22/11/2022

Qualquer dia metem-me uma camisa de forças

Foi a segunda consulta com o dentista dos olhos bonitos desde que acabei os tratamentos. Isto, para explicar por que é que fui lá duas vezes no espaço de um mês e meio: havia-me queixado de que um dos dentes de baixo estava a sair do lugar onde os ferros que ele me pôs o tinham colocado e ele disse-me que me ia pôr um bracket. Por acaso, estudei a questão no Google, a ver se percebia como é que se prende um único bracket e não tirei conclusão nenhuma, pois tal possibilidade nem sequer existe. Mas siga.

(Eu sou aquela pessoa que tirou o aparelho semanas antes de começar uma pandemia a nível mundial e se viu obrigada a usar máscara.)

O dentista tinha-me pedido que levasse todos os aparelhos de contenção que tivesse em casa, e eu assim fiz: levei os três que parti (e ele desistiu de me fazer o quarto, ao contrário de cônjuge noutro sector) e o do branqueamento, todos muito aconchegados numa caixa bonita e cor-de-rosa que alguém no hospital se viu obrigado a oferecer-me em tempos, quando estive internada com covid e me deitaram o aparelho para o lixo. Após pé de vento (meu) e buscas intermináveis (delas) no lixo do pequeno-almoço de um piso inteiro, sei lá se misturado com fraldas, lá apareceu o meu aparelho, que eu só sei que era mesmo o meu porque me servia. Entretanto, fora desinfectado, a acreditar no que disse a responsável que mo devolveu. Mas siga.

Ia aqui a vítima de todos os improváveis muito bem a caminhar no passeio, cai-lhe a m. da caixa para o chão, abre-se e espalham-se todos os aparelhos na calçada portuguesa. Que contratempo, andar ali de rabo para o ar a pescar transparências de plástico, uma em cada ponta do passeio. Isto que sirva de exemplo aos donos dos cães: por piedade, apanhem sempre os dejectos dos vossos bichos, porque pode vir uma idosa e deixar cair a placa em cima de um.

Chegada à cadeira do dentista, ele pede a Sónia “Compósito” (que mais não é do que Supercola-3, passe a publicidade) e desata a espalhar cola em cinco dentes de baixo. Dos meus, entenda-se. Nisto, toca o telefone e ele faz o que nunca fez: vai para a sala ao lado atender. (Passarinh@ nov@?) Senti tanta liberdade que resolvi fechar a boca, não ia ficar ali feita boneca insuflável à espera que ele voltasse. Foi o horror: o “compósito” colou-se-me aos dentes de cima, por dentro, e à língua. Além disso, sabe a quê? Supercola, gasolina, benzovac? Sei que, no pânico, clamei por Sónia, só assim a mexer os lábios, que imediatamente me socorreu, qual bombeiro, de aspirador e jacto em punho, e me aspirou, enquanto ejectava água, os dentes e a língua. Quando o dentista regressou à sala, estava eu de língua de fora e Sónia (que, como sabem, tem o desejo inconfesso de me assassinar através da aspiração das minhas amígdalas) de aspirador em punho a aspirar-ma. 

(Acho que, sem querer, criei uma nova dieta. Vou registar a patente.)

Saí de lá com os cinco brackets e pedi elásticos cor-de-rosa: laço rosa, de Outubro rosa.


