, tenho imensas cãmbrias [ataque de pânico disfarçado de sorriso verde], estão constantemente a doer-me os braços e as pernas e não chateio ninguém [hiperventilação, preciso urgentemente de um saco de papel!]. Às vezes até se me prende uma perna quando vou a andar na rua, das cãmbrias [era eu ter uma arma de fogo em casa], acho eu que são cãmbrias [capaz de me enforcar], sei lá se são cãmbrias [ou de cortar os pulsos. Os dela]. Mas é uma dor que ninguém imagina! [A jugular dela será à direita ou à esquerda?].
...
...
Silêncio sepulcral. Eu flutuando para longe do alcance da vista e da voz dela. É que sofro dos nervos. E é por isso que venho para aqui relatar os meus dramas. Só lê quem quer. Adeus.


27/05/2020

Até as moscas me mudaram!

Rosinha, minha canoa, foi ao senhor doutor bate-chapas, espécie de pediatra onde deposito a confiança do saber que não domino, com vista à revisão dos não sei quantos quilómetros. Ia sujo e desleixado, vítima de um quase abandono de dar dó, por conta e (sem um único) risco de uma quarentena e anteriores meses de preguiça minha. Até uma teia de aranha - cuja autora há muito que emigrou para outras paragens, onde pudesse largar mais saliva e apanhar outros insectos - entre o vidro traseiro e o aileron, a minha pobre canoa azul já tinha. Debaixo do pedal do acelerador, jazia há semanas uma folha de Outono, sei lá se do já saudoso e inocente 2019. 
Bom. Vou atalhar nesta descrição, não vão vir vozes, daquelas que têm sempre o carrinho todo estupendaço, para aqui dizer que não se admite e que eu sou é suja.
Quando fui buscar Rosinha, todo ele luzia à sombra da oficina, de banhinho tomado e cara lavada. Aspirado por dentro, um cheirinho a desodorizante de dar gosto, parecia uma menina da vida. Porém, pá, a minha vida nunca pode ser perfeita. Foi entrar no bote e aperceber-me de uma mosca. Duas moscas. Três moscas. Um enxame. Já iniciara a marcha e já me encontrava a rolar na estrada. Eu e as moscas, à boleia de Rosinha como aqueles parasitas no lombo dos hipopótamos. Abri uma janela, depois outra, e consegui expulsar, a golpes de pano do pó, algumas delas. Mas zzz, duas mais persistentes. Determinadas a viver comigo, no meu carro, qual roulote pelos litorais, surfando e rindo para a vida, segundo me pareceu. Transportei as duas até casa, e sei isto, pois mais tarde, quando voltei a sair, ainda me zumbiam aos ouvidos e me atacavam olhos, nariz e boca, à vez. Uma delas só saiu cerca de oito quilómetros depois. A outra, já só consegui expulsá-la junto ao rio. Estimo que façam amigas novas. Eu não posso tudo e já fiz a minha parte na pegada ecológica em só as ter sacudido com o meu paninho cor-de-rosa, ou seja, em tê-las apeado (ou esvoado) borda-fora sem um arranhão ou amolgadela (mesmo no ego), devolvendo-lhes a liberdade para irem pousar em paz nos milhares de cocós canídeos que por aí há à discrição em todo o lado, mas não em Rosinha. Convenhamos.


25/05/2020

And that awkward moment # 58

em que estás no teu médico, de máscara numa extremidade e de sobre-sapatos nas outras duas (do que ele já te avisara previamente) (só falta mandarem-nos pôr a touca, hipótese na qual nunca mais me apanham na rua), e a mulher dele, que é simultaneamente a sua assistente de consultório, te comunica que usa um truque para que a sua máscara seja “mais eficaz e mais segura”, tanto que “até dura mais tempo”. Antes mesmo que possas perguntar qual é ele (um nico a medo, pois esta pessoa é a mesma que faz fé em cartomantes, videntes, cartas astrais, crianças cristal e um sem-número de esoterismos que escapam com grande ligeireza ao teu entendimento), esclarece-te ela: 
- Uso um salva-slip.
E logo confirma a sua certeza absoluta, assentindo a si mesma num meneio de cabeça:
- Ah, pois é.
Quando equacionas ter percebido mal [Será o Inglês dela que é parco, seria “sleep” ou outra coisa qualquer dessas que se mandam vir pela nettinha?], eis que ela baixa a máscara para te mostrar, e lá estava o penso higiénico diário, muito bem colado à dita, levemente sujo do bâton carmim do qual ela não prescinde, conforme se compreenderá (ou não). 
Foi nesse momento que percebi a verdadeira vantagem da minha própria máscara (sem penso diário): a oportunidade para gargalhar, embora de forma insonora, é certo, apenas recorrendo a um método já há muito praticado, que é o dos dentes cerrados, e que muitos dissabores me poupou nas aulas do liceu.
Pode ter sido por isso que, desde aí, adoptei inadvertidamente uma alcunha/ eufemismo para a máscara. Foi após aquele episódio, no médico, que dei por mim a dizer em público, à porta de um local onde todos temos que a usar, “Deixa-me cá vestir as cuecas”. 
A loucura é contagiosa.


