31/01/2023

Esvaziada

Dizem eles que isto é o “síndrome (ou fenómeno? Ou dor?) do ninho vazio”, que sabem eles do que significa o momento em que o teu primeiro amor pequenino sai pela porta da casa que a viu crescer dentro de ti, parece mesmo que choram as paredes, e tu agora a tremeres das asas que a envolvem, ela tremendo as asinhas aninhadas nas tuas, saiu de ti e coube sempre inteira nos teus braços, que hão-de ter esticado ao longo do tempo, ambas sem saberem muito bem como — e também porquê — segurar o que os olhos teimam em deitar, vai agora experimentar o Mundo sem que possas picar o teu voo para a apanhares se ela for a cair, sem os beijos da noite e os sorrisos estremunhados da manhã, vai também ser feliz no ninho que construiu com mérito, talento e esforço, devias estar a rir, e até estás, há um peito cheio de ar puro, orgulho e boa esperança imediatamente abaixo dessa garganta apertada de medo e saudades, já.


21/01/2023

Como uma filha

Não sei se tu és crente, filha,

diz-me, à laia de pergunta, aquela que é o legado mais precioso deixado pelo meu pai: uma tia, já velhinha, a quem abraço muito quando — dolorosa porque raramente — nos vemos. Vivemos à distância da primeira para a segunda capital do país, o que parece pouco, mas é muitíssimo, se considerarmos outras distâncias que não constam do mapa. 

Sou, tia — digo, mais para a sossegar, mas não mentindo completamente —, pelo menos, sou uma crente interesseira, pois é d’Ele que me lembro sempre nas maiores aflições, e se eu tenho tido algumas, ou até demais. Mas não me metam com padres, que isso já não dá para mim.

No Verão passado estivemos juntas, pude rever as minhas primas e apertar nos braços aquela que perdeu o único filho para a doença que me queria levar agora a mim. Foram demasiados anos sem poder fazê-lo, esperava dela alguma mágoa, interrogações várias, mas fui encontrá-la apaziguada com a vida, não conformada, mas também não revoltada. Certamente à custa de muita terapia, mas, fundamentalmente, resultado de uma educação de amor e de um carácter limpo e bem estruturado. Sei agora, pelo meu próprio exemplo, por que é que há pessoas que se afastam diante do sofrimento dos outros: ele é insuportável porque reflecte a possibilidade do nosso. Mas também sei agora que nunca mais somos capazes de esquecer esse adeus, se não tivermos a força gigantesca e a delicadeza da minha prima Teresa, mais rara que um diamante entre rochas.

Sabes, filha, eu rezo todas as noites e peço a Deus que me dê uma morte suave. Peço também pelas minhas filhas e por ti, não peço por mais ninguém.

[Nem pelos netos, nem pelos bisnetos?]

É que te tenho a ti como uma filha.

E aquilo caiu-me dentro do peito: a irmã do meu pai, que tanto mo lembra, agora é minha mãe, e isso faz um sentido tão certo que não contesto e agradeço toscamente, “Ai que bom, agora tenho outra vez mãe”.


08/01/2023

A vida continua

Estávamos à espera de começar a dançar, ambas sentadas a beber água — hidratar antes, durante e depois —, ela muito jovem, muito generosa de carnes, os olhos sempre numa tristeza de dar dó e mimo, mas a gargalhada mais fresca e absoluta dos meus últimos tempos e, seguramente, a melhor dançarina de uma sala com trinta e sete lugares, invariavelmente todos ocupados. Falámos do dia em que me senti mal a meio da aula, na verdade foi logo ao início, mas forcei-me a ficar até faltarem só uns minutos, para sair de rompante sem correr, umas quantas piruetas haviam-se transformado em dezenas e puseram-me em looping, já tinha feito uma sessão de quimioterapia e achava que podia continuar a fazer a minha vida, porque a vida continua. Nesse dia, ela tocou-me num braço só ao de leve, apenas as pontas dos dedos, os olhos naquela tristeza de sempre, e contou-me que a minha mãe também teve e está óptima. Então agora recordámos esse dia, ela confirmou, foi há treze anos, a mãe continua excelente, mas o cancro levou-lhe o pai, os olhos a afogarem-se na  mágoa, Tenho tanto medo de ter cancro, eu a pensar que mudei de dimensão, de prisma, de óptica, a palavra já não me faz medo, o significado dela também não.

