31/01/2022

Corrompi uma autoridade policial

Fomos ao Bryan, minha Natércia, cônjuge e eu.

(No fundo, este post destinava-se, praticamente em exclusivo, a dizer isto: fui ver o concerto do Bryan Adamzinho, coisa mais boa, que com seis décadas em cima do lombo, continua invulgar. Cantou todas as que a menina pediu, inclusive Straight from the heart, quando disse que ia entoar o que o público pedisse, o público era aquela plateia em pé que vai para lá de véspera e parece que houve uma Estefânia — quem porras se chama Estefânia, a não ser o Hospital Dona, a respectiva rainha que nunca pinou e a outra avariada da marmita lá do principado? — que pediu Please, forgive me (podia ser mesmo um pedido, que Bryan percebeu mal), e ele lá vai disto, It still feels like our first night together, mas dei comigo a berrar Straight from the heart, o artista a cerca de cem metros de onde me encontrava, em diagonal superior, dizem que vozes de burro não chegam ao céu, mas olhem, vozes da lasca chegam lá abaixo ao palco do Arena, sei que ele, minutos mais tarde, era todo I could start dreaming but it never ends, não que seja a minha preferida, mas faz parte do núcleo duro do programa de Adams, e esse é para se cumprir.)

À entrada, verificação uma a uma da existência de certificados/ testes, comparados com a respectiva identificação, tudo isto a vinte mil almas, imaginem o tamanho do staff. Eram bués, grande parte deles polícias da segurança pública. A mim, calhou-me um que tinha um contentor do lixo ao lado, comecei logo a ver a minha garrafinha de água ir com os porcos, mas vai ele e diz: “Pode levar a garrafa, mas tem que deixar a tampa”, eu: “Tudo menos a tampa, ai por Cristo, a tampa é para a cadeirinha de rodas”. Até retirei uma outra do bolso, para lhe mostrar, “Está a ver? Faço colecção, para a cadeirinha…”, porque para tonta só me falta mesmo um niquinho, então se não podia ter deixado a tampa quieta no bolso, para tapar a garrafa lá dentro? Ele, talvez sofredor do mesmo mal e no mesmo grau, respondeu: “Podíamos juntar tantas tampinhas nestas noites, é uma dó, vai tudo para o lixo”. Depois os olhos dele, que eram azuis como o mar à noite, riram assim já corruptos, e disseram pela boca: “Leve lá as tampas, essas eu não vi passar”.

23/01/2022

Braços de anjo

Já durmo, por isso devo estar a sonhar, quando à noite vem um anjo arrumar o que deixei à solta da minha vida terrestre: tira-me os óculos, põe no lugar os comandos da televisão que não vi, e então dá-me um abraço inteiro, em que me toma nos braços que tomei eu desde o primeiro dia para o alimentar de mim, segurando-me a cabeça com uma das mãos, pouco lhe importando a falta do cabelo, que eu lhe escondo numa touca, por vergonha e amor, e que ele ignora, por sabedoria e amor.


19/01/2022

Um dia virá a aceitação

Pode ser raiva, sim. Contra coisa nenhuma, muito menos contra alguém, não tenho o desejo de trocar com outra pessoa que eu considere mais “merecedora”, tudo aquilo por que estou a passar, já nem é um “por que não eu?”, nunca foi um “porquê eu?”, é todo um “porquê nós?” em tantos momentos como aquele.

Éramos só três a fazer tratamento naquele dia, todas mulheres, duas senhoras de idade e eu. Fui relativamente espampanante, vestido bonito, botas com salto, já bem nos bastam as tristezas. As duas que ali coincidiram comigo, calças neutras, confortáveis e macias, sapatos ortopédicos, blusinhas sem viço nem vida. 

A auxiliar perguntou a cada uma o que queria para o lanche, à senhora que estava ao meu lado ouvi dizer “Uma bolachinha”, a rapariga respondeu que trazia um pacotinho de bolachas, “Mas eu só quero uma bolachinha”, só que os pacotes trazem quatro ou cinco, “Eu trago à senhora o pacotinho e a senhora come só o que tiver vontade”. Eu pedi um croissant com queijo e manteiga e um galão com descafeinado, mania que nasceu para princesa.

O lanche demorou tanto para lá do normal, que o meu tratamento acabou e ainda esperei uns minutos, primeiro inquirindo, depois protestando, finalmente levantando-me, malinha ao ombro, vestido e minha Natércia esvoaçantes pela sala, “Hoje não lancho aqui. Imaginem o que seria, quando os meus filhos eram pequenos, na época em que tinha dois no jardim de infância e duas na primária, se eu levasse este tempo todo a preparar quatro lanches. As crianças lanchavam à hora de jantar. Repare que somos só três e a senhora que está ao meu lado pediu uma bolachinha. Quanto tempo leva a preparar uma bolachinha?”. As duas serenas, desistidas, nem um ai, a bruta a fazer um pandemónio por um croissant, a raiva a subir, tanta injustiça, senhores, eram duas velhinhas, que só por esse motivo arrastavam os pés a andar, por que é que o dedo aleatório pousou nelas, se já não lhes chegava o resto?