23/05/2020

Too much information

Quis a escrevedora destas notáveis linhas adquirir uma pequena peça de mobiliário, tralha sem importância, ao ponto de ter ido bater com os ossos no site do OLX, uma vez que o sueco do papel prensado continua de portas encerradas, com entregas previstas para 16 de Junho e ou todos os artigos indisponíveis por defeito (o que parece uma redundância, face à qualidade). 
Conversa travada com o vendedor, entrega acertada para hoje, numa hora e esquema que variariam consoante ele viesse da margem sul - local onde se encontra a dita peça -, antes de almoço, e tivesse que ir directamente para casa a correr porque a mulher estava à espera dele com o almoço pronto, hipótese na qual seria eu a ir buscá-la lá onde o diabo perdeu as botas e ele habita, ou depois de almoço, em que ele já viria muito mais descansado e podia trazer-ma à porta.
Ligou-me há pouco.
- Dona Maria, é o José. É só para dizer que surgiu aqui uma situação, é que acabei de descobrir que a minha mãe é diabética. Fiz-lhe aquele teste e pumba, 270. Eu já andava desconfiado, e pronto, confirma-se. Eu também sou diabético, e o meu pai também. É que os meus pais são primos. Agora estou à espera do telefonema da médica, para ela me receitar uma data de medicamentos para a minha mãe e eu ir à farmácia aviá-los. Isto para lhe dizer que hoje já não vou para a outra margem [a minha, portanto, a margem norte], só vou amanhã. Levo-lhe aquilo à porta se vir que ainda passo por Lisboa a horas decentes. Se não, na segunda-feira dou uma fugazinha - é que eu estou em teletrabalho, mas posso fugir um bocadinho, também é rápido - e entrego-lhe nessa altura, sem problema.


21/05/2020

Ela fala tanto # 28

E, de repente, chega o dia em que usa metáforas e eu sou tão apanhada de surpresa que protagonizo um momentinho louro digno de registo aqui no coiso, ou de Oscar. 
Falava-me de uma das irmãs, a que tem menos vergonha na cara, a que trilhou caminhos mais sinuosos, mas também a mais magra, a única das quatro que é magra, e isso constitui um crime de lesa majestade, quanto mais de Senhora Dona Madame. 
- Ela tem lá aquele brilhantinho na testa que dá aquela luz e quando os homens vêem aquilo, parece que ficam doidos.
Aqui a jerica pousou o trabalho que tinha em mãos em seu generoso - porque atura estas  coisas - regaço, exalou um profundo, porém imperceptível suspiro, e questionou:
- Um brilhante na testa? Nunca vi... Já vi pearcings em sítios esquisitos, mas na testa...
Deu-se então o momento crucial desta brilhante! narrativa, que foi aquele em que, enfaticamente, suspirou ela (terá revirado os olhos? Terá um blog em que descreve este mesmo momento sob o título “Ela não pesca nada”? Nunca saberemos), e esclareceu: 
- É uma maneira de falar. 
Como quem diz: “É uma metáfora, duh”.




