26/10/2019

A herdade

(Se acharem que é spoiler, é não lerem # 13)

Após insistências várias, algumas com cariz ameaçador, cá venho então falar do filme "A herdade", antes que me esqueça de tudo.
Pode parecer que não, mas gostei bastante, pelo menos das partes que vi, por estar acordada. Vá que pestanei um nico ali aos minutos 122 e 157. Ninguém manda aos realizadores portugueses fazerem filmes de duas horas e três quartos, quando a história até se contava em menos de metade e ficávamos todos felizes na mesma, designadamente pessoas como eu, que sofro daquele síndrome das pernas inquietas, razão pela qual, se estou parada num sítio muito tempo, sou acometida de um ataque de pernas, dá-me o ó-ó e depois só mesmo xonando-as é que me sossegam os membros inferiores. 
Por outro lado, ainda não percebi a cena dos grandes planos do pessoal de costas, é uma grande falta de educação para com o público, mas estamos na missa ou quê? Começo a pensar que os planos de costas estão para o cinema português como o nu frontal está para o cinema francês: é um estilo. Mas achei escusado e um crasso erro histórico a cena em que o Joaquim, capataz, encarregado num monte alentejano - o que nunca é dito, mas a paisagem não engana, embora tentem enganar-nos com a léria dos arrozais - aparece de mãos nos bolsos, de costas, claro, a menear a peida como uma flausina. Isto é impossível alguma vez ter acontecido no Alentejo de 1973. Assim como é impossível que o carro do dono do monte seja um Mercedes dos anos sessenta do século passado, mesmo que ele fosse um coleccionador, apreciador de clássicos: naqueles terrenos, ninguém se deslocava de clássico. Isto, é claro, se não considerarmos que a marca deu uma achega para esticar o filme até às quase três horas. 
Enfim, fora estes pequenos lapsos que só as atentinhas ao que não interessa como eu é que reparam, o filme tem uma história bem conseguida, cheia de verdades, lembranças e algumas subtilezas (a paternidade daquelas crianças, toda trocada), tem uma fotografia muito razoável, e interpretações francamente boas. Albano Jerónimo, que não tem culpa de ter um nome de merda, mas que se revela gigante (em sentido estricto, o homem tem quase dois metros). Interpreta um proprietário de bem com Deus e o diabo, mas de mal com a vida, de um blasé mais actual do que pertencente à época, mas que faz valer a pena o filme, especialmente na cena em que dança com a cunhada. 
Não sei se já disse que gostei, mas também não me apetece ler aquilo tudo lá para cima. Ide ver (o filme), se fazeis o favor.

25/10/2019

Tive um OVNI na blusa

Vamos só supor que me encontrava em pleno Alentejo com lei, precisamente porque tencionava vender umas terras que para lá possuía, a meias, collants e soquetes com outros parentes, numa compropriedade que já só nos trazia ralações e despesas. 
(A propósito de Alentejo, tenho que vir aqui stalkar um bocado o filme "A herdade", mas agora não. Lembrem-me.)
Encontrado o comprador, redigida a promessa de compra e venda, faltava apenas assinar o dito documento, pelo que marcámos encontro ali perto, uma vez que, por outros motivos alheios a este, tinha que me deslocar até ali. Isto, só para que percebam o enquadramento, o contexto e também a paisagem. Pelo caminho, havíamos visto muita fauna voadora: cegonhas que vivem em autênticos condomínios em torres eléctricas, águias, falcões (vai ser a bonita quando e se o aeroporto passar para o Montijo), e outros mais pequenos, tipo tordos e assim. 
Ora, nesse dia, havia eu vestido uma blusa de decote em bico (em V, vá), entalada nas calças. Estava o comprador a acercar-se da gente, como diz o povo, e, subitamente e sem qualquer hipótese de preparação, entra-me uma coisa voadora para dentro da blusa, através do V. Não sei explicar o que foi, se mosca, se abelha, se pássaro, se drone. Um objecto voador não identificado, literalmente. Na aflição da cócega, deito a mão ao decote, depois blusa adentro, ai, que tenho um bicho, ai, um bicho, mas é que o animal (?), que nunca cheguei a ver, portanto até podia ser um F-16, deu em descer blusa abaixo, e já o sentia na cintura sem conseguir retirá-lo de dentro da roupa, ai, o bicho [se isto não dava uma coreografia para o Iran Costa...?], pois então não é que me vi na contingência de ter que desentalar a blusa das calças e dar uns quantos saltinhos, até ter tido a certeza de que a criatura havia sido libertada, tudo isto diante do espanto/fingimento de não ter visto nada por parte do comprador?
Bom, o que importa é que nos livrámos do enguiço, pois ele, impávido, assinou e pagou.


