30/09/2015

Soledade

Tudo me parece irónico, à chegada. Depois da curva de saída da A5 — que termina ali, não há mais A5 depois daquela infindável estrada —, está um outdoor de uma agência funerária que grita BAIXÁMOS OS PREÇOS PARA CONTINUAR A CRESCER, que já me provocou um sem-número de sorrisos daqueles que fazem o borderline entre o riso e o esgar.

Os que nos partem, escrevi eu. Agora estou assim, leio os outros e leio-me a mim, mas não leio livros. Posso dizer que há meses que não pego num livro, visto que já passou mais do que um. Reparo que toda a gente tem um livro em mãos, menos eu. Não tenho tempo para ler, tanto que escrevo. Fervilho, até me sinto rebentar. Até me ouço crepitar. 

Os que nos partem (...) deixam-se ficar em todos os lugares.
Nunca como agora me fez tanto sentido, isto que escrevi. Toda influenciada pela famosa frase de Saint-Exupéry, nem num rasgo de que eu própria tanto gosto sou capaz de ser original. 
Os que nos partem — porque se vão, porque nos deixam, porque nos morrem, porque se morrem, porque nos partem o coração —, fazem também com que nós partamos deles e sem eles, tomando a direcção oposta. Partem-nos, e nós partimo-los, partindo deles. Não são só eles que nos deixam. Nós também os abandonamos — mesmo, e sobretudo, não querendo. 

Hoje olhava-a, investida de uma tristeza ausente e contagiosa, e percebi que aquele abandono não significa tão-só a partida dela de mim, mas também a minha soledade de ela — e que, por mais laços que eu vá buscar à arrecadação das memórias, torcendo-lhes o ferro em nós cegos, existe um cordão umbilical, que está, lenta e irremediavelmente, a desvanecer-se. A partir(-se).

Directo para a categoria só-a-mim-não-me-saem-empregos-destes

Metereologista do site otempo.pt.
Zandinga, o grande, devia ter muito mais trabalho a prever aqueles desastres e mortes todos que previu (excepção feita à sua própria), do que estes senhores. 
A malta só quer saber se é dia de calças ou de saias. E andor.


Eu moro em cima de um dos cruzamentos mais perigosos de Lisboa. E de Portugal (se não do mundo).

A minha rua é pequenina, tem apenas três prédios — parece aquela história da palavra pequena, a maior que o mundo tem. E é um beco, também. Não sei por que não se chama Beco-não-sei-quê, em vez de Rua-não-sei-quantas. Beco-da-Mãe, por exemplo.
Na ponta oposta, cruza com outra rua, que também é uma rua pacata. Aliás, o meu bairro parece uma aldeia, com todas as vantagens de uma aldeia (toda a gente se conhece, e os meus vizinhos dão-me legumes) e nenhuma desvantagem (ninguém se mete na vida de ninguém — avalio eu, por mim), mas encaixado numa cidade, com todas as vantagens de uma cidade (acessos fáceis, tudo à mão) e nenhuma desvantagem (esta foi mais para compor o texto, porque, na verdade, as emissões de CO2 são as mesmas, e haverá chumbo nos nossos pulmões, sem que para isso necessitemos de os balear).
A não ser este cruzamento, sobre — praticamente — o qual moro. 
Ele são ciclistas na ciclovia. 
Ele são pessoas a correr pela pista (é a mesma, mas uma pessoa tem a tendência para a distinguir em função dos utilizadores).
Ele são crianças que brotam como flores por todo o lado — é que, vá, num percurso de cem metros, temos duas creches, um jardim de infância e uma básica de primeiro ciclo. Dá-se o caos, quando os pais vêm trazer ou buscar. E brotam mais crianças dos carros que vêm às creches (os irmãos mais velhos). Sabem aquelas debandadas de fim de tarde, quando os pardais se juntam todos na mesma árvore? É assim.
Ele são carrinhos de bebés. Com bebés lá dentro.
Ele são senhoras muito barrigudas. E que não parecem ter abusado dos fritos.
Ele são muitos cães à solta da trela — para poderem passear à cão, e decidir capazmente onde depositar a feze (normalmente, no meu passeio). 
Ele também aparecem gatos. Debaixo dos carros, ou a voar à frente de um cão.
Isto faz com que, quando circulo numa rua em que, como em todas, salvo indicação em contrário, até posso ir a 50 km/h, nestas duas que se cruzam aqui debaixo do meu nariz, tenho que ir a 10 à hora, a olhar para todos os lados — com stretch do pescoço, bendito Pilates —, porque o mínimo que me pode acontecer é passar por cima de um pombo. E isso seria absolutamente traumático (para ele, mas também para mim, que, conforme sabeis, andei a bater mal uns dias por ter morto — e nem sei se bem morto — um gato).
Ainda ontem salvei uma lesma de morrer no meu lava-louças. É a segunda lesma que salvo esta semana. Costumo pegar num bocadinho de folha de alface, tipo tapete do Aladino, e embarco a lesma janela abaixo. É um invertebrado, não vai fracturar a coluna. Mas fico preocupada se o tapete voador vai dar ao cruzamento onde toda a vida deste bairro se processa, com a minha lesminha lá em cima, e ela fica esmagada debaixo de um rodado. Invertebrado, mas não tanto.
Isso diz muito sobre mim?
Diz, pelo menos, que eu ando a comprar alfaces com lesmas.


29/09/2015

Parva e mais nada

Reparem, eu sou uma pessoa que não tem muita sorte com as empresas de entregas daquelas porras que se mandam vir pela netty. Eu reconheço este meu handicap, ok?
Por outro lado, também me apercebo que hei-de ter ar de parva e ou cara dela, ou será da voz? É que nem é voz de falsete, ou quida, de boneca Barbie. É uma voz grave, que eu coloco como e onde quero — em cima da mesa, debaixo do tapete, também, sim —, não é sequer confundível com uma voz parva. Mas afinal qual é o problema destas pessoas? 
Primeiro, foi o da UPS, a dizer que não achava aquilo normal. Penso que, depois, também não terá achado nada normal a descasca que levou da chefia, por sinal um gentleman, que me ligou e se torceu de simpatias e promessas de um futuro melhor.
E hoje fiz o pleno, quando o funcionário da empresa que me há-de vir entregar o pacote, por, aparentemente, ter dado com o nariz na porta ontem, me perguntou ao telefone qual era o código de entrada no meu prédio — para que, segundo ele, o colega não errasse a pontaria numa próxima investida (não foi assim que disse, mas foi assim que eu ouvi, tanto que até fiquei nervosa e a falar fininho, lá está, com voz de parva). Disse-lhe assim: 
- Mesmo que eu quisesse [ainda pus a hipótese de querer, sou tão boa], não lhe podia dar esse código [tipo a minha mãe não me deixa. Parva. Nem dei uma explicação com pés para andar, nem cabeça de alho chocho. Mas ele comeu-a assim mesmo, porque respondeu Pois não. Outro parvo.]...

Eu acho uma cena muita sensual, e acontece-me isto amiúde: as pessoas pedem-me a password, o código secreto, o segredo do cofre. A sério que só falta perguntarem as minhas medidas de busto, cintura e anca. Mas lá iremos (e eu respondo 120-50-120).

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar ao supermercado # 26

Quando há um momento em que a montra da mercearia do teu bairro te parece indicar uma casa de meninas. É cedo e ainda não acordaste bem acordada. 