Tenho tanto medo de ter uma recidiva. Mas a vida continua, como já continuava antes de ter mudado de dimensão.


01/01/2023

Só desgraças

Antevéspera de Ano Novo e a desgraçadinha do costume a sentir um incómodo todo o dia, idas ao chichi de vinte em vinte minutos, ai isto são nervos (mas de que mais?), ai ando a beber demasiada água, ai devo estar a ficar incontinente, depois era aquela dorzinha, aquela vontade de desmaiar na loja — pudera, quem não, com um casal horrendo à minha frente com dois filhos horrendos a demorarem uma eternidade para trocarem não sei que merda por um sutiã de cetim azul escuro com uma rendinha parolíssima, pináculo da sensualidade para ele (?), que dançava (pessimamente) ao som da música ambiente da loja —, todo um cenário que me disse: “Vai ao hospital, histérica, depois mete-se o Ano Novo [aprecio a expressão] e já a tua infecção te chegou ao cérebro”, porque eu sou eu e eu sou essa, que anda sempre a desafiar a septicémia, e foi assim que, à hora de jantar, pouco mais ou menos, vi na nettinha qual o que levava menos tempo a atender-me e ala para as Descobertas, qual conquistador. Lá chegada, sou logo avisada que, afinal, o tempo de espera são duas horas. Bem gemi ao enfermeiro que necessitava de uma pulseira amarela (até porque combinava melhor com o vestido do dia), mas o implacável algemou-me com uma verde. Há-de ser lagarto, com certeza. Ou estava nauseado por estar a trabalhar na antevéspera de Ano Novo, esquecido do quão aborrecido é estar doente nesse mesmo dia. Se calhar, preferia trocar comigo.

Aguardei exactamente duas horas, durante as quais aturei um excitado casal italiano, que berrava e gargalhava, ou seja, me impediu de, ao menos, dormitar um nico. Estou neste ponto de velhice. O excitado tinha pulseira amarela, o que me levou a concluir pela xenofobia do enfermeiro da triagem em relação à minha pessoa. Depois fui atendida por um médico em cerca de quatro minutos, que confirmou o meu diagnóstico e me receitou, assim como me mandou fazer urinocultura. O enfermeiro que me recebeu apresentou-me um frasquinho anatomicamente adequado para recolher urina a um recém-nascido rapaz, e perguntou-me assim: “Já alguma vez fez colheita de urina asséptica?”, veio-me a vontadinha de responder: “Fiz quatro cesarianas, quimioterapia, radioterapia, tamponamento nasal e mais mil porras, mas realmente recolher urina é que nunca”. Ao invés, respondi: “Sim. Tenho que me lavar primeiro, deitar fora as primeiras pingas de chichi e depois encher esse frasquinho minúsculo, no qual me será impossível acertar”. Afinal, não. O homem explicou-me todo o processo com uns pormenores sórdidos de tal forma, que só pensei: “Não acredito que estou a ter esta conversa com um estranho”. Depois de praticar diversas posições de ioga na casa de banho do hospital, fui aviar a receita do médico, tomei o antibiótico e, passada uma hora e meia, já em casa, tive um ataque de frio que me pôs os dentes a bater como castanholas e me levou a ponderar que me finaria em breve, tipo em minutos, mas isto já no dia 31. Mesmo à parva, falecer no último dia do ano. Pelo menos, fiquei a saber o que sente uma pessoa que morre de frio. 

Calma. O importante é que entrei em 2023 recuperada deste desaire. A ver se o ano não me é tão padrasto como o anterior. Chiça penico.