20/05/2020

História sangrenta

Era uma vez eu, que fiz um pequeno golpe na articulação do polegar direito, isto já ontem, ao manusear uma lata de salsichas. (As aberturas fáceis são, para mim, todo um mistério da mecânica que eu não deslindo.) Aquilo sangrou a jorros, como se não houvesse amanhã (hoje). Mas houve, e hoje, sentindo-me já recuperada do golpe, retirei o penso rápido rapidamente e fui para o correio em missão: a de enviar uma missiva. Estou na fila, já com a máscara no respiradouro, quatro almas despenadas à minha frente, dou um toque no envelope e assisto, com horror - mais derivados da inoportunidade da coisa do que da imagem (é que eu sou dessas valentes que não tem fobia a sangue, há mesmo quem não aguente ver a palavra sangue escrita) -, que me desato ali a exanguir, sem um penso à mão, sem um lenço, um guardanapo, nada. Vá que não caguei o envelope. Contudo, aquilo não parava de golfar e estava quase a chegar a minha vez. Lembrei-me então de fazer o que fazia aos meus filhos quando se magoavam na rua: lamber a ferida. Levei o quase coto dedo com dói-dói à boca, esquecida, porém, de que tinha a máscara posta, pelo que a ensanguentei no mesmo momento. Retirei-a, suguei a sanguinária, recoloquei-a e verifiquei que, com os nervos, continuava a deslargar fluido. Achei boa ideia, então, deitar-lhe uma gota de álcool-gel e envolver o braço todo dedo no único papel possível que encontrei na mala: uma conta do Continente já um bocado amachucada, só que em tempo de guerra e toca a andar, até tive o cuidado de pôr as letras para fora, não fora a tinta entrar-me na corrente sanguínea e ainda me finar de uma afecção estranha que nem os médicos atinassem com o meu mal e ainda me mandassem para as estatísticas do vírus. E foi assim que entrei no correio, o papel das compras todo ensopado e eu muito convicta: “É correio normal, e também um penso rápido. Já agora, também uma máscara, que esta já não presta e eu não vou daqui para casa”. A senhora estava tão lívida (se calhar sofre de hematofobia), que, quando saí, já com o penso e dez máscaras novinhas em folha e lhe agradeci, respondeu: “Obrigada eu”. Deve ter desmaiado a seguir, mas isso eu já não vi.


19/05/2020

Dica # 12

Estou exangue.
Sempre ouvi dizer que as cozinheiras não dão uma receita completa/ correcta. Está visto que não sou cozinheira, porque as dou tal e qual e ainda ensino truques de magia. Senão, vejamos adiante.
Não sei como é que vocês fazem a mousse de manga, mas eu fazia até há dias da forma ensinada por uma cozinheira profissional: uma lata de polpa de manga (das pequenas), uma lata de leite condensado, um pacote de natas e uma folha de gelatina. Até parece que ainda estou a ver-lhe a cara estanhada quando disse "gelatina". Seguiu-se o profícuo diálogo, "Gelatina?". "Gelatina". E foram anos disto, uma briga com a gelatina em placas, coisa ou impossível de desfazer (tentei tudo, desde a água quente - em que ela se desfazia mesmo, mas depois via-me e desejava-me para perceber o que é que era água e o que é que era gelatina, liquidificando-me a mousse toda -, até ao martelo-pilão - hah, estou a gozar), outra briga com a gelatina em pó, que eu deitava lá para a mistela e não acontecia nada, mas é que nada, mais ou menos como se pusesse pó dos móveis na receita. Por conta da teimosia nas placas de gelatina, foram anos e hordas de gente a apreciar assaz a minha mousse de manga, porém a encontrar pedaços de cartilagem lá pelo meio, mais ou menos como acontece quando degustamos uma boa orelha de porco temperada de azeite, cebola, alho e coentros (ai, que eu não como carne). Inês, a cozinheira protagonista desta bela prosa, também não me disse que as natas deviam ser batidas em chantilly, mas a essa conclusão cheguei na primeira abordagem à mousse, por uma questão de instinto. Instinto esse, que não me valeu de nada relativamente à gelatina.
[As natas têm que ser frescas, tipo “Longa Vida”*. Quaisquer outras, ainda que diga na embalagem “natas para bater”, permanecem eternamente qual copo de leite, fora a espirradeira com que nos brindam, a nós e à casa toda.) (A sério que tenho uma amiga que conseguiu atingir o tecto da cozinha com umas natas dessas que não saem jamais do estado líquido.) Caso tenham alguma dificuldade - difícil, mas possível - em espessar as natas, mandem-lhe com uma pitada de sal grosso. Ou chantifix.]
Entretanto, deu-se que estava no lar, tinha todos os ingredientes para a mousse menos a p. da gelatina, e então olhem, fi-la assim mesmo. Tipo aquelas máquinas que funcionam maravilhosamente com uma peça a menos. E a mousse saiu excelente, cremosa e espessa, parece mesmo espuma de barbear, mas em amarelinho.
Isto, de duas, uma: ou a criatura é exímia na arte de desfazer gelatina e deu-me a receita certa, ou eu sou muito crédula e a luminária só me chega vários anos depois de me fazerem a velhacaria.