E és logo castigada. Entras, avias-te de sete ou oito quilos de fruta, escolhes o melhor que podes e sabes — cheirando-a, e constatando que, drivados à chuva que cai pela manhã, uma quanta cheira a mofo, outra quanta a olho do rabo —, diriges-te à caixa para pagar e uma mulher azeda diz-te, literalmente, que não lhe vais passar à frente, como se isso fosse possível diante de tamanho tonel de fel. Ignora-la, perguntas a quem sabe onde estão as recargas de alho em pó (são alquimias, são bruxarias, são truques de magia, senhores — o alho em pó é o segredo da deusa), e outra azeda arqueia as sobrancelhas até ao limite da raiz capilar e responde assim:
- Recargas de alho em pó? Quer dizer o quê, com isso? Os pacotes?
Vá que esta espécie de azeda gosta mais da palavra pacotes do que recargas. São inconsciências que cada um explica as suas, Freud explicaria as de todos.
Cria-se, então, uma sit almost com:
- Eu disse recargas de alho em pó, há alguma coisa na expressão que a confunda?
Azeda a topar que era melhor não ir por ali, e que a discussão recargas-de-alho-em-pó nos poderia levar longe às duas, estragando-lhe o dia a ela. 
- Não sei se os pacotes dão para encher o frasquinho...
Olha que erótica. Olha que escatológica.
- Então, se não sabe, não questione. Referia-me às recargas.
Dolorosa, a sensação de ter entrado no local errado à hora errada. Estava a ver que ainda me saía à sorte um homem-bomba. Daqueles mesmo a sério, com coisas à cintura, que explodem.
Eram 8:30 da manhã, eu carregava sete ou oito quilos de fruta — e uma recarga de alho em pó — pela rua, e ainda o peso do crivo de duas azedas, ou seja, de cinquenta por cento das pessoas presentes naquele espaço.
Diz que se vende lá um dos melhores prazeres da vida. Nem quero imaginar qual.

28/09/2015

Dias de flores

Ontem escrevi isto: 
Os que nos partem — nas acepções todas que encerra esta expressão — deixam-se ficar em todos os lugares que frequentámos com eles, e às vezes até noutros que nunca vimos juntos. — na Miss Smile.

E hoje: 
Hoje era o dia em que nasceria quem nunca nasceu. É um dia que podia ser feliz e nunca chegou a ser. Cabe-me cobri-lo de flores, o melhor que eu puder. Mas só o tempo faz essa tarefa por nós. E eu já consigo, porque passaram muitos anos. — numa resposta a um comentário que recebi.

Ou quem não se sente, mas todos temos dias de sol, ainda que o astro ande escondido. E todos temos dias de sombra em pleno Verão. Um dia, saberemos cobrir estes últimos de flores — as mesmas flores que começam por ser de luto e de dor, transformadas em flores de aceitação e de paz, viçosas por regadas a muitas lágrimas, mas que o tempo e o vento ajudam a secar. 

É tão pouco blogger da minha parte # 5

A hora do cão

Estar a perder a memória recente é mais ou menos isto: fazes uma coisa e daí a cinco minutos não te lembras se a fizeste ou não. Sabes que tens que a fazer, mas não sabes se esse tens é imperativo ou pretérito imperfeito. Então, voltas a fazê-la, sem saber se pela primeira ou segunda vez. E tens um déjà vu, e achas que te lembras de já a ter feito. Logo a seguir, ficas na dúvida se estás, de facto, a ter um déjà vu ou se já fizeste aquela tarefa. Paras para respirar fundo e não acontece nada, a não ser uma coisa branca.

No entanto, tens memórias longínquas. Por isso, começas a ser fértil em associações de ideias, algumas delas completamente absurdas. Como esta d' Os Marretas.
Às sete da tarde de domingo, sabes perfeitamente o que estavas a fazer há umas décadas atrás, precisamente naquele dia da semana e àquela hora: ao domingo, a partir das sete da tarde, eu debulhava-me. Parecia tomada pelo diabo. Era a hora do cão.
Jantávamos à mesma hora de sempre, cedo, pelas oito, ao som da minha debulha hãããã-é-domingo-e-eu-não-quero-ir-para-a-escola. Acho que não gostava da escola, não porque fosse má aluna, mas porque detestava a professora. Eu era fisicamente muito pequena, por fazer anos no final do ano (isso mantém-se, a pequenez é que se foi), muito magra e muito insignificante. Fazia tudo o que me pediam tão bem feito, tão quietinha, que me tornava invisível pelas paredes da sala de aulas. Isso era confortável e dramático. Senão, hoje não me lembraria como me lembro, nem me acompanharia essa sensação tantas mais vezes do que eu desejaria.
Ao domingo, quando eu já tinha infernizado o jantar à família toda — e, quem sabe, também aos vizinhos —, dava Os Marretas na televisão. E isso servia-me de consolo e indutor de um sono que parecia nunca querer chegar. Havia qualquer coisa de amargo e de doce nessa compensação, mas que funcionava na mesma.
Ontem, eram sete horas, e aquela sensação de fim de festa começou a tomar conta de mim, quando me lembrei que Os Marretas iam voltar. E foi tão doce quanto amarga a recuperação dessa memória, absolutamente intacta, tantos anos volvidos.
É por isso que, ainda hoje, acho que o domingo devia acabar às sete da tarde. Em bom rigor, se pudesse escolher, acabaria às cinco. Ficava logo de noite, noite para dormir, e acabava-se o dia em festa de sonhos. 
Assim como a sexta-feira devia acabar às cinco — e o sábado começava a essa hora.
Vejam lá isso, senhores candidatos a governantes. Eu voto em quem der mais.

 
(A nova porca é adorável. Just saying)

27/09/2015

A reter

Ginásio antes do café, never again.
É esqueceres-te de metade das merdinhas em casa: garrafa de água, elástico para o cabelo, cadeado para o cacifo, moeda para o café. E aí começa o drama.
- É ficares toda contentinha porque, afinal, não te esqueceste de nada de absolutamente fundamental. A toalha de treino é importante, mas no ginásio emprestam uma aos esquecidos. O mesmo se passa com o toalhão de banho. Os chinelos para o duche, olha, que se lixe: arrisca-se o pé de atleta — se bem que um pé chato, com pé de atleta, deve ser uma coisa linda de se ver: pé de atleta chato. Ou pé chato de atleta? Ou pé de chato atleta? Enfim, imprescindível é um par de cuecas lavado (nem me quero lembrar), o que me leva a mais um mantra:
Esquece-te de tudo — até da cabeça, se for o caso — mas nunca te esqueças das cuecas, quando fores para o ginásio.
É ouvires Pilateiro a solicitar, em pleno roll up, que podeis agarrar as calças para ajudar na subida, e ponderares a possibilidade de te agarrares às calças de um qualquer dos teus companheiros de pilatice.

É o mestre repetir, pela enésima vez, a piada de que as nalgas são aquelas duas bolas de carne que ficam do lado oposto ao osso púbico e tu rires desesperadamente, como se fosse a primeira vez, e, pior: como se a piada fosse a mais engraçada do mundo. Pior ainda: dares-te conta de que não evoluíste coisa nenhuma desde os doze anos de idade, e, cada vez que alguém te fala em osso púbico em contexto de sala de aulas, desatares a rir-te como uma hiena com cócegas. 
É seres apanhada numa máquina de braços, por uma treinadora, que te diz, Acho-a muito pensativa, hoje (o que quer dizer Wake up, bitch!), a quem respondes apenas Preciso de um café!, feita agarrada.
É ires à estação de serviço, ao pé do ginásio, levantar dinheiro, tomares um café, em pé, toda consolada, incapaz de esperares por chegares a casa, que fica a cinco minutos de carro. 
- É ainda ires, no caminho para casa, a sentir que a bica te está a chegar com excessiva lentidão ao neurónio comatoso.


26/09/2015

Tuas mãos, mãe

Tuas mãos, mãe, era um poema que fazia parte de um livro da escola primária, mas eu não me lembro de que ano, nem se era meu ou não. De qualquer maneira, as professoras da minha escola não seguiam os livros, mas tínhamo-los meramente porque faziam parte do programa obrigatório. Assim, de pouco manuseados na aula, passavam a muito explorados em casa, e eu perdia-me por horas no meu e no dela, que tinha histórias fantásticas, como a d' O macaco que perdeu o rabo. Se pensar nisso, quase não me lembro dos meus livros da escola, mas guardo várias recordações dos dela. 
~
Assim me veio parar às mãos o Tuas mãos, mãe.
Copiei-o com o maior desvelo e cuidado, para uma folha branca, com a minha melhor letra — e devo ter posto a língua no canto da boca, e a cabeça naquela posição meio de lado, com os olhos a pouca distância do papel, não porque visse mal, mas porque o rigor assim o exigia —, e depois desenhei uma mão de unhas compridas, que era a mão da minha mãe — mas que ficou tão mal desenhada, que ainda hoje me contraria lembrar-me do quão bonita ficou a letra e quão torta a mão da minha mãe. E também me lembro de como fiquei envergonhada por ter copiado um poema para a minha mãe a tratá-la por tu, mas era assim que estava no livro.
Dei-lhe o papel dobrado, cheia de inseguranças e dúvidas, ela abriu-o, leu e desfez-se num sorriso tão bom e bonito, e tão cheio de brilhantinhos (as crianças vêem coisas que os adultos nem imaginam), que as dissipou todas. Pegou-me ao colo e abraçou-me, e depois cobriu-me de uns beijos que me duram até hoje. E guardou o papel, muito bem dobrado, até há tão poucos anos que acredito que ainda sobreviverá nalguma caixa daquelas que nunca mais se abrem, mas que encerram a papelada mais importante das nossas vidas: bilhetinhos de amor e amizade, postais ilustrados, pactos de sangue umbilical — como este, que nos fez eternas pelas mãos dadas.
A minha mãe tinha e tem as mãos mais bonitas que eu algum dia vi. Eu desejava crescer depressa,  só para ficar com umas mãos iguais e poder pintar as unhas de encarnado. 
Nunca mais encontrei o poema das mãos, mas tenho-as a ambas comigo. Não há vez nenhuma que lhe pegue nas mãos para lhas arranjar, que não me lembre Tuas mãos, mãe. Do conteúdo, não me lembro, mas sei que falava em pétalas e flores, e acho que lágrimas. 
Hoje demos as mãos, como o faremos para sempre. Levei-lhe vernizes novos e cantámos-lhe os parabéns. E as mãos da minha mãe ficaram mais bonitas do que nunca.