19/11/2022

Meu cabelo, minha cabeça

A mulher da franja esquisita, que se lhe espeta nas pestanas invisíveis e roça os olhos pequenos implantados sobre fundas olheiras perguntou-me, olhando atenta para o meu cabelo — que, por Cristo, é a coisa que eu tenho de mais preciosa logo a seguir à saúde dos meus filhos —, “Quando é que dás uma boa tesourada nisso?”, o que pode ter sido talvez, quem sabe?, a pergunta mais idiota que me fizeram no último ano, ou então na vida toda. 
O meu cabelo ainda não tem tamanho de gente, não faz um rabo-de-cavalo, não tenho uma melena a tapar-me um olho, mal chega à linha do colar, ainda que o estique muito. Mas tem muita personalidade, uma vida própria, um viço bonito, uma movida única. Enrola-se, quase se encaracola, não tem uma ponta espigada ou fios quebradiços. Eu gosto dele e estou profundamente convencida de que ele gosta de mim.
Tenho saudades de Natércia, em contrapartida. Ela foi a minha cabeça durante tempo que não contei, deu-me coragem e a quase doce ilusão de que só eu sabia, na rua ninguém poderia julgar-me e logo colocar-me naquele corredor dos condenados. Podia olhar-me ao espelho sem me lembrar que a vida é parva e curta e injusta e inesperada. Anteontem pu-la na cabeça, sozinhas no quarto, só ela e eu, e, ao contrário do que acontecia quando estava sem cabelo, reconheci-me ao espelho, “Olha eu, quando a angústia me comia os dias e, mesmo assim, me sentia bonita quando a punha”. Guardei-a na caixa dela, muito bem acondicionada, fiz uma festa naquela minha cabeça e pedi à vida para que não tivesse algum dia que voltar a abrir aquela caixa.

16/11/2022

Dia de sorte

Bati todos os meus recordes de frequência de locais públicos temidos (como aquela ministra) numa só manhã: dois centros de saúde e uma repartição de Finanças em menos de duas horas. 

Tudo começou nos anais, há meses, quando uma senhora enfermeira me avisou de que era conveniente pedir um atestado com vista à isenção de pagamento de taxas moderadoras. Já possuía um papel desse género, ainda argumentei que já fui dador de sangue, mas que não, que qualquer dia teria que pagar os tratamentos e essa ameaça pôs-me nas tamanquinhas e pés a caminho para o centro de saúde da área da minha residência, que era não me lembrar onde fica e juraria que era em Santiago do Chile, a avaliar pelas instalações do barraco que se arroga como tal. Lá me esclareceram que não era ali, que era acolari, mas que mandasse um mail para lá, que agilisava assim o procedimento. A bem mandada do costume assim fez, e vai que recebe uma resposta a solicitar uma data de papelada a comprovar que eu sou eu e que a doença é minha. Aparentemente, existem humanos que, para não pagarem cinco tostões por uma consulta e para estarem eternamente “de baixa”, forjam doenças. Reencarnem-me numa macaca, dá licença? Enfim, depois de ter enviado tudo o que me pediam, recebi como resposta que teria que comparecer a uma junta médica, a ser marcada a seu (deles) tempo.

Passaram-se largos meses, recebi a marcação e ontem compareci. Fui extraordinariamente pontual, e, talvez por isso, fui chamada cerca de quatro minutos depois de ter entrado. Tive a nítida sensação de que tinha entrado num tribunal com um colectivo de juizes, só que vestidos de branco: três médicas idosas, todas de óculos, todas de sobrolho levantado, até que me sentei na cadeira do réu/ arguido/ testemunha e todas desanuviaram os semblantes em simultâneo assim que eu disse “bom dia” e sorri. Perguntaram se levava relatórios e eu saco do meu dossier A4 com lombada alta e digo que sim, “Está aqui tudo, por ordem cronológica”. As três em uníssono e sincronia gestual, “Deixe estar, não é preciso, traga-os daqui a cinco anos quando fizer a reavaliação”. 