* NMPPI


14/05/2020

Não há flores no meu caminho. Mas há máscaras

Queria que alguém me explicasse - mas bem explicado - ou então como se eu fosse muito burra, que é como fico só de olhar - este novo fenómeno da Natureza-mãe, ou alienígena, ou de uma paranormalidade que não domino: já não bastava o que bastava com o coiso, para ainda nos ser fornecida, a cada cinquenta metros de percurso pedonal, a imagem de uma máscara cirúrgica arremessada ao vento/ ao chão, conspurcando-nos as vistas, o passeio, o canteiro, a zona verde, como se se tratasse de material biodegradável, como se a calçada o fosse absorver ou a terra aproveitar. Ainda não percebi como é que vão parar tantas máscaras ao solo, a menos que chovam. Ou que sejam lançadas por extraterrestres, das suas navezinhas, quando estamos todos a dormir ou distraídos, que é para aí noventa por cento do tempo útil que passamos na Terra. É que não estou a ver que alguém, intencionalmente, o faça. Com que finalidade o faria? Para que brotassem mais, tipo plantio? Não creio. O que é certo é que não as encontro apenas em espaços verdes, e sim também nos brancos, pretos, até nas ciclovias (que têm uma cor que não sei definir, mas também não interessa aqui para o caso). De resto, nem ponho a hipótese, por mais remota que seja, de que tal acção tenha mão humana. Então, se são os também humanos que fazem a limpeza das ruas, e aquilo é material contaminado, tipo lixo hospitalar, que pode mesmo transmitir doenças - não apenas essa de que tanto se fala ultimamente - a quem se veja obrigado a tocar naquela porcaria mesmo que de luvas calçadas, é óbvio que um humano não faria tal coisa a outro humano. Seria mais ou menos o mesmo que admitirmos que alguém deitasse os seus pensos higiénicos usados ou as suas cuecas borradas para o passeio. Ora, isto não cabe na cabeça de ninguém, até porque é proibido. Assim como é proibido largar cuspo / chichi/ cagalhões do cão/ lixo em geral na via pública. Dá direito a multa, apesar de muitos senhores agentes da autoridade desconhecerem / ignorarem esta realidade. 
Portanto, ponto assente é que não existe mão do Homem no fenómeno. Tiro esta conclusão, basicamente, porque nunca vi ninguém arrancar a máscara da venta e aventá-la ao chão ou ao vento, conforme o estado metereológico do momento. E, se eu nunca vi, é porque não acontece. Porém, continuo sem perceber o porquê de. Prefiro acreditar que chovem (em substituição das picaretas, dos canivetes, ou dos gatos e cães dos ingleses), ou que nos são amandadas por ETs. Com que intenção, desconheço. Vai-se a ver e são uma dádiva e estão limpinhas. Devem é cheirar a leitão.