Estou aflitinha para votar

Falta uma semana, e não sei em quem votar.
Não me abstenho, que desses não reza a História. Não voto nulo, porque não tenho grande jeito para desenhar genitálias no boletim, nem em lado nenhum. Não voto branco, porque gosto é de azul.
Meu povo esteve agarrado a uma chefia dura durante quarenta anos. É muito ano. 
Meu povo está agarrado a um jogo de ping-pong entre duas frentes, há quarenta e um anos, que só me lembra aquele vira — ora-agora-viras-tu-ora-agora-viro-eu —, nem sei como é que ainda não se coligaram partidariamente e não governam a meias mais outros quarenta, Ali Babá. Entre os que estão presos e os que deviam estar, uma pessoa vê-se nas aflições para decidir em quem votar. E não aparece o homem das arábias que nos cesse o castigo.
Alternativas?
Abre-te, Sésamo.
(Ainda tenho uma semana.)


Mas ninguém cala este homem? # 7

Senhor director, desculpe, posso entrar?
Ai, desculpe interromper a sua higiene nasal, mas é que isto é importante.
Não, não me quero sentar. Ainda estou um bocadinho abananada — parece mesmo que levei com um cacho de bananas na testa, sabe? — e prefiro ficar em pé, que é como diz que as árvores morrem. Olhe, eu estou morta de susto.
Ia ali a passar na redacção e esbarrei-me de frente com o draft, sabe? Foi sem querer, mas não pude deixar de ler a sua crónica. E até ia embalada naquela história do rei Salomão, quando fui acometida do tal assombro. 
A minha mãe já me tinha contado da lenda, olhe que coisa. Parece mentira, agora admitir rachar uma criança em duas. Só uma maluca é que havia de se lembrar de permitir tal solução. Está bem de ver que não era a mãe a sério, a do parir é dor. O que vale é que uma delas era mesmo a mãe, senão ainda eram capazes de discutir se faziam as metades do miúdo no sentido longitudinal ou latitudinal. 
E foi giro, vê-lo tentar um paralelo entre essa lenda e a política de Passos. Eu gosto de metáforas, de alguns eufemismos e de quase todas as alegorias. Nem sempre as entendo, mas isso já são outros quinhentos, e eu ainda nem aos cem cheguei.
Mas não é isso que me traz aqui. Ou melhor, é e não é. Então não é que me deparei com um lapso seu? Uma gralha, certamente. Terá que dar na cabeça do adjunto. Só pode ter sido ele que deixou passar, ou mesmo que fez de propósito para lhe inquinar o texto aos olhos das chatas das gralhas como eu. Ó ié, sei que falo muito. 
Se calhar, agora dizia ao que venho e ia-me já embora, antes que o senhor me acuse de perseguição pessoal, tentativa de impedimento da liberdade de expressão de outrem, ignorância quanto ao uso de recursos estilísticos, ou outro palavrão maior, que eu não sou dessas e deslargo já o seu hebdomadário, antes que me venham cá com rótulos.
Ó senhor director, era aquilo de uma mãe dizer ao rei que desse o menino vivo a ela. 
Veja lá isso. Não queria antes dizer dai-lhe o menino vivo e não o mateis? Ou dai-lhe a ela o menino vivo e...?
Dar a ela, senhor director?
Puxa... 

Jornal Sol, 25.09.2015

25/09/2015

Qual é o que dói mais?

Devia fazer a purga, de uma vez por todas, a ver se me livro disto, livro, livro — livro aberto das minhas mágoas fechadas, uma a uma, trancadas a sete chaves, mas olha, afinal estão todas à mostra.
Vi-te a perda, olhei-te pequena, e não consegui reabsorver-te de volta, mas contigo me encolhi até não sermos nada, de tão ínfimas e íntimas e infinitas e infindas que somos. Pensar que fizeste parte do meu corpo. Sofri-me para aqui, calada, aos gritos na minha escrita, só não queria que me ouvisses. Já bastava teres tu os teus gritos, não ia eu — quem sou eu? — impor-te os meus, ainda que soprados no silêncio.
Tenho pensado nisto, que o sofrimento reflexo é o mais dorido. Claro que, como rainha do drama, tinha que chamar a mim a chaga maior, a mais funda, de todas a mais sangrenta. Mas deixa-me explicar-te isto: tu tens o teu sofrimento contigo e mais nada. Neste mais nada cabe toda a tua perda, gigantesca e transponível (não, não me enganei na falta do prefixo de negação). E eu tenho o meu sofrimento, o teu sofrimento, e o sofrimento de te ver sofrer. São três sofrimentos, todos juntos na mesma pessoa, e isto, parecendo que não, parte-se-me o coração. Não é parte-me. É parte-se-me — há um movimento de dentro para dentro, uma implosão íntima. Evado-me e parto, parto-me eu, fico partida, como fiquei no parto que te fez partir de mim, deixando tu de fazer parte de mim, que era todo, soma das partes, tu e eu — que era eu, cheia de ti.
(Nunca me lembro de ter estado tão bonita.)   
Agora sofro de sofrimento reflexo, que acho que é o que dói mais — por serem tantos sofrimentos numa só dor.
Um dia passa. Mais um dia que passa. 
Um dia parto, de parto sem dor.


Não sei quem está pior

Chamada não atendida de telefonema cujo remetente registei como Rita 93. Achei que era uma das minhas primas do Alentejo. Liguei de volta, não atendeu. Tocou de novo, e começámos o seguinte diálogo, mas, para se perceber a dimensão da loucura, tenho que esclarecer que esta outra Rita que me ligou tem uma tia que também se chama Linda (se esse fosse o meu nome. Confuso? Não mais do que eu).

LB - Olá, Rita. Ligaste-me, eu não ouvi o telemóvel, depois liguei-te, não me atendeste tu.
R - Olá, Linda. Pois, estava ao telefone quando me devolveste a chamada.
LB - Então, e estás boa?
R - Estou, e tu?
LB - Também. E a tua rapaziada?
R - Também estão bem.
LB - Então, vais em trânsito?
R - Vou para Castelo Branco [a mim, Castelo Branco, fez-me todo o sentido].
LB - Ah, que lindo...
R - Olha, tu não fazes anos hoje?
LB - Não, eu só faço anos em Novembro... quem faz é a minha mãe, amanhã...
R - Ai, que pontaria a minha...
LB - Deixa estar, foram duas ao lado. Era quase eu e era quase hoje.
R - Então, se calhar, agora despedia-me.
LB - Está bem, prima [atenção, ela não estranhou o prima].
R - Beijinhos para todos.
LB - Olha, antes que desligues: e o que me tens a dizer da horta?
R - Qual horta?
LB - Caramba, Rita, a horta! Qual horta? 
R - Linda?
LB - Rita?
R - Tia?
LB - Eu não sou tua tia... prima?
R - Prima?
LB - Mas eu estou a falar com que Rita?
R - [pumba. Cai-me o apelido que nem uma bomba aos ouvidos e, de repente, tudo e nada fazia sentido]

O resto do telefonema?
HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA.
Descontroladas.
Ela teve que desligar, já não conseguia ver a estrada.
(Continuo sem perceber como é que não me lembrei de lhe perguntar se o filho mais novo tem levado muita sopa de corno, que é sempre o que pergunto, já que o rapaz é forcado.)



