tag:blogger.com,1999:blog-42580519228465754892024-03-16T01:11:32.097+00:00linda bluelinda bluehttp://www.blogger.com/profile/14127533587817702466noreply@blogger.comBlogger3300125tag:blogger.com,1999:blog-4258051922846575489.post-77051496523020559182024-03-12T11:38:00.001+00:002024-03-12T11:38:36.356+00:00Botei <p style="text-align: justify;">o voto na urna. Não foi fácil. Pelo caminho, cerca de seiscentos metros, ainda ia, já não como em tempos — a fazer undolitá — a votar mentalmente por exclusão de partes “Neste não, naquele nem pensar, no coiso era o que faltava”. Como sempre, fiquei na sala exclusiva das Marias, de Maria Eduarda a Maria Viviana. Tinha tido um cuidado desmesurado a escolher a hora para ir exercer os meus direitos, que os tenho, minha senhora, para não encontrar as caridosas do “Estás bem?”, a enterrarem os olhos nos meus, uns ares tão sérios que julgo que vão ralhar-me já, já, eu naquela, “Estou, estou bastante bem, que eu saiba”, elas logo a amolecer o olhar, “Isso é que é preciso, espírito positivo”, como quem diz, “Coitada, diz que está bem, é deixá-la viver na ilusão de que não é a primeira de nós todos a morrer”, sabem lá elas se dali a cinco minutos não vem uma betoneira desgovernada que as mistura com o cimento. Escolhi tão afincadamente a hora, que as encontrei todas, mas consegui tornar-me invisível à mais empenhada, que quis um dia tomar café comigo no pós-tratamentos e esteve todo o tempo a chorar porque havia saído recentemente de uma peritonite. </p><p style="text-align: justify;">À minha frente encontrei dezanove Marias até à curva que dava acesso à sala. Chegou a minha vez, o rapaz que presidia aquela mesa ia adormecendo a ler o meu nome (já estou habituada) e deu-me aquela folha gigantesca, onde constavam partidos dos quais nunca tinha ouvido falar, como o fálico (?) “Ergue-te!”, ou bíblico, sabe Deus (“Levanta-te e anda!”), para além de mais um ou dois, agora não sei precisar quantos desconhecia. Quase todos, vá.</p><p style="text-align: justify;">Já no meu cantinho, pronta para exercer, reparo que não há ali caneta ao meu dispor. Procuro na mala, sei que é raro ter uma caneta (trauma com uma que se me rebentou dentro da mala, não quero lembrar-me; o mesmo para os pacotes de açúcar; e as saquetas de molho de soja), mas desta vez lá estava uma, triste, só e abandonada, gelada, gelada. Nos entrementes, ouvia-se o meu murmúrio, “Não há aqui caneta? Uma pessoa puxa pelo cordelinho e não vem nada na ponta. Se não tivesse uma na mala, a esta hora não votava”. Fui à mesa entregar o meu papelinho e comuniquei: “No meu cantinho não havia caneta. Senti um convite, mais, um incitamento, ao voto em branco”. Rimo-nos todos muito e depois voltei para casa, com o meu dever (não me enganei, não) cumprido.</p><p style="text-align: justify;"><br /></p>linda bluehttp://www.blogger.com/profile/14127533587817702466noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-4258051922846575489.post-62200688613644611132024-03-06T20:29:00.001+00:002024-03-06T20:30:23.601+00:00Aprendam comigo, que eu não duro sempre<p style="text-align: justify;">Quando tu, mulher, desconfiares que algo está errado porque alguém mexe no teu corpo, é porque está. Não estás errada. Deixa-te de dúvidas, “Será que…?”, “Não pode ser…”, “Sou eu que tenho a mania”. Não, não és: os abusadores não têm escrito na testa “tarado”. Das duas vezes que fui atacada — mesmo, com perseguição e encurralamento — eram homens novos, fato e gravata, malinha de cromados.</p><p style="text-align: justify;">Outra vez na fila do supermercado. Tinha ido comprar só batatinhas para assar, postas num saco de rede. De repente, sinto um toque na cauda (vá, não me obriguem a chamar rabo ao meu rabo), que deslizou um pequeníssimo instante sobre o meu vestido. O primeiro instinto foi puxar as batatinhas atrás, com a intenção de as espetar na cara do fdp. Virei-me em décimos de segundo, à espera de um rapazola da escola profissional, para se gabar aos amigos, ou um bêbado qualquer, mas deparei com um senhor, muito bem posto, que, naquele momento, muito providencialmente, mexia nas suas próprias compras. Aí é que me vieram as dúvidas, “Foi impressão minha”, “Dou-lhe com as batatas no focinho e ainda cometo uma injustiça”, etecetera e parva. Paguei, as lágrimas a quererem chegar no pior momento, como sempre, saí para o vento e admiti a mim mesma: “Não foi nada impressão tua, devias ter-lhe enfiado batatas cruas até à garganta e, simultaneamente, demonstravas naquele lugar a quantidade de palavrões que uma senhora sabe aplicar no momento certo”.