08/05/2020

Filas

Então, a pessoa vai ao correio enviar um envelope, correio normal, simplezinho, "são três dias úteis, a senhora não se importa?", e a senhora, efectivamente, não se importa. O que são três dias úteis na contagem infinita dos dias inúteis que antecedem?
A fila do costume, dez pessoas à frente, logo mais uma ou duas atrás. Só parece maior porque estamos distantes uns dos outros aquele mínimo de um metro. 
Os funcionários da Junta aparecem munidos da máquina que parece um aspirador, mas que é, na realidade, um expirador. Um traz óculos de protecção e máscara, o outro - todo afoito, todo ele ordens -, nada. Este último grita para a fila que nos afastemos do passeio, pois ele vai soprar aquela porcaria toda. Assim fazemos, incrédulos, mas conformados, arredando-nos para a estrada (mais vale morrermos atropelados do que asfixiados e sujos com pó de plátano, são opções), e a distância de segurança dilui-se no sopro lá da máquina do general jardineiro. Ficamos mais vulneráveis, mas também - e, se calhar, por isso mesmo -, mais solidários, e entabulamos conversa de circunstância. A mim calha-me uma senhora de idade, que está tranquila e bem disposta, como eu quero ser daqui a alguns anos. Diz-me, a certa altura, que tem um cancro maligno, mas que espera a vez dela sem pressas, e aquilo parece-me uma metáfora. Atrás dela, um velhote baixa a máscara para dar uma boa tossidela, toda ela excrementos retidos nos brônquios. Afasto-me o mais que o pouco espaço me permite, e sossego-me, pensando egoistamente que o risco maior não é meu. Ao longe, vislumbro a loja do chinês, já aberta, com duas pessoas à porta, à espera de serem atendidas. A fila avança lentamente, até que chega a minha vez. Pergunto à funcionária que me atende por que é que não aumentam o contingente, visto terem quatro balcões e só funcionarem dois. Ela dá-me uma resposta que não entendo, mas percebo, mais uma vez, que antes de tudo isto praticava sem saber a leitura labial. A máscara dos outros faz-me surda, e também um pouco muda, porque ninguém percebe nada do que eu digo. 
Saio, digo à minha companheira de espera que pode entrar, e ainda desabafo: "Quase uma hora de fila para estar lá dentro um minuto, parecem as minhas consultas no médico". Os velhotes riem e eu ganho o dia.


05/05/2020

Coisas que o vírus maléfico me ensinou até agora [actualização #4]

21. No primeiro dia de gradual desconfinamento soltou-se-me ainda mais a língua. Ali no espaço de duas horas, arrumei três pessoas, que acredito ainda estarem a remoer raivas contra mim neste momento. Senhora Dona Madame pegou ao serviço e vinha descansada e fresca, com as nuancezinhas em dia, após quarenta e cinco dias de pausa laboral. Havia discutido as férias via telefone, "Eu só não vou trabalhar porque vocês [rolling eyes, minhas avós não sobreviveriam a isto] não querem", de modo que levou uma sabatina daquelas que eu, mole, em vinte e dois anos, lhe dei o quê? Vá, umas cinco, talvez a contar com esta. Retirei-lhe as férias de Junho (pelos Santos, não há pachorra) e deixei as de Agosto em suspenso (ou suspense, como diriam os estrangeiros). É quer, quer, não quer, conhece bem o caminho da porta. Pá, e não me forniquem com a merda dos direitos, que eu é que sei da minha barraca; Depois fui ao correio e predispus-me a enfrentar uma bicha de uma hora. Estava a mandar mensagens pelo meu telemóvel e tenho atrás uma tipa, não sei se a ler o que eu escrevia, se só a querer levar na corneta. Quando lhe disse: "Temos que manter a distância de segurança", não é que a flor amuou? Pôs-se a três metros, aleluia, croma; Ao cabo daquele tempo todo de espera, já sem posição para estar de pé e quando era eu a próxima a ser atendida, vem de lá uma asinha e coloca-se ao meu lado, "A senhora desculpe eu estar aqui, mas é que sou prioritária e vou entrar a seguir". Bom, o fdp do karma anda a tourear-me. "À minha frente, não entra de certeza. Não quero saber qual é a sua prioridade, mas, se insistir nesse argumento, chame a Polícia, que eu explico aos polícias por que é que não a deixo entrar. Prioritários somos todos, estamos todos em risco, portanto, por mim, pode ir para o fim da fila, ficar aqui à espera que alguém a deixe passar, ou ir sei lá para onde". E pronto, entrei a minha vez, e nenhum polícia veio atrás de mim;
22. A Natureza segue o seu incondicional curso, indiferente às transmutações provocadas e sofridas pelo Homem. Num dia faz calor de Verão, no dia seguinte uma ventania ciclónica. É para ver se percebemos que há elementos que não dominamos, por mais asneiras e remendos que façamos;
23. Não gosto deste novo léxico, e espero esquecê-lo e deixar de o usar o mais rapidamente possível: vírus, pandemia, cuidados intensivos, ventilador, máscara cirúrgica, viseira, luvas, contaminação, quarentena, confinamento, contingência, e isto só para começar. Que falta de assunto por que todos fomos contaminados;
24. Com algumas variações, os gatos não apreciam a companhia dos humanos 24/24. Na verdade, são eles os donos das casas, onde permitem que as suas pessoas também vivam. Nos primeiros dias de quarentena, a minha gata andava ansiosa, inquieta, incapaz de fazer aquelas sestas que são a nossa inveja. E, como qualquer gato, tem uma muito peculiar forma de impedir o trabalho a partir de casa. Quem tem gatos e usa computador sabe do que falo (às vezes até acho que não só o formato, mas também o estímulo que provoca nos gatos é responsável pela designação do rato, hardware);
25. Não sei se actualizarei mais esta coisa dos ensinamentos que o vírus me trouxe. Vinte e cinco está de bom tamanho. Faço algum sacrifício, no sentido em que tenho que retirar um bocado da minha vida, em vir aqui. O blog não me faz falta. A blogosfera também não, salvo uma mão mal cheia de blogs que ainda leio. E ela vai continuar, mesmo sem ele/ mim. Provavelmente, como o vírus.