Alguém escuta?

Quantas vezes tenho que dizer que não me deixem tudo por todo o lado? Que, quando usam o depilatório, e vou encontrar a caixa num sítio, a bisnaga no outro, e a espátula no outro, e, por sua vez, todas fora do armário — e, de todas as vezes, ao fim de vários dias (eu não disse horas) de rogos inúteis, acabo por arrumá-lo eu (e já não falo na papa que fica dentro da sanita, e que nenhuma descarga de autoclismo leva, e só sai quando alguém for lá raspar aquilo à mão) —, o eu rabujar é o mínimo que posso fazer?
Por que é que estão quatro toalhas de cabeça penduradas naquele gancho, se só duas é que usam toalha quando lavam o cabelo?
Qual é a dificuldade de perceber que a almofada deve ser enfronhada dentro da aba da fronha?
Quantas vezes tenho que dizer que faz parte das varandas o parapeito delas? E das sanitas o pé delas? E dos armários, a parte de cima deles?
Será que vou ensinar mais cem vezes como é que se estica uma cama? E quantas vezes mais terei que ver a cara de hah, esta tem a mania de ensinar o padre nosso ao vigário!?
Quantas vezes irei dar com a tesoura da cozinha pendurada de um gancho que não é o dela há 22 anos?
Quantas vezes terei que pedir, implorar, suplicar, ameaçar, bater o pé, a perna, o corpo todo, para que me ponham a porra dos sockbusters nas meias? E as meias fininhas na rede?
Quantas vezes terei que ensinar à mesma pessoa que me ensinou a mim, a dobrar sutiãs?
Quantas vezes mais terei que baixar os braços e fazer eu — porque é para isso que o mundo está preparado —, só para não ter que me chatear? E para que não me ponham o rótulo de histérica?
Ponham-me o rótulo de histérica. Mas façam. Façam pelos mínimos, mas façam.
E sim, sou histérica. Experimentem atirar um copo de água gelada para cima de um cão, sistematicamente. Depois contem-me como foi, de todas as vezes.
O Pavlov sabia umas coisas.
.

24/09/2015

Sapateira de mim mesma — por enquanto

Era uma vez umas sandálias por quem eu nutria um amor carnal. Tanto assim que se lhe rebentou a presilha que prendia uma delas à vida.

[Pausa para respirar um nico fundo, que a mim me parece que, ultimamente, ando a tentar estragar toda a minha roupa e calçado...
1. Porque vejo o Verão acabado e quero livrar-me dos velhos que são os trapos;
2. Porque nasci para princesa e sinto que, de onde estes vieram, há mais, e, por conseguinte, toca a esfarrapar tudo agora;
3. Porque quero inaugurar uma new trend, algo assim de muito desnudo, e apercebo-me do quão inútil é a roupa;
4. Porque me converti e nós, na nossa religião, repudiamos os bens materiais (mas não prescindo do rímel — eu sei que se chama máscara de pestanas, Filipa, mas hoje estou em modo arre-burro);
5. Porque sou azarada e tudo — mas é que tudo — tem que me acontecer;
6. Porque sou uma granda descontra e me estou a cagar para a nódoa, o sapato rebentado, e faço do blasé a minha referência estética, os outros é que lhe chamam desmazelo;
7. Porque sou desastrada e sou a única pessoa que não é capaz de visionar a coisa.]

Eu ainda estava em casa, quando a presilha se divorciou do calcanhar da minha sandalinha. Podia, pois, ter calçado outras, mas é que não, porque eram aquelas que eu queria calçar. E fui para a rua assim, presilha solta, a abanar toda, parecia bêbeda (a sandália, que eu tinha o ar mais sóbrio do mundo, a caminhar pelo passeio naquele preparo). Ia de visita a quem me garantiu ter super cola em casa, e isso aliviou-me quase até à tripa. Assim, procedida a soldadura de meu casco, lá fui bater pernas para a superfície comercial, mas a super cola deu de si e de mim e demonstrou claramente que é portadora de um nome que é um eufemismo. Isto, estava eu na Rituals, a adquirir a penas — e apenas — meu creminho que me põe na pele um travo a laranja e no beijo três gomos de riso. Vêde e fixai esta regra, que eu não duro sempre: na Rituals do Colombo, as funcionárias são de uma simpatia incansável e têm um agrafador que funciona, o que, parecendo que não, são duas características extremamente raras de se encontrar hoje em dia, e então juntas, é quase A agulha no palheiro. Por acaso, senti-me um bocado jumenta, a ter que me descalçar para agrafar a sandalete, e depois a voltar para casa, de rabo entre as pernas, a andar fininho, como as gueixas, não fosse aquela coisa ceder à tentação de se separar outra vez do calcante. Ainda por cima ia com uma preocupação acrescida, que era o par de agrafos me roçar na pele, provocando-me aquela reacção alérgica que eu tanto aprecio ter. Já em casa, os agrafos também se soltaram (parece que, actualmente, tudo se solta em mim — deverei prestar atenção aos meus intestinos, doutor?), pelo que não tive outro remédio senão agarrar em linha de fibra e agulha, e coser a presilha à mão.

Enfermeira, canalizadora, motorista, costureira, marceneira, cozinheira, pasteleira, profissional da limpeza, manicure, e hão-de estar a falhar-me mais dez.
E agora, sapateira.


Hoje vi Lisboa

Linda, em pequenino, enorme, branca, majestosa — numa exposição num espaço tão arejado (apesar de ser uma cave) e tão bem iluminada que quase, quase diria que foi ali recriada aquela luz única de Lisboa, de que a Maluda (ai, que saudades) falava — Lisboa tem horas de luz que mais nenhuma cidade do mundo tem.


Esta renda de Bilros é a planta da cidade



Pormenor de uma zona que me é cara

Isto é o que parece

Vista da Ponte (seja de carro ou de comboio), vista de avião, vista de barco, é sempre este deslumbre, à chegada

Vaidade, pura e dura


As coisas que eu vou desencantar ao baú... # 8

03.02.2012

4 da manhã. A socorrista de sempre, Dona Mimi: Mãe, a M. vomitou na sala.

A pessoa ergue-se do leito, esquece-se, drivado à sonite, de calçar as havaianas (eu disse isto só para que ninguém fique a pensar que eu uso pantufas ou chinelinhos de quarto), alcança a que eu gostaria que se parecesse e todos conhecem por sala e depara-se com o cenário seguinte: filha M. sentada no sofá, a segurar a própria cabeça, e um lago — poluído, é certo, mas um lago — de vómito, constituído por muita água e sólidos com farripos brancos de pão e de panadinhos e de sei lá que mais ácidos estomacais. Com uma dimensão de cerca de 1,5 metros por 70 cm.

(Quem quiser, que mude agora de canal, que a tendência da descrição é para piorar. Há por aí muito blog fofão onde é possível encostar sem nos sujarmos todos, como aqui neste buraco.)

Ainda derivado à sonite, a pessoa toma a primeira de várias atitudes: mete os dois pés, descalços, no lago. Preocupação imediata: não escorregar. Isto são muitos anos a virar a franga, e a experiência diz-me que o vomitado escorrega bastante. A mim parece-me que o dos outros ainda escorrega mais do que o nosso, conclusão tirada empiricamente, mas não cientificamente comprovada.

Segunda preocupação: limpar o lago. De cócoras, a dormir só não em pé exactamente por estar de cócoras, afinfei-lhe com um rolo inteiro de papel de cozinha, coadjuvado por duas colheres, para retirar os sólidos maiores do soalho, e munida de um saco de plástico, para guardar tudo para memória futura.

Agora as coisas mudaram um pouco, para melhor: embora os golfos, dignos das Bruxas de Eastwick, continuem a sujar tudo à volta do cenário, já só sobra para mim a lavagem da área envolvente e das roupas e objectos atingidos. Sinto, por isso, uma grande libertação, em não ter que, como acontecia antigamente, levar a criança, quase pendurada pelos ombros, com pinças, pelos ares, até à banheira. Portanto, ela lavou-se. E eu fiquei a limpar o chão e o sofá. 