16/10/2019

As minhas faneras e eu

Agora é isto: de quinze em quinze dias, ou catorze, se quisermos ser rigorosas, lá vou arranjar as unhas com Filipa, após pazes que houve que fazer, por conta de quase me ter arrancado as dez (e não as vinte pois nesse dia não estava a "fazer" os pés). 
Acho que já disse aqui várias vezes que tenho trauma com cabeleireiros, toda eu sou suor e lágrimas quando entro, às vezes sangue, como daquela vez em que Filipa me sangrou as pontas dos dedos até à chicha. Hoje entendi fazer dela minha psi, não que lhe pague para o efeito, mas porque me apeteceu tentar desbravar terreno pelos meus traumas afora. Quis entender o porquê de aguentar estoicamente a broca do dentista, mas, mal encaro com a tesoura da cabeleireira ou os cutelos da manicure, toda eu sou sofrimento mais ou menos em silêncio, se descontados os suspiros e as interjeições.
Foi então que me lembrei de que, quando era petiza, isto ainda estudante ao nível do jardim de infância, um galfarro que frequentava a minha sala de actividades, me entalou a mão direita na frincha da porta, com uma violência tal que uma das unhas saltou directamente, pena que não para a glote dele. Estimo que hoje esteja barrigudo e careca. E sem unhas. Aquilo foi coisa para me fazer desmaiar, numa épica cena em que perdia os sentidos e acordava, e assim sucessivamente, pois as dores eram tantas que voltava a perdê-los, isto até a empregada me ir buscar (porque nós éramos chiques e os meus pais trabalhavam os dois, não existiam telemóveis e o contacto de emergência era o de casa, não vão já achar que eu era uma criança abandonada, criada pela criada, sei lá) e eu ainda desmaiar mais umas quantas vezes em cima da pessoa. Depois andei muitos anos com uma unha torta e diferente das outras, sensível e coitadinha.
Portanto, isto, quanto a unhas, retenho este trauma infantilóide.
Já quanto a cabelos, aconteceu uma vez, teria talvez dezasseis anos, em que sonhei que me tinham cortado o cabelo curto, e, assim que acordei do pesadelo, dirigi-me ao cabeleireiro e pedi que me cortassem a melena igual à da Isabelle Adjani, só que a bruta deve ter percebido mal o meu imperdonable french e deixou-me igual à Lara Li. Enfim, foram meses até esta bodega chegar aos ombros, mas meses de auto-bullying no liceu, coisa mais confrangedora sair à rua sem antes tentar esticar a peruca com a escova e o secador, que naquele tempo não havia géis nem espumas, era tudo tão atrasado, parece que saí da Idade da Pedra Lascada, mas de debaixo de uma pedra, mesmo.
Também podia ter ficado traumatizada com dentistas, pois entre os dez e os treze anos tive um que me brocava os molares todos até ao nervo sem anestesia, mas é possível que haja uma sádica em mim, e isso não me demoveu de me sentar (e deitar!) na cadeira de outros dentistas que lhe sucederam, provavelmente porque o maluco já tinha brocado tudo o que havia para brocar nesta minha cavidade bucal. Muáháháháhá.

10/10/2019

Lá a ver se eu não tenho cara de parva/desocupada/aérea/invisível

Estou eu muito bem na loja de tecidos, com a firme e inabalável intenção e uma grande vontadinha de comprar sete padrões diferentes que me estão debaixo do olho e quero levar debaixo do braço, aguardando a minha vez, detentora da senha 77 e sem ter reparado onde diachos ia o contador delas, quando uma das duas únicas funcionárias ao balcão me interpela com aquele menear de cabeça, "A senhora?", e me ponho a debitar tudo o que quero, apontando para a estante com o dedito indicador, "Quero um metro de cada um daqueles sete". E vai ela, nisto, e põe a manita aberta em sinal de STOP e diz-me assim: "Importa-se só que atenda esta senhora primeiro?". Vá que considerei que a tal dita senhora podia ter chegado antes de mim, que, inebriada pela beleza dos tecidos, associada à matemática que fui fazendo - sempre a somar o que, contas feitas a final, resultaria numa subtracção para o meu lado -, lá lhe disse que sim com a cabeça também, mas a minha acompanhada de um leve sacudir de ombros. Então, ela atendeu aquela senhora, pois muito bem, aviou-a, recebeu o pagamento, deu o troco, e aconteceu que entrou outra na loja, que essa vi bem que já foi depois de mim, e a do balcão vai e desata a aviá-la também. Eu, de senha 77 na mão, já a hiperventilar, a sentir a desagradável sensação da invisibilidade, que só me dá quando não faz falta nenhuma. Incrédula, vou de perguntar qual é o critério ali dentro, que a pessoa que me estava a atender já vai na segunda cliente que atende na minha vez, e é então que entra em cena A Colega, a questionar-me - e talvez muito bem - qual é o número da minha senha. Eu digo "77", como quem diz "33", e ela esclarece-me que o contador ainda vai no 64. É quando rio, de nervos. A loja é pequena, para além de mim, enquanto freguesas, estão mais três pessoas: a que está a ser aviada pela minha caixeira, a que está por conta d' A Colega e uma outra desgraçada que está ali há horas a ver passar navios em alto mar. Em suma, se é que faltam treze pessoas para a minha vez, capaz de terem ido todas tomar café juntas ali à esquina e ainda vão aparecer de surpresa, com aquela merda da tolerância de duas senhas como argumento para me ultrapassarem na bicha. Com sorte, serão treze prioritários, todos grávidos e velhos acamados, aleijados a arrastar o soro e malucas com um calmeirão de dezoito anos ao colo, ai queres ver que é hoje que eu me passo? A que estava a atender-me veio então com um sorriso que eu nem percebi de que cor (para aí verde) e, como sou assim intransigente e já tinha mudado de ideias porque contrariada, mandei cortar meio metro de cada um dos sete tecidos, e sim, gosto de dar trabalho às pessoas que merecem. Está ainda ela a cortar o segundo meio metro, ou seja, já eu era possuidora de um metro de trapo, quando me pergunta, nem percebi se para me provocar ou só porque é das que gostam de apanhar: "Importa-se só que eu atenda aquelas duas senhoras que acabaram de entrar, e já volto aqui para cortar o resto dos tecidos?". 
Foi a raiva.
Foi o espectáculo: a pequena multidão embasbacada.
Importo. Aquelas duas senhoras vão esperar a vez delas, como eu já esperei a minha, aliás, por duas vezes. Não percebo os seus critérios, nem quero perceber. Quem é que lhe diz que eu não estou com pressa? Que não tenho uma vida para além de estar aqui de gesso, à espera de ser atendida? Que eu não tenho um tacho ao lume? Ou um alguidar de roupa na lixívia?
Caladinha, cortou - a direito - o resto dos tecidos, pagou-se e ficou, ela e as outras duas, mais A Colega, a verem-me sair a bater o salto alto, um nico fula, depois de ter dito, em tom de promessa-ameaça: "Eu volto."