</p><p style="text-align: justify;">Nunca se esqueçam disto: não há impressão ou desconfiança ou dúvidas, de que alguém, sem o nosso acordo, nos está a tocar. Está. Sempre. Mesmo.</p><p style="text-align: justify;">(Em casa, perguntei a uma das crianças se estava ordinária, dentro de um vestido roxo de gola camiseiro, não curto, não justo, e ela ensinou-me: “Até podias estar nua, o problema não está em ti, está nele”.)</p><p style="text-align: justify;"><br /></p>linda bluehttp://www.blogger.com/profile/14127533587817702466noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-4258051922846575489.post-71926825008472970952024-03-04T11:34:00.004+00:002024-03-04T11:52:04.007+00:00Errare<p style="text-align: justify;">Ainda não sei porquê e admito que nunca vou saber, meti-me um destes dias no supermercado. Já na fila para pagar, lembrei-me do bolo do caco, que não constava do meu cesto. Ali o abandonei e saí da fila, “Falta-me o bolo do caco!”, por acaso a pensar por que diachos se chama bolo àquele pão — já para não escalpelizar a palavra “caco” (monco? Burrié?) — e depois se chama pão àquele bolo de ló (e “ló” porquê? Por que não “dó” ou “lá”?) Pronto, já sei: devia estudar a etimologia das palavras antes de me meter aqui. Depois voltei para a fila, e “Ai, onde é que estão as minhas coisas? O meu carrinho?”. Estive mesmo para fazer um espavento, “Fui assaltada!”, mas depois lembrei-me que os bagulhos só são meus a partir do momento em que os pago. Foi quando percebi que estava na bicha errada. Enfim, só não erra quem não faz. </p><p style="text-align: justify;">Saí dali direitinha à loja de lingerie, entrei e disse à funcionária: “Olá. Eu sou a dos sutiãs.”. Isto porquê? Porque já entabulara diversas conversações telefónicas acerca daquela peça em particular, cor, tamanho, encomenda, já chegou, vou buscar, eu guardo. A pessoa, extremamente maquilhada (verde na parte não móvel da pálpebra, muito anos ‘70), respondeu-me assim: “Eu não sou daqui, sou de Odivelas.”. Curioso — pensei, pondo a cabecita de lado, como fazem as galinhas quando estão baralhadas (amiúde) — já não é a primeira vez que esta retro me responde isto quando a abordo. Será que diz o mesmo a todas as freguesas? Para a próxima, entro na loja e digo: “Eu não sou de Odivelas, sou daqui.” Só para ver o que é que acontece. </p><p style="text-align: justify;">Deslindado o imbróglio, chegámos à conclusão que as negociações que eu havia entabulado não haviam sequer tido lugar com alguém daquele espaço comercial, mas sim de um outro, para lá da Estefânia. Tudo culpas do Google, que uma pessoa põe “loja de x no lugar y” e o destravado apresenta-nos o lugar z. Não importa, a verdade é que estava tão empenhada na aquisição que me despedi da de Odivelas e determinei-me a zarpar Rosinha, minha canoa, até para lá da Estefânia. Acerco-me da viatura e deparo-me com um idoso, dentro do carro estacionado ao lado, a ver no telemóvel mulheres sem sutiã. É o mal de darem smartphones àquela faixa etária, coitados. Depois enganam-se e vão parar ao inferno, ou ao céu, ou lá o que é.</p><p style="text-align: justify;"><br /></p>linda bluehttp://www.blogger.com/profile/14127533587817702466noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-4258051922846575489.post-4199857271225598232024-01-21T16:23:00.005+00:002024-01-22T18:46:13.273+00:00Fui à festa e, parecendo que não, diverti-me bastante <p style="text-align: justify;">Então, lá fui ao aniversário de um dos professores de uma das danças que pratico. Tinha a morada do restaurante, mas a senhora do GPS devia estar com a cabra e, em vez de me mandar pela Av. Berlim, mandou-me por estradas nunca antes percorridas, mas o certo é que fui lá ter, orgulhosamente independente e crescida. Lá chegada, dou com mesas e mais mesas de senhoras grisalhas, pelo que pensei que me havia enganado na porta e fora parar ao octagésimo aniversário de uma anciã deste mundo. Já ia rodar os saltos quando descobri uma cara conhecida, acerquei-me e anunciei que não conhecia ali ninguém. Parece que fora ideia do aniversariante: “misturar tudo”. Ah tá bem. Fui sentar-me noutra mesa, à espera da mistura que