Pelo meio, uma breve incursão masculina, com o velado aviso, em tom de murmúrio do Além, eu estou a ajudar a tua mãe. Viu-me de esfregona em punho, já o rolo de papel de cozinha tinha acabado, e deu-me a entender, muito expressamente, que tinham ficado resíduos sólidos entre os tacos do soalho. Quando lhe perguntei se os queria retirar com uma faca, foi-se deitar. 

Todo aquele esforço abriu-me o apetite. Fui comer um iogurte, senão já nem conseguia dormir o resto da noite.


23/09/2015

Outono

Ser filha é ser mãe ao contrário, andamos sempre do avesso e em palpitações, mas é tão bom que dói :)

Outro dia escrevi isto na Estudante Amarelo, e hoje soprou-me uma aragem, neste Outono que diz que começou hoje, mas foi há um Outono que começou este Outono infindável, que eu não quero que finde, pois a seguir vem o Inverno e esse há-de ser de chuvas dolorosas que só um louco deseja para si. 
Acho-a mais caída, mais longe, mais volátil, mais adeus, a cada vez que a vejo, por me parecer que cada vez a vejo menos. Hoje teimei em ir com ela para o jardim, porque tenho calor ali dentro, e há dias em que preciso de ter frio e não me rir de mim e do calor que sinto. Levava um casaquinho curto, mas que me aconchegava os braços, e sentámo-nos as duas frente a frente, eu de tesoura, lima e verniz, ela de mãos vazias ao abandono, indiferente, até mesmo à aragem que nos soprava às duas para outro lugar e um tempo que se perdeu lá atrás, talvez no Verão. Achei-a com frio, disse-me que sim, vesti-lhe o meu casaquinho e fiquei à brisa, cheia de calor, a abotoar-lho para a aconchegar inteira. 
Ser filha é ser mãe ao contrário. Dá um trabalho a que ninguém dá valor (a não ser a dona Alfreda, que disse "Tem uma filha tão boa", e por um segundo agradeci-lhe mentalmente não me ter chamado neta). Primeiro, tentamos perceber a palmada no dia em que cortámos o nosso próprio cabelo, depois perdemos a paciência para tanto desvelo e preocupação, que nos castra os voos todos, e um dia acordamos a desvelar-nos e a preocupar-nos também.
A brisa dançava à nossa volta, cantavam as folhas nas árvores, quase uma festa de final de Verão — e toda aquela ausência disse-me ao ouvido, baixinho, para não me assustar: "Outono..."


Chico-smart não me tem em grande conta # 11

Já estive empenada no nível 65 durante semanas. Depois chico foi sujeito à reposição dos valores iniciais (seja lá o que isso for), reinstalei o candy crush, e agora estou há semanas no nível 86. 
Nunca como hoje estive tão perto de rebentar aquilo tudo e passar para um nível superior — uma vez que, neste jogo, a mudança faz-se numa escala ascendente, directamente proporcional à perda de capacidades cognitivas a que o jogo nos sujeita. Provavelmente, esta foi a minha very best oportunity, e não terei outra nesta vida. 
Quem percebe o jogo, sabe muito bem o que aconteceu a seguir a esta tentativa. E aos meus nervos.


E quando a falta de imaginação nos acomete até à culinária?

Anda a acontecer-me amiúde.
Nunca tive imaginação nenhuma. E agora estou pior.
Não sei como é que continuo a encher páginas e páginas de blog, meu querido buraco, como quem enche um chouriço.
Acho que esmifrei todos os assuntos. E, mesmo assim, continuo, feita compulsiva, como se isso me trouxesse outro benefício que não o de exercitar os dedos neste teclado que parece um piano Steinway Model Z (fui ver à nettinha, claro, eu lá sei mais do que Yamaha, e vá lá que não os confundo com as motas), o que também não tem qualquer tipo de vantagem, a não ser que as artroses não me chateiem tão cedo, e possa continuar a usar anéis sem problemas.
E a falta de imaginação é um flagelo que afecta todas as áreas da vida de uma pessoa humana, em a tendo. A mim, já me afectou a da comida. Passo noites em claro a tentar decidir o que é o almoço. E tardes em branco a pensar o que poderá ser o jantar. Encontrar um prato que agrade a tantos, seja fácil de fazer — que a minha vida, parecendo que não, não é só isto e aquilo, além do que sofro de preguiça e pernas inquietas —, não fique estupidamente caro e tenha os ingredientes todos em casa, é apenas comparável à metáfora da lança em África, o que significa, à partida, falta de pontaria, falta de força de alcance e distância com alvo irrealizável. Metáfora por metáfora, melhor se aplicava a do burro a pão de ló, só que aqui ninguém zurra — a não ser eu, quando me embruteço, designadamente por não encontrar o menu ideal do dia —, e não me parece que o pão de ló seja alimento para gente esperta, para além do que jerico nenhum, por muito bom burro que fosse, sobretudo se se tratasse de uma fêmea, permitiria ser sujeito a semelhante dieta, quanto mais não seja porque engorda.
A desimaginação já me dominou de tal modo, que ontem pretendi fazer um prato de esparguete com camarões — mas daqueles congelados e mirrados, que devem ser criados em aquários de subcave, não pensais vós que me alimento a pão de ló — e não tinha delícias em casa, o que até parece uma contradição, em se tratando da minha. Sem as delícias, o prato parece uma esparguetada de esparguete, e contam-se os camarinhos pelos dedos de uma só mão. Precisava mesmo de acrescentar qualquer coisa, e o que é que me ocorreu? 
Tremoços.
Os tremoços são o marisco dos pobres.
E depois, mordia-os, um a um, para lhes tirar a casca e metê-los no tacho?
Só desisti por isso (preguiça, again, não que alguém protestasse pela falta de higiene. Acho eu).
Mas ficou-me cá a ideia: quando não souberes o que juntar à mariscada da tua vida, deita-lhe tremoços.
Foi o que fiz, agora mesmo, neste post.

22/09/2015

Doce parola - 1; Tia de só um beijinho - 0

Que maçada. Já não bastava a minha vida altamente sobrecarregada com tudo, para ainda ter que encontrar uma tia, mas a mais tia de todas as tias que eu conheço, no elevador de uma superfície comercial. Entrou a tia, e eu quase de caras na porta do elevador — adoro andar de elevador, mas sinto-me à mesma como se fosse andar de avião, que detesto, e fico de nariz de fora do cubículo, a respirar o ar cá de fora, quase até ao fecho das portas —, nem pude simular que não a via, porque a tia é daquelas tias que é tudo tão montes de completamente e caturreira, abana tanto a cabeça, que só faltou esbarrar-se comigo, escancarou os olhos e bradou: "Olá, tá boaaa?".
Doce parola deu um beijinho na face tiorra, e depois alambazou-se ao segundo beijinho, olhe, horrível: a tia ao safanão com a cabeça, até pensei que estivesse com algum tique novo, lembrou-me tanto uma personagem do Somerset Maugham, que tem o tique de abanar a cabeça, mas essa tem um motivo tão forte, que de certeza que não é o mesmo que move a tia a mover a tola com aqueles frémitos todos. Deu-me mesmo a sensação que a tia não me queria beijar a segunda bochechinha, e ó que não gostei, então não foi o chefe dela que disse que era para dar a outra face? Ia ficando no ar, com a cara virada para a cabeçorra da tiona e aquela boca instagrameira que uma pessoa faz quando vai dar um beijinho e ele não há meio de encontrar o alvo. Ainda assim, forcei-a a beijar-me o lado esquerdo, utilizando um menear quase igual ao dela, mas menos violento. Depois ela saiu do elevador, a abanar muito a bola, tal e qual a Mrs. Grange do Vidas naufragadas [A indomável, Livros do Brasil, 1971, pp. 81], que nem o bâton pelas beiças afora lhe faltava. Só não pelos mesmos motivos, já disse? Mrs. Grange havia assistido ao assassinato do amante, às mãos do marido, e isso fez com que passasse o resto da vida a "limpar" o sangue dele do peito, enquanto revirava a cabeça na direcção da "chegada" do marido, de arma em punho. Spoilei, peço desculpas.
A sério, leiam. Vale tudo a pena. Sem montes de completamente, nem caturreira nenhuma.



Chico-smart não me tem em grande conta # 10


Para ele, o normal é isto: E a net atrapalha mais do que ajuda, nalgas (ao alto?)