Porquê nós? Não é “por que não outros?”, é “porquê nós?”. Porquê elas? Ou só: porquê?


16/01/2022

Não sei se é raiva

Diz que passamos por algumas fases nos acontecimentos dramáticos da vida, que primeiro vem a negação, depois de umas quantas a raiva, olhem, modestamente acrescento a surpresa como podendo ser a primeira, mas saltei todas como num jogo da macaca e fui directa à da aceitação. Havia um instinto que me dizia “Vai ver”, e não era um caroço, não era uma mancha, nada, a não ser “Vai”, um covid demasiado prolongado, excessivas “interdecorrências” em duas semanas de hospital, “Vai ver, começa por algum lado, vê as mamas”, bingo. Não entrei em negação, sou demasiado mole e conformada para considerar a clássica “Porquê eu?”, quando “Por que não eu?” me responde muito mais vezes à pergunta “Que mal fiz eu a alguém/ Deus?”, sei lá, fiz mal, com certeza, ou então isto é tudo uma lotaria ao contrário, saiu-me a sorte pequena, ou pode ser a paga por tantas vezes ter dado à luz o número premiado. São matemáticas e tentativas de lógicas que não vou fazer, servem apenas para encher verbo aqui e na minha cabeça praticamente oca, que, no momento, apenas quer ocupar-se com Natércia, a cabeleira, nanoblanding de sobrancelhas, vernizes compatíveis com tratamentos de quimioterapia. E ainda temos por resolver o problema das pestanas, que passará certamente por muita cola, muitos nervos, muitas lágrimas, mas todas de frustração e intolerância dérmica.

Diz-me uma companheira de danças que passa pelo mesmo processo, embora mais adiantada nos tratamentos,  que só devo fazer aquilo que o corpo me pede. O corpo, do qual me parece que a cabeça faz parte, pede-me que vá correr. (Por favor, por-fa-vor, ninguém mais me sugira caminhadas. Por piedade.) Ou que vá dançar. Porém, no momento em que até, o mesmo corpo pede-me encosto e molenguice. E faço a vontade ao caprichoso.

Estou só a começar a intolerar os que alardeiam que têm saúde para dar e vender. Não querendo ser, mas já sendo um velho do Restelo, tenho a declarar ao Mundo que as minhas análises clínicas, um mês antes do diagnóstico, eram as de um atleta (com mais de cinquenta anos, mas, ainda assim). “Marcadores tumorais: negativo”. E que corri dez quilómetros três dias antes de sair o resultado da biópsia. Pelos cálculos de quem sabe dessas coisas, já eu passeava — e corria e dançava com — um cancro junto ao coração há seis meses. Também tinha saúde para dar e vender. Como não me lembro de a ter vendido a alguém (a conta bancária não mente como as análises), devo tê-la dado, sei lá se a quem nem sequer a merecia, e agora se arroga dela.




11/01/2022

A nossa Natércia

Tenho uma comadre que só não é minha irmã porque não nasceu de obra de nenhum dos meus pais. Todos os dias, sem excepção, liga ou manda mensagens, a saber de mim. (Em contrapartida, tenho uma outra que me manda mensagem à segunda-feira a desejar boa semana.)

A minha comadre Madalena — que não podia ter um nome e um coração mais bonitos — baptizou a minha cabeleira (cansei de chamar peruca ao meu novo cabelo) de Natércia. Disse-me: “Arranjámos uma amiga para a vida: a nossa peruca!”. Assim, tal e qual. Eu uso, mas ela é nossa, faz parte deste caminho de pedras pontiagudas que percorremos descalças, de mãos dadas. Não vamos sozinhas, pois está connosco uma pequena multidão disposta a trilhar o túnel comigo, sem permitir que eu caia de todas as vezes que tropeçarei.