Foram menos minutos de junta do que de espera. Dali saí com um atestado de incapacidade para aturar fretes e duas cópias: uma para o centro de saúde de Santiago do Chile e outra para a respectiva repartição de Finanças. No tal barracão demorei talvez meia hora, pois tinha vinte pessoas antes de mim, mas as duas dos guichês aviavam à velocidade de um pum. Só tive tempo de entabular conversações com uma senhora que me disse que nasceu em 1940 e que lhe doía muito um ombro. Tive vontade de lhe dizer: “Peça uma mamografia à médica para anteontem”, mas refreei a PDM de ser mãe do Mundo ou paranóica de serviço, que, conforme se sabe, equivalem ao mesmo. E pronto, fui para as Finanças, a calcular quantas famílias da etnia lá estariam dentro e se não seria melhor ir noutro dia. Devia ser o meu dia de sorte, pois fui atendida como se fosse a rainha de Inglaterra (enquanto viva) e mimada até à moleza (“A senhora nunca se ponha na fila quando aqui vier, a senhora é prioritária”), até pensei que estavam a confundir-me com a Gisele Bündchen.

Senti-me com sorte, como naquelas pesquisas online, passei numa papelaria, ia jogar no Euromilhões, já tinha as moedas na mão, mas depois vi que havia cromos do Mundial e torrei-as todas, porque tenho mais necessidade de fazer uma pessoa feliz do que de ganhar a fortuna que, provavelmente, arruinaria o resto da minha vida.


14/11/2022

Mais do que nunca, Sempre Mulher

Podia ter corrido tudo mal, mas as expectativas nem sempre batem certo com a realidade: minha companheirinha e eu chegámos em cima da hora porque o ponto de partida mudou de lugar e não prestámos a devida atenção ao mail de aviso, mal pudemos fazer um aquecimento, a desorganização da prova também era alguma, porque o tiro (sob a forma de papelinhos coloridos) de partida foi dado ao mesmo tempo para a corrida de competição e para a caminhada, uma multidão de cor-de-rosa pelo Parque das Nações afora, esta aqui a ligar a aplicação das corridas, o mp-3 a cair da bolsinha, um phone a saltar e pop, quase a arrancar-me um tímpano, isto tudo em simultâneo, claro que o primeiro pensamento/ desejo foi sentar-me à chinês só a sentir a brisa do rio e defecar para a corrida, mas isso significaria desistir, verbo que eu risquei do meu dicionário. Ainda bem que continuei, mp-3, phone e dignidade recuperados. O percurso também mudou e corremos na direcção da Ponte Vasco da Gama (sob a, entenda-se) um caminho sinuoso cujo primeiro quilómetro é de calçada portuguesa rebentada pelas raízes das árvores  — e obviamente que houve quedas — e um intenso cheiro a urina, o que foi bastante estimulante para aqui a gazela acelerar o passo, só naquela de me livrar do amoníaco alheio. Mais adiante, fomos então brindadas com a bela imagem do Tejo em modo maré baixa, um lodaçal de aroma a enxofre, o que, lá está, estimulou à pessoa mais um sprint, ora, se fechasse os olhos julgaria ter corrido na direcção de um WC público de xafarica. 

Por tudo isto e mais mil razões, que são as principais,  custou-me os chifres do diabo alcançar a meta, que cheguei a ponderar estar invisível. A meio do percurso tinham-me dado uma garrafa de água — que ainda estou para estudar como é que se bebe enquanto se corre sem se enfiar parte do líquido narinas acima e que a restante escorra queixos abaixo —, pelo que tive que abrandar uns dez metros, bebi metade, ofereci a outra metade à relva e arrependi-me logo daquela espécie de ida às boxes, pois constitui um excelente incentivo para não recomeçar e nos deitarmos no chão a relaxar. 

Enfim, cheguei à meta. Levei quase quinze minutos mais do que levava antes da cânser (sim, inventei uma palavra, um verbo novo: cânser. Ex: “Tu dás-me cânser com essas atitudes”; “Não me cânserem a beleza”), mas menos dez do que levei aqui há umas semanas, em que me meti na passadeira do ginásio e, quando de lá saí, só não regressei de ambulância porque tinha ido com o meu bebé e ele conduziu-me até ao lar. 

Eu chego lá (não sei bem onde). Devagar, mas chego.