21/09/2015

Expliquem-me esta mulher # 3


Vá, eu digo o que penso: acho a Sunça gira. De tetra para tetra, por uma questão de solidariedade. Não é nenhuma brasorra, mas tem uma cara bonita e é simpática. 
Mas, porra, o que é aquilo, à laia de vestido?
Será que saiu de casa à pressa e vestiu o vestido ao contrário, isto é, de baixo para cima, e aquela manga, na verdade, é a perna de um jump?
(Jump, Assunção, I said jump)
Ou será que estava na costureira e foi chamada, de repente, para a entrevista com o RAP?
Quem é que desenhou e assinou o pano?
Como é aquilo da cintura para baixo? Só tem um ladex, como em cima, mas o contrário, à laia de Angelina Jolie e sua perna de pau à vela?
Assunção só tem calor no braço direito?
Assunção só tem frio no braço esquerdo?
Que decote é aquele?
Que fole foleiro é aquele no busto?
E de que raio de cor é aquilo? Azul-colégio ou preto-burqa?

Socorro, Scarlett, diz-me outra vez aquilo do tomorrow is o quê?

Eu fui ao Rego

É mato — denso e impenetrável —, perder-me em bairros de Lisboa — da Grande Lisboa — com nomes porno-eróticos. Já me perdi na Buraca. Não sei que bairros me faltarão. É ir ver o mapa detalhado da Grande, e vá que descubro mais alguma zona erógena onde me perder. Hoje foi no Rego. 
Eu tinha que ir ao Rego. Aquilo é um labirinto que tenho a certeza que não foi o Marquês que desenhou. Ou então, já estava tão farto da régua que usou na Baixa, que, num dia de bufa mental, tracejou o Rego assim como está hoje. Depois veio um presidente da câmara iluminado e mandou plantar sentidos obrigatórios e proibidos, como quem planta aqueles plátanos que fazem uma alergia boa. E, com isso, plantou uma confusão naquele meu neurónio que conseguiu sobreviver aos plátanos, alguém se lembra? Eu nem quero. Acho que me saíram algumas células nervosas cerebrais pelo nariz, nessa época. 
Hoje estudei o mapa. Foi no Google, e eu, não é por nada, mas acho que o Google Maps também foi desenhado por alguém que sofria dos nervos e um bocadinho de delirium tremens. 
No entanto, foi fácil entrar no Rego. Dei uma volta absurda pela Praça de Espanha, como se fosse uma instruenda metida no Marquês de Pombal, no tempo em que ainda não havia cá aquela maricada daqueles semáforos. Ou se aprendia a sair da rotunda, ou se davam trinta voltas até ao vomitório, tipo Serra do Caldeirão, mas em urbano.
Depois não consegui sair do Rego, que estava muito escuro, e não passava uma alma viva que me pudesse orientar. Vivi dramas. Pensei em parar o carro e esperar que passasse por mim o fantasma da Serra de Sintra, quanto mais não fosse. Podia, nas calmas, dizer-me que tinha morrido ali naquela esquina, que eu até aceitava, mas pedia-lhe orientações geográficas na mesma. Só me ocorria a pergunta estúpida que fiz uma vez a uma transeunte, em pleno bairro de Benfica, Por favor, diga-me: como é que eu vou para Lisboa?, e que me respondeu assim: A senhora quer ir para [nome do meu bairro]?. E foi tão constrangedor. Não sei como não verti uma lagriminha. Nesse dia e neste. 
Saí do Rego por tentativa e erro, ou melhor, por erro-erro-erro: de tanto marrar nas mesmas direcções, resolvi adoptar as contrárias, como fazem os ratos quando estão encurralados e percebem que a saída é noutro buraco.
Não me falem em Rato.


Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar a passear à rua # 13

Eu vou a museus. Eu gosto de museus. Sou aquela pessoa que fica a ver as coisas, e lê as legendas todas, e faz comentários bastante oportunos. Vejo sempre tudo muito bem. Mas não é para vir para o blog contar, é mesmo porque pago o bilhete e quero esmifrá-lo até ao tutano. Nem sempre me calha ir ao domingo e, por isso, tenho que aproveitar enquanto lá estou. Apesar disso, não sou capaz de fazer um post de jeito, que faça parecer que sou uma pessoa altamente culta das ideias, e não apenas curta.
Outro dia fui ao Museu do Traje, e queria ver o do Teatro e da Dança e a exposição temporária Tempos de Dança. Mas faltava uma hora para o museu fechar, e já não vi o Museu do Traje. Mas vi o jardim todo, numa high heeled run, e o outro Museu, mais exposição. 
A exposição temporária vale o que vale, e só está disponível para visitas (é que não gosto da expressão estar patente) até ao dia 30 deste mês. Trata-se do espólio do Estúdio-Escola de Dança Clássica de Anna Mascolo, e interessa, basicamente, a quem está na área.

E foi no Museu do Teatro e da Dança que tirei alguns retratos, tanto para mim como para ti:

Ainda no jardim, a perturbadora imagem de um pequeno diabo,
de cujo rabo brota um galho que, por sua vez, tem um passarinho pousado
(e não há uma única estátua naquele jardim que não seja muito esquizo.
E eu sou demasiado estúpida para perceber este tipo de arte).


Momento em que pretendi fotografar-me com a BC e o VS,
mas em que, talvez drivado a ainda estar perturbada com o diabo do jardim,
pus a mão no rabo da BC, e não, não foi para ter piada. Apenas pus.

Bailarina de pano
Não me levem a ver bonecas, que eu pasmo por horas.
Sei lá se Freud explicaria.

As sapatilhas de pontas de Margot Fontaine

Apeteceu-me um bocado fotografar este cartaz.
Por vários motivos, mas também porque parece que estão ali três erros numa só frase.
Mas, se calhar, é de propósito, e eu fui a única pessoa que não percebeu a piada.

Pensamento escatológico do dia # 12

Estava aqui a pensar, sentada na minha cadeira de pau azul (true-true-I-never-lie-to-you) — e não onde pensais, porque, conforme sabeis, eu sou uma senhora e não faço essas coisas —, no quão agradável que é ler em plena defecação, quanto mais não seja o catálogo do LIDL, ou um rótulo qualquer, daqueles que não têm só uma letra tamanho 3, mas também uns termos que só entende quem os escreveu, tipo Actinomicoses causadas por Actinomyces israelii (daqui, entendo o verbo e a preposição e é tudo). Quando eu ainda não era uma senhora, nem senhorinha sequer — e, por conseguinte, ainda fazia essas coisas —, lembro-me de proceder à evacuação dos espaços intestinais no recanto da casa-de-banho de serviço (eu sou desse tempo), onde se guardavam os detergentes todos. E, numa perspectiva perfeitamente futurista e visionária, instruía-me, assim, na verdadeira arte que é a lavagem da roupa e dos ladrilhos, lendo os rótulos dos pacotes e dos frascos, elucubrando teorias várias acerca do tema. Ora, isto, parecendo que não, contribui em larga escala para o relaxamento esfincteriano, e, consequentemente, para o bom porto da causa, que é, conforme se sabe, aquela águinha lá do fundo, que tudo recebe sem protestar, mas, em compensação — e felizmente —, sem nada dar em troca. 
Uma vez fui a casa de umas pessoas mais chegadas em termos de genética do que eu gostaria, e verifiquei que possuíam uma estante — uma pequena estante, com quatro ou cinco prateleiras, mas, ainda assim, uma estante — na dependência reservada à defecação. Dotada de uma irreprimível incapacidade para ficar calada, questionei-os acerca da peculiar organização dos espaços e arrumação dos móveis, e foi-me respondido que a estante é para quando o tio vai fazer cocó. Mas é que nem quis saber mais nada, não fosse o tio ter algum fétiche alternativo e os livros que lá se encontravam terem carácter meramente decorativo. 
Bom, no fundo, isto tudo para dizer o que já disse em parte lá para cima: estava aqui a pensar, sentada na minha cadeira de pau azul, que bom que era saber que, pelo menos, o meu blog é uma boa leitura de cagadócio.
Nem isso sei.
E se quero saber?
Às vezes.

20/09/2015

Tão 60's, tão bom

1970 ainda é década de 60, ok?