02/05/2020

Coisas que o vírus maléfico me ensinou até agora [actualização #3]

(Escrevo-vos enquanto pinto as unhas dos pés. Não exactamente ao mesmo tempo, porque só tenho duas mãos para repartir entre o teclado e o verniz, apesar de os pés também serem dois. Já pus o primário. Parece que amanhã fará um tempo veranil, e quero estar condicente.)

16. Diz que o fumo do tabaco afasta o vírus. Eu até acho que afasta tudo, incluindo melgas, piolhos, carraças e outros parasitas indesejados. Mas dá-se que não consigo fazer um axioma com esta suposta presunta verdade. Assumamos que o vírus é A, o pulmão humano é B e o tabaco é C. Então, A ataca B; C defende B de A; mas se é sabido que C também ataca B, temos A e C a atacar B, e, no entanto, C a atacar também A; C protege então B de A, atacando-o; porém, não protege A de B. 
[Pausa para a primeira demão.] [E para respirar.]
Moral da história: os pulmões lixam-se sempre. Há que optar pela forma como;
17. A pessoa que fica atrás de mim nas filas jamais respeita a distância de segurança mínima de um metro. Mesmo quando a que está à minha frente avança um nico, e eu aproveito para criar aquele metro entre a de trás e eu, lá vem ela, quase a esfregar-se em mim. Note to self: mandar vir da internetinha uma essência de catinga a feder para passar em meu cangote antes de me entrosar na bicha;
18. Depois das cabras no Reino Unido, dos javalis em Barcelona, dos búfalos em Nova Deli, e por aí afora, apareceram passarinhos novos no meu bairro durante o confinamento. Já tínhamos pombos (poucos, mas sim), gaivotas, pardais, melros, papagaios, poupas, arvelas, lá de onde em onde um falcão, agora apareceram por aqui rabirruivos-pretos. Parecem pardais, mas têm uma cauda maior, castanha, com a qual batem castanholas. Isto só pode significar que os animais não gostam de pessoas e de carros. Porque se assustam, é certo, mas não há forma eufemística de dizer isto, é não gostar, é viver mal com, é viver melhor sem. Dá que pensar sobre o que é que estamos a fazer com o planeta onde vivemos;
[Pausa para a segunda demão.] [E para pensar.]
19. Isto está a ser uma poupança em champô e em tinta para o cabelo: não o sujo tanto, não o lavo tantas vezes, não precisa de ser pintado com a mesma frequência porque debota menos;
20. O foco dos confinados não devia ser, ao invés de emagrecer - que é só estúpido, se a pessoa está trancada em casa, idealmente a maior parte do dia (e, a menos que tenha um jardim a perder de vista ou viva num monte alentejano, ou ainda numa ilha deserta, não tem espaço/ oportunidade/ vontade de se pôr feita estúpida a emagrecer, isto se não estiver com uma daquelas abençoadas neuras/ dores de corno que suprimem o apetite, só a mim nunca me calha uma dessas) -, dizia eu, ao invés de emagrecer, apenas não engordar? O meu foi um bocado esse, e já falo no passado porque amanhã já era: não pus um grama, ou, como diria o povo, "uma grama". O que é que ajudou? Vá, eu conto: umas aulas de dança online com muito pouca convicção, um mínimo de uma vez por semana uma corridinha, e jamais - repito -, jamais, alapar o codril no sofá. Muito estendal, muito ferro, muito esfregão, muito fogão. Livros lidos esta quarentena: zero. Isso engorda que se farta. Sim, mesmo os de receitas light e cenas.

[Top coat gel effect e é deixar secar. Amanhã meto as unhas de fora.]