me calhava na lotaria, que chegou praticamente em manada e a quem conhecia todos. Todos, não é bem assim: um pequeno homenzinho de cabelos pintados com tinta Robbialac branca e moldados por uma bisnaga inteira de wet gel extra firme, à prova de bala, com plastificação a quente, depois congelado a cinquenta negativos, com recurso a uma massa branca cimenteira munida de electrochoques a quem ousasse tocar naquilo, todo ele vestido de branco até aos pés, anéis, pulseiras e colares dos que se vendem nas lojas de piercings e — cereja no topo do bolo de noiva (ou Virgem Santíssima?) —, o seu perfume patchouli. Ao lado de quem é que se sentou a flausina? Pois.</p><p style="text-align: justify;">Depressa concluí que era totalmente indiferente quem nos calhava perto, pois ninguém ouvia ninguém, derivados da barulheira que um senhor fazia, de violinha em punho, gritos de agonia, “Meu bem, você me deixou”, isto com a desculpa que se tratava de música ao vivo.</p><p style="text-align: justify;">Uma velhota que já estava com uma cadela de todo o tamanho quando eu cheguei, veio dizer-me ao ouvido que teve uma loja que faliu e prometeu ir a pé a Fátima quando conseguisse livrar-se dela. E que estava, por isso, a angariar um grupo para a acompanhar. Olhem, ide, mas não vos esqueceis do garrafão para a organizadora, senão ela nem de Loures passa.</p><p style="text-align: justify;">Também foi uma briga com a ementa, era só pratos de maminha, peito não sei de quê e salsichas. Parti para o menu das pizzas e escolhi a verde, mas sem o pimento e a cebola, que são dois alimentos que adoro do coração, simplesmente, quando comidos ao jantar, falam comigo toda a noite. E eu preciso de dormir.</p><p style="text-align: justify;">Comecei a ver passar jarradas de sangria e achei oportuno, só naquela de deixar um bocadinho de mau ambiente (o proclamado “peidinho social”), avisar que só pagava o que comesse, pois também já não estou na idade de cair nessa de pagar as borracheiras dos outros. E foi o que aconteceu no fim: pizza vegetariana e 7UP, que eu agora estou do mais abstémio que existe à face. Continuo pasmada com o facto de ainda não ter sido canonizada.</p><p style="text-align: justify;">Ao meu lado direito ficou uma rapariguinha e a sua mãe, que me pareceu que não falavam com ninguém, a não ser uma com a outra. À frente de ambas, uma das nossas que levou o marido (má ideia, isso nunca se faz!), que pendurou a cabeça em modo de crucificado e já só a levantou quando acabou a refeição. </p><p style="text-align: justify;">Disse à miúda: “Já viste o emplastro que me saiu ao lado?”, do que ela riu muito, passou à mãe, que também riu muito e, encorajada pelo tricot que iniciara, prossegui: “E o casal que está à vossa frente? Duas múmias. Não sei se ele chega vivo ao final da festa”. A criança não se riu, mas eu não estranhei. Passei mais tarde um nico de aflição quando percebi que os quatro não se largaram o resto da noite em amena cavaqueira. Eu sou pro neste tipo de gaffes.</p><p style="text-align: justify;">Foi muito divertido, dancei muito, só com um 7UP no estômago, não houve necessidade de capirinhas, cervejas ou sangrias. Só agora percebi que não é daí que vem o swing.</p><p style="text-align: justify;"><br /></p>linda bluehttp://www.blogger.com/profile/14127533587817702466noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-4258051922846575489.post-47455467200364787742024-01-18T10:21:00.002+00:002024-01-18T10:24:29.877+00:00Macaquinhos, cada um tem os seus<p style="text-align: justify;">Chego perto dos elevadores e ela já lá está. Acaba de abrir-se o que chamou e tem à frente, encara perifericamente comigo — creio que o pescoço não mexe — e salta para o lado, para a porta do outro elevador, em cujo botão toca freneticamente, mas que, obviamente, não vem, visto que está o outro ali mesmo, à espera que alguém se digne entrar. Digno-me eu, com um suspiro inaudível (?), e sigo. Batalha esta inglória, visto que uma e outra íamos para o segundo andar. Confesso que nem ponderei ir pelas escadas, vinha de uma aula violenta de dança e carregada de tralha. Ela, por sua vez, carregada de fantasmas, que devem pesar toneladas: casaco comprido, botas altas, gorro até aos olhos, luvas. Faz-me lembrar uma criatura que viajava diariamente comigo no metro, há cerca de dez anos. E, de repente, apercebo-me que é exactamente