07/10/2019

como é fino o manto da violência

Os meus olhos pousaram naquela menina que cirandava, esvoaçante, em volta da mesa da esplanada onde se encontravam alguns adultos, podiam ser dela parentes ou apenas aparentemente aparentados, todos a ela alheios, ou até podiam não lhe ser nada. Tinha um pequeno laço no cabelo encaracolado, o vestido era de flores bonitas e calçava ténis de marca cara e visível. Imaginei-lhe uns quatro anos, talvez já cinco, perdidas as dobrinhas de bebé, não a candura infantil de quem ainda tem tanto para sonhar. E nisto, levantou-se da mesa uma mulher muito jovem, no semblante a contrariedade, pensei eu que por ter interrompido o café com os amigos, percebi logo depois que o motivo era então outro: a criança havia feito chichi na roupa, talvez à quarta ou quinta tentativa de que a mãe a levasse onde é próprio uma pequena adultazinha fazê-lo, não estivesse esta largada à sua sorte no meio de adultos grandes e surdos. Chocante foi a forma como percebi, eu e quem ali estivesse ou fosse a passar, que a menina havia feito chichi nas calcinhas: a mãe levantou o vestido de flores bonitas, agora tristes, e exibiu a roupa interior molhada da filha - aborrecida, zangada, ralhando. Ainda que nada disto houvesse feito, o vestido arregaçado, a roupinha devassada, os olhos pregados no chão, chegaram.

02/10/2019

And that awkward moment # 57

em que me dirijo ao quiosque-café-esplanada, que até deve ser também restaurante, bar, e, soube-o ontem, discoteca e micro Hyde Park, ou não fora uma das funcionárias se encontrar na zona da despensa do mini cubículo, a dançar uma dança sensual qualquer, tipo do varão, mas sem o dito, e haver um senhor, sentado na relva, a discursar chorrilhos contra o Governo da república portuguesa e outros que tais, que tanta náusea e vernáculo lhe instigavam. 
E então, solicito à gaiata que está atrás do balcão — não à que dança, a essa não ia interromper a manifestação artística — um "pão com queijo", mal suspeitando eu que iríamos iniciar o proveitoso diálogo adiante registado.
- Pão com queijo, não tenho.
- Tem, sim, que ainda a semana passada aqui comi um.
- Não temos. - Generalizou a um problema da empresa. E sorriu, tonta.
Dirigi-me então à pequena montra e mostrei-lhe O pão onde poderia, sei lá, na loucura e por absurdo, colocar uma fatia de queijo. 
- Ah, esse pão é para as sandes de queijo. 


Bloqueada. Desiludida.
Deslarguem-me. Desenervem-me.

- Então, é isso que quero.
Depois pus-me a pensar e achei preferível fazer a destrinça entre sandes e pão com.
- Qual é a diferença entre uma sandes de queijo e um pão com queijo?
É que também acredito naquilo do aprender até morrer.
Mas sorriu, a tonta.
- Não sei...
Olhem, eu é que não sei. E também não fiquei a saber. Sei que já tive aquela idade há cerca de milhares de anos, e nunca fui tão tolinha.
Devo ter perdido alguma coisa pelo caminho.