Chico-smart não me tem em grande conta # 9


Foi ainda durante aquelas férias, das quais já não guardo memória.
Tinha chovido, apesar de ser Agosto. 
E eu tentava explicar-me, via mail, que estava na praia, que nem uma rainha (pobres dos pobres de espírito, que pensam que uma rainha vive os seus dias na praia, deixando para trás os seus afazeres protocolares. Mas eu sou assim).
Então, chico sugere que eu escreva que estou na praia que nem uma...

Falta de semancol, como diriam os americanos do Brasil

À Karmen, amásia do Karma, que me faz cair as p. das tampas das caixas tuperware e similares, cada vez que abro uma das portas do armário da cozinha, em cima da cabeça. Querida, houve tempo em que isso acontecia com as tampas dos tachos — era cada chapelada! —, mas depois deixei de ser nova e passei-as para um dos móveis de baixo. Agora abro-o e as p. das tampas dos tachos caem-me aos pés, e depois no chão, com um estrondo de pratos de uma bateria, tinindo nos meus tímpanos encerados, esticando-me os nervos cranianos todos, pondo as gatas em transe súbito, de rabos em pompom; 

Aos condutores que percorrem as autoestradas do nosso Portugal pela faixa do meio, a 80 quilómetros por hora. E que precisam que o cabrão do sinal luminoso tenha escrito CONDUÇÃO SEGURA, CIRCULE PELA DIREITA, para se mancarem e mudarem, finalmente, de faixa. Para quando a berma de segurança como via verdíssima para esta gente? Obrigai-os a circular pela berma, desobrigai-os do pagamento de portagens, que eu voto em vós, candidatos!;

Ao pessoal que adormece nas máquinas do ginásio. Eu disse adormece e não pus nem itálico nem aspas. É que já apanhei um que adormeceu mesmo, na máquina que eu queria, porque me apetecia. Mas há também os que correm para a máquina no preciso momento em que a pessoa humana também se lhe dirige, sentam as nalgas, arrebitam os braços, fazem uma, duas, sete repetições, perdem-se na contagem (iam até às vinte e quatro, acham que fizeram quinze, mas, efectivamente, fizeram sete) e param, a descansar, depois a pensar na vida, a seguir a ver quem passa, e pronto, adeus mundo cruel, que nunca mais dão acordo, nem largam a p. da máquina. Para estes, além dos votos que deixo no final, vai o meu calduço bem assente nas nucas;

À família de pai-mãe-filho que frequenta o ginásio nos mesmos dias e horas que eu (ou vivem lá, ou enfiaram-me um chip para me controlarem as idas, ou há coincidências sim senhora, ó), queria dizer, só cá entre nós, ao pai e ao filho, que não: não vai acontecer — não vamos trocar telemóveis, mensagens, bom dia ou boa tarde, nem nada do que vos possa aos dois ir na vontade. A resposta para vocês, ambinhos, é: não. Façam de conta que eu não existo. A insistência nas aproximações físicas e nos vossos olhares penetrantes atingiu o pináculo sem pino nem tino, na mesma proporção que a minha irritação,

ide todos com a genitalinha.

Minha querida passarinha,

afinal, só sofria de unhas compridas. Vi-a arfante e inchada das penas, pousada no mesmo poleiro durante horas (que eu desse por isso, pelo menos das 8:30 até às 15:30), temi-me por ela e achei que estava em pré-morte. De todas as vezes que fui lá conversar com ela, mal me respondeu, com um daqueles piares sumidos que denunciam tristeza, dor ou mal d'amour, que, no fundo, são uma e a mesma coisa. Ocorreu-me, então, que podia ser efeito das unhas compridas, e eu, conforme já aqui disse sobejamente, sou manicure de pássaros e pessoas frágeis, que, no fundo, também são uma e a mesma coisa. E resolvi que era melhor aparar-lhe as garras, enormes. Pousei a gaiola na bancada da cozinha e fechei a porta, não fosse uma das gatas pensar que era dia de mudar de ração. Meti uma luva de borracha na mão esquerda e essa mão dentro da gaiola. Os dois passarinhos começaram a voar alvoroçados, cruzando-se um com o outro no brevíssimo voo, desenhando X dentro da gaiola. Mas eu apanhei um e fiquei com o peso sem peso na mão esquerda, que tinha a luva (cobardia minha, os meus passarinhos não me picam, nem mesmo quando lutam para se libertar do que os prende. Cada bico-de-lacre pesa seis gramas. São seis gramas distribuídos pelo corpo de um passarinho diminuto). Depois soltei-o e ele voou um bocadinho pela cozinha, feliz e assustado. Se pudesse, dava-lhe liberdade janela fora, mas isso seria a morte dele e a minha tristeza, dor ou mal d'amour. Voltei a agarrá-lo e cortei-lhe as unhas com o corta-unhas, que é com o que corto também às gatas. Pensando nisso por este prisma, sou manicure veterinária, é o que é. Meti o passarinho de volta na gaiola e percebi que tinha cortado as unhas ao que não aparentava estar doente. Por isso, agarrei no outro e repeti a operação, tim-tim por tim-tim, liberdade na cozinha incluída. Coitadinhos, precisam de uma precária de vez em quando. Foi nesse momento que, comparando os dois, percebi que era a fêmea, Bianca, que tinha estado com ar de quem ia morrer dali a pouco — drama queen, a dama, não achou melhor modo de chamar a atenção para a necessidade de tratar das unhas, do que ameaçar que se morria em breve, caso não lhe arranjassem uma manicure, já!. Neste caso, uma pedicure.

Está mais viva do que eu.

19/09/2015

Meio sábado já foi

Levantei-me da cama a um sábado às 8 da manhã, com a firme intenção de aterrar no Pilates de André às 9:30. Teria tempo para tudo o que tive, nomeadamente jogar candy crush, tomar o pequeno-almoço sem ter que abocanhar o pão e o iogurte como o tubarão do filme, preparar o saco (sem me esquecer de qualquer coisa de absolutamente fundamental — cada um pense no que quiser), equipar-me e alindar-me (só mais um nico). Dirigi-me à cozinha e verifiquei que um dos passarinhos está a morrer. Não percebi se é o Bernardo ou a Bianca, mas sinto-me em pré-luto, porque não sou sexista. Talvez o leve à vet das gatas, embora ela seja especialista em cobras e lagartos. Capaz de me internar o passarinho e me mandar amanhã levantá-lo, depois da alta, porém incapaz de voar. E eu trago para casa outro passarinho, contente e feliz porque ele se curou e é o milagre de Natal. Bom, preparem-se, que vem lá hysterical drama.
Decido vestir um dos vestidos brancos, mas não o encontro em lado nenhum, e então sou informada de que ele estava naquela máquina onde entrou o lençol de praia branco e preto, que tingiu tudo de... e tenho um segundo stroke, quando verifico que aquele meu vestido branco está branco-cinza-bufa, que há-de ser aquela a cor dos traques. OK, cosmos, o que me queres tu dizer, quando, no espaço de quatro semanas, vou no terceiro vestido que mando para o espaço? (Ai, que gira, esta anáfora.) Foi o verde, com óleo, depois o roxo — que eles dizem que é azul, mas eu vejo-o roxo e eles riem-se muito, assim como se riem na rua, De que cor é aquele carro?, e acham muita piada à resposta que eu dou —, não sei com o quê, agora o branco decotado e curto. Já não sei se foi a Mary Quant que instituiu a regra saia curta - tapa em cima, decote profundo - saia maior, mas aquele é decotado e curto, por isso uso um lenço a tapar-me toda quando o visto (ou o vestia, que aquilo agora parece um pum). Eu interpreto tudo isto como uma necessidade de o cosmos me transmitir Compra mas é um guarda-roupa inteirinho todo novo, apesar de a estação estar no fim, mas há quem diga que é só Desastrada do genital, vais ficar sem ter o que vestir em 4-3-2-1 segundos.
Isto tudo atrasou-me e já saí de casa transtornada, mas ainda achei que os dez minutos (que eram seis) que faltavam para as 9:30 me sobravam para dar uma boleia, e dei-a. É claro que me enganei no caminho, ou não fosse aquele um percurso que eu faço, pelo menos, cinco vezes por dia, de modos que, quando cheguei ao ginásio, já levava danos cerebrais de três descargas eléctricas, e passavam cinco minutos da hora da aula. Tentei tirar senha e a máquina respondeu-me que a sala tinha atingido o limite, e eu senti que também eu. Ainda assim, entendi por bem dos meus nervos ir lá espreitar, a ver se era verdade, e deparei-me com uma imagem de horror, que me trouxe uma associação de ideias de muito mau gosto, pois vi as pessoas todas deitadas e alinhadas, e então pensei É melhor não fazer o choradinho para entrar na aula, não vá passar por morta, e morta estou já eu, de cansaço e perturbações várias. Além disso, a semana passada Mr. Pilateiro saiu-se com esta: "Vocês vão começar a sentir que se passam coisas dentro da vossa barriga", e isso fez-me reconsiderar se aquele é o caminho que eu quero, efectivamente, tomar.
Olhem, meti-me na sala de treino a esgalhar isto tudo e um bocado a dar à língua, uma vez que apanhei lá uma treinadora que eu achei que estava mesmo a jeito, e dei-lhe corda e trela.
O sábado vai a meio, mas eu acho que aguento o resto. 