09/11/2022

Hipocrisias

Reza a quase lenda que no próximo sábado me deslocarei ao campo, sei lá, conviver com a Mãe Natureza, as árvores e os passarinhos, e ainda com uma montanha de pessoas da minha idade chatas como a potassa. Acho que é o aniversário do anfitrião, que foi vagamente meu vizinho de cima durante uns anos e jamais nos convidou para o que quer que fosse, uma vez que não temos cromos para a troca, e agora, espectacularmente, lembrou-se. De caminho, deixou cair que tem uma amiga a quem foi recentemente feito o diagnóstico de cancro e que está um pouco perdida. A besta que me habita concluiu que talvez, quem sabe, estaria na lista de convidados do ex-coabitante para fazer, totalmente à borla — ou não, pois uns croquetes e umas empadas de galinha devem contar como honorários —, psicoterapia à amiga do dito coiso. Levei mais de uma semana a dar o sim, mas mal sabe ele que a minha ida está dependente de factores tão aleatórios como a mood com que acorde nesse dia, o estado do tempo e se a roupa secou no estendal. 

É verdade que recebi muito apoio, que me foi absolutamente precioso, aquando do diagnóstico e tratamentos. Mas recebi-o das minhas pessoas, assim como de algumas que, apesar de nunca ter visto, me estão no coração por me terem dado a mão quando não tinha nada nas minhas para dar, a não ser medo — que, como se sabe, é constituído por uma matéria ora viscosa, ora dura e cheia de arestas pontiagudas e são poucos aqueles que estão dispostos a ajudar-nos a carregá-lo. É também verdade que não tenho nada para dizer a uma pessoa que recebeu agora o diagnóstico de cancro. Detesto clichês, já aqui o disse trezentas vezes e repito, não quero ver-me num papel que não sei interpretar, “vai correr tudo bem”, “isso passa”, “é só cabelo, depois nasce mais forte”, porque não acredito piamente em nada disto, ou melhor, nada disto é ciência infalível, aplicável a todas as pessoas. Na minha cabeça “Vais passar às portas do inferno, vais comer o pão que o diabo amassou, vais acordar todos os dias com uma dor ou uma ferida novas”, na minha boca “Vai correr tudo bem”? Eu não sou assim, se calhar o melhor é não ir. Porque ou me apanham muda, ou me apanham calada, para não ser cruel. Ou crua, enfim.



01/11/2022

A linguagem do olhar

E ali estava eu na sala de espera dos tratamentos de quimioterapia, por conta de uma injecção que tomo a cada vinte e um dias, estava também uma multidão que enchia a sala, e estava ele e a mãe. Não foi a primeira mãe de um rapaz da idade do meu que por ali vi, já vi o desespero e, como aquela, a raiva, a dureza nas feições, a revolta revestindo-lhe toda a linguagem corporal como uma pele cheia de eczema. E depois, os olhos dele cravados em mim, numa interrogação ininterrupta, talvez porque o meu cabelo — que tem sido a metáfora de todo este percurso — denuncie que já vou lá mais adiante, já passei por ali e posso talvez contar como vai ser, como é, como foi. De vez em quando baixava a cabeça na direcção das duas mãos brancas e pequeninas, unidas numa prece — ou seria uma súplica? —, de um corpo tão comprido, pernas a perder de vista e de repente um menino, de todas as vezes que levantou a cabeça da desesperança foi nos meus olhos que depositou os dele, “Vou sair daqui inteiro?”, e os meus “Diferente, mas inteiro”, a querer dar alento quando nem para mim tenho que chegue. 

Levantei-me da cadeira antes de ser chamada para tomar a injecção, na boca emudecidas as palavras que nunca quis ouvir, “Vai correr tudo bem” [“O que é que tu sabes?”], “Vai correr tudo bem, filho, a mãe está aqui”, o que é que eu sei?, e fui esperar em pé, junto à sala de tratamentos, longe da vista, longe do coração.