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Nossa Natércia é da melhor qualidade: bati o pé por uma de cabelo natural, pois o nome diz tudo. Faz-me confusão ver as pessoas com cabelo de boneca e temi que me voltasse em forças a vocação para cabeleireira que tive entre os quatro e os sete anos, em que não houve boneca nenhuma — e tive dezenas, filhas de médico são cruel e profusamente brindadas no Natal e em datas aleatórias — que não ficasse escalpada até à “raiz”/implante, julgo que por estar convencida de que aquilo crescia. Mais tarde, apurei a técnica (ou talvez tenha levado três anos a perceber que “aquilo não crescia”), passei a usar rolos ou escova de enrolar e secador, e passei também a queimar/ encolher/ trilhar o cabelo às bonecas. Em suma, a técnica estava toda lá, o material é que era fraco. Por estas e outras razões, decidi deixar um rim na loja das cabeleiras, mas trouxe o cabelo da outra, que agora é meu. “Ah, é porque podes”, dirão as inflamadas da vida. Biafine.

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Natércia passou a prova de fogo — longe vá o agoiro — numa ida ao hospital. Perguntei ao segurança da oncologia onde é que podia fazer análises clínicas e ele indicou-me um laboratório a cinquenta metros dali, também pertencente ao hospital, porém para outras especialidades. Assim fiz, e só quando a enfermeira me perguntou por que é que estava a fazer análises ali e não no laboratório próprio para oncologia, é que percebi que, para variar, havia batido pela enésima, porém não última vez nesta vida, à porta errada. Já que tinha que voltar ao edifício para ter consulta com o giro, perguntei ao segurança por que é que me tinha mandado para o outro laboratório, sendo que havia um ali mesmo ao lado. Olhos escancarados, “Oncologia?”, “Sim.”, mãos unidas em oração, “Ai, ó minha senhora, desculpe, mas é que não se percebe nada, ninguém diz!”. E eu, tão feliz, peguei numa mechinha de nossa Natércia e disse: “Isto não é meu.”, fazendo aquele gesto de vitória com o punho fechado, baixando o cotovelo, e, melhor que tudo, fazendo com que ele se risse do meu riso.

Gosto sempre mais de me ver despenteada, nem Natércia escapa

07/01/2022

Como enterrares a tua empresa em 4, 3, 2, 1…

Sobrevivi a ver-me sem cabelo — e, a partir daí, a encarar-me assim duas vezes por dia —, terei que aguentar a paulada que será ver-me sem pestanas, jamais terei forças sequer para pôr um pé fora da cama se ficar sem sobrancelhas. O oncologista giro diz que isso não vai acontecer, mas a mim palpita-me que, por uma vez, ele pode estar enganado. Vai daí, meti pés a caminho, isto é, fiz uma prospecção de mercado sobre o que é que há por aí que não pareça um murkin em cima de cada olho, nem se aproxime daquela tatuagem preta, com formato de vírgula (logo eu, que tanto aprecio as vírgulas colocadas no seu devido lugar, mas não me parece que seja aquele) que por aí tanto se veem. Deixem-me, eu sou uma senhora de meia idade, preciso de me sentir bem na minha quase velha pele.

De entre várias empresas que contactei, guardei uma no coração, naquele micro-cantinho do azedume: a da Vanessa. Um primor de atendimento esdrúxulo e desorganização, assim narrável: liguei, atendeu-me uma possidoníssima do mais chique que há ao nível do sotaque tá-a-ver?, disse-lhe que precisava de informações acerca do procedimento que a empresa anuncia, uma vez que estou a fazer quimioterapia e, em breve, ficarei sem sobrancelhas, e que agradecia igualmente que me dessem uma ordem do valor. Pussy, ignorando olimpicamente a palavra “quimioterapia”, respondeu: “Olhe, vou passar a outra pessoa, que está mais dentro do assunto do que eu”, ai queres ver que estive a relatar intimidades a uma telefonista de uma multinacional e não à pessoa que atende numa m. de um centro de estética?, lá veio outra igual, passados três segundos, ok, podem ter sido sete, que já estava a par do assunto — portanto, era a mesma doida —, que me disse assim, à queima-roupa: “Olhe, eu agora não estou em condições de lhe revelar valores”, ai tu queres ver que me enganei e perguntei a quanto é que estava o graminha da coca? Assim que prometeu ligar-me mais tarde, desliguei entre o atónita e o caguei-nestas, risquei o nome da lista que tinha feito e passei à seguinte. 

Ao fim da tarde, recebi este miminho:

Olhe, thia, fudi com tanto anacronismo. Afinal, estavam de férias. Não sei como não percebi logo que estava a interromper algo dessa importância com o meu miserável telefonema. E também magoei com essa de ter começado uma mensagem na primeira pessoa do plural e depois a acabar no singular. 

Bom, esperei até às 15:38 de hoje, mas Van ainda devia estar a almoçar. Precisava de lhe dizer que há muito tempo que não era tão estupidamente mal atendida em lado nenhum. Mas depois deixei de precisar, defequei nela e sua heterónima e bloqueei o número, que é das melhores coisas que não sei quem inventou. Não estamos nessa, Vanessa.