Mas ninguém cala este homem? # 6

Esta é mais grave do que a anterior, mas não tem a ver apenas com o facto de se relacionar com a imagem da criança curdo-síria afogada numa praia turca, que, já por si, tem o impacto que tem.

Revista Tabu, Jornal Sol, 18.09.2015

De resto, esta imagem já foi tão tratada, tão copiada, tão desenhada e depois redesenhada, tão reconstruída em areia, que, qualquer dia, aparece para aí uma teoria da conspiração a defender que se trata de uma montagem e ficamos todos mais descansados, porque até preferimos sentir-nos manipulados do que imaginarmos que existem mesmo homens maus. Outro dia vi a imagem da criança photoshopada para dentro de uma arena romana, e porra. Não me ocorre mais nada perante tanta cabotinice junta na mesma intenção gráfica, especialmente pelo mau gosto — desgosto — do resultado.

Aqui, chateia-me a legenda. 
montes de cadáveres
Eu quero crer que JAS não quis dizer isto. Não associou o substantivo — porque não é na forma verbal que aqui aparece o montes — a cadáveres. Não quis dizer montanhas de cadáveres. Não quis dizer pilhas de cadáveres. Nem resmas deles. É que não pode. Eu não deixo, porque não se me encaixa.
Mas também não sei muito bem o que é que quis dizer. Faltaram-lhe o artigo definido e a preposição? E seria Esta imagem fez mais pela causa dos refugiados do que as de montes de cadáveres? Também não pode ser. Redunda no mesmo. São montes, senhor.
É o montes que está a mais. É o montes que me incomoda. 
Talvez JAS tenha querido dizer, simplesmente, muitos: Esta imagem fez mais pela causa dos refugiados do que as de muitos cadáveres.
Embora menos, continua a soar-me mal, mesmo sem o montes. Ou os montes.

A substituição de muitos por montes costuma utilizar-se num contexto totalmente diferente deste, numa linguagem verbal que nada tem a ver com a jornalística, ainda mais em se tratando de um artigo tão sério: montes de bem, montes de chique, montes de completamente, montes de realmente, montes de tio. Um substantivo a fazer as vezes de advérbio, por graça, por snobeira, por cagança. Não numa descrição que se quer isenta e objectiva.

Montes de estupefacta.


Mas ninguém cala este homem? # 5

Obriga-me a associações de ideias desengraçadas, porém persistentes.
(E não, não sou eu que embirro com ele. Ele é que embirra comigo.)

Jornal Sol, 18.09.2015
(imagem gentilmente cedida)

Doidas andam as galinhas para pôr o ovo lá no buraquinho, Avô Cantigas

Ou será o eleitorado um ovo de Colombo, mistério resolúvel através de um raciocínio básico, mas cuja solução, milagrosa e mirabolante, apenas JAS descobriu?

18/09/2015

Das minhas associações de ideias # 5

Non sense everywhere, ou eu tenho problemas.
Imaginemos uma sala cheia de gente, onde está ligada uma televisão. (Agora chama-se LCD, ou plasma, ou monitor, e fala-se de polegadas). Estão muitas pessoas, algumas delas bastante idosas.
Penso que a escolha dos anúncios e o alinhamento da publicidade devem ser mais ou menos aleatórios, ou poderá mais ter a ver com questões económicas — o horário dos reformados, o horário das mamãs, o horário das crianças, o horário dos adultos (mamãs incluídas, calma) — do que com assuntos propriamente ditos. É de manhã, e é suposto passarem anúncios de cadeiras elevatórias para as escadas, tratamento de plantas, detergentes, colas para as placas dentárias, etecetera.
...
Mas passa o do Gino-Canesten.
Tudo bem.
...
Depois passa o do Super Gang dos Frescos, do LIDL, em que aparece o cogumelo a conversar connosco.


E eu faço uma associação de ideias.
...
Eu sei que é triste, mas fi-la.
E depois... depois, eu já tinha sossegado os diabinhos que me povoavam a mente, e veio outro anúncio.
Durex.
...
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Primeiro dia

Hoje levei-o, para apresentação na escola nova. Atrasou-se o bastante para que fosse urgente e indispensável a minha boleia. Chegámos um minuto antes da hora, mas parei o carro a uma distância suficiente para que não fosse visto comigo. Pior do que ter uma namorada velha e com carro é ser levado à secundária pela mamã. Abriu a porta, mas voltou a fechá-la.
- Estou com uma cólica.
- Isso são nervos, já passa.
- Eu não estou com nervos.
- Esqueces-te de que eu sei o que tu sentes.
- Os meus nervos não são por ir para outra escola, são porque preciso de uma sanita. Já.
- Penso que a escola terá, pelo menos, uma sanita.
- Pois, e eu vou-me meter a cagar, no primeiro dia de aulas, a dar um ganda props, feito cagão, Olha-me este gajo, veio à escola cagar-se.
Talvez devesse zangar-me, mas, disfuncional, ri-me até às lágrimas, agarrada aos olhos. Os dele, enormes, pousaram nos meus, lavados. Esperou que viesse o reequilíbrio e se fosse a cólica que também me roía, de mais um golpe no cordão. Riram também, e então saiu do carro, liberto e apaziguado.


Habitantes do mesmo planeta

Incompreensível como é que, precisamente o rapaz, o único macho que pus no mundo, é o mais parecido, não, corrijo: é o igual a mim. 
Isto passou-se no dia em que fomos juntos e sozinhos comprar a prenda de anos da irmã mais velha. Queríamos uma loja específica, que nem um nem outro sabíamos muito bem onde ficava. Mas tínhamos uma ideia — algures perto do centro do Centro. 
Desaguámos no monstro comercial como dois ETs que tentam passar despercebidos no meio de uma multidão de nativos.
Começámos a percorrer os arruamentos todos, um a um, sem sabermos muito bem como encontrar a loja, que mal localizávamos na nossa lembrança difusa e na nossa imaginação fértil comuns. Nem a frequência com que vamos àquele espaço nos pôde valer. A loja sumiu-se do mapa do centro, do mapa mundi ou só do nosso mapa. Eventualmente, teremos percorrido o mesmo arruamento duas vezes e algum dos vários outros, nenhuma. Achámos que já tínhamos dado a volta toda e então eu dei-lhe o braço, porque começámos a passear, totalmente alheios ao monstro e alheados dos indígenas, esquecidos do que ali nos tinha levado, conversando cá sobre as nossas vidas, despreocupados do que poderíamos parecer, por nos sermos. Podia alguém pensar-nos namorados de amor sem idades, condenando-o a ele por oportunista e a mim por depravada, mas nenhum julgamento possível — ou impossível, basta olhar para nós e torna-se evidente que nos pertencemos — nos tirou um segundo e por um segundo a felicidade do passeio, nem desfez o laço dos braços que nos enlaçaram nele.

17/09/2015

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar a passear à rua # 12

Posso ser sarna só mais uma vez esta semana, ou já esgotei os créditos todos?


Sou só eu que acho que estas férias nunca mais acabam?

Início do ano lectivo a 21 de Setembro? Há quantos anos é que as aulas começam na primeira quinzena?

Já sei: poupa-se nos ordenados de milhares de professores não colocados até ao final do mês — como todos os anos — e, a 4 de Outubro, os pais (eleitores...) ainda não se aperceberam, porque ainda não tiveram tempo, da buracada e da barracada dos horários dos filhos. 

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