a mesma pessoa. É filha da mulher do saco do El Corte Inglès, anciã que habita este caixote há tantos anos como eu e, desde que o marido morreu e o filho — que morava portas com portas com os pais, e cuja mulher me odiava por estar permanentemente grávida, como se eu lhe tivesse furtado a fertilidade e o mundo fosse injusto e Deus não tivesse uma justiça distributiva — se foi, levando a mulher e o São Bernardo que tinham enjaulado num T2, nunca mais tendo dado as caras nem mais parte nenhuma do corpo, que a mulher do saco passou a usá-lo como uma mala cara de estimação. Depois de várias conjecturas mórbidas que fiz acerca do conteúdo do saco, um dia apanhei-a distraída na paragem do autocarro e fui vasculhar. Decepção: eram só jornais. Ainda tive relações de cordialidade com a pessoa até ao dia em que ela chamou parvo ao meu filho — andava ele de skate debaixo da janela dela e a filha, aquela calmeirona para mais de trintas (ou oitentas?) queria dormir a sesta —, que nunca mais me viu a dentadura à mostra.</p><p style="text-align: justify;">Portanto, a filha é <i>assim</i> desde muito antes do covid: deve ter a panca dos ácaros, das bactérias, dos vírus, do diabo a quatro patas. Anda por aí muita gripe A e também a outra sem direito a letra, tudo tosse, tudo funga, tudo se desfaz em ranho e eu, por uma vez, passo sambando na cara das inimigas. Também tenho meus macaquinhos no sótão, mas até acho que estou coberta de razões. Quando a outra pulou para o elevador do lado, pensei, hipocondriacamente: “Será que esta já sabe e, como é avariada da marmita, julga que <i>isto</i> se pega?”. Mas depois sosseguei a vítima que há em mim, com “Hah, ela faz isto com toda a gente. Eu, tal como os outros, temos a carraça, a lepra, o dengue, o E. Coli e a malária, tudo junto.”</p><p style="text-align: justify;">É que nem imagina que eu tenho mais motivos para me proteger dela do que ela de mim.</p>linda bluehttp://www.blogger.com/profile/14127533587817702466noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-4258051922846575489.post-50180158300153671792024-01-04T19:35:00.006+00:002024-01-04T23:43:52.401+00:00Post com dois assuntos cientificamente relevantes<p style="text-align: justify;">Tenho um clube de formigas extremamente pequenas no lar. Deslocam-se em carreiros, desconheço onde é o formigueiro, mas já salvei a vida a umas dezenas delas. É que se afogam numa gota de água, apesar de terem uma resistência louvável. (Nem sei se têm pulmões, mas devem ter.) Ontem estava a beber água por um copo, espreito lá para dentro e vejo uma delas, muito sossegadinha, muito quietinha. Considerei preferível verificar se morta, se viva, mas a fulana não me agarrava o dedo, para que eu pudesse colocá-la numa folha de papel de cozinha e devolvê-la às manas. Peguei então numa colher e retirei-a do oceano. Pensei mesmo que estivesse morta, porque continuou inerte. Quando a ia passar para o papel, vi mexer uma patita, mas ela não largava a colher molhada. Insisti na manobra e deve ter sido aí que a torci um bocado, pois aterrou no papel toda torta e baralhada. Também podia estar em pré-afogamento, coitada. Destorceu-se, endireitou-se e lá seguiu caminho toda manca, à procura das outras. E bebi a água, sim, que a vida não está para finuras.</p><p style="text-align: justify;">Mas não era a isto que eu vinha, embora o tema formigas ainda não esteja esgotado. Fica para o último parágrafo.</p><p style="text-align: justify;">Hoje entrei na quinta dimensão. Estava a cozer uns lombos de pescada na Biby — que ela coze pessimamente — e na receita mandava guardar a água da cozedura para depois a misturar com uma poção qualquer que já estava em preparação no meu caldeirão. Pus um coiso de palha por baixo do jarro e vai de verter o precioso líquido lá para dentro. Quando chegou à última gota, pás!, explodiu como que dinamitado. Pensando bem, acho que implodiu. Sei que era vidros por todo o chão da cozinha que chegavam ao corredor. E meio litro de água perfumada de peixe, que se transformou em cinco litros, pois era a minha calça, o meu pé e respectiva chinela (desculpem, mas tenho que acabar com este mito rural: eu sou como as outras pessoas. Ou pior), era o chão, era toda a bancada e a derramar-se para dentro das gavetas e armários. Valeu-me minha Sandra que, quando faço uma refeição em vez dela, até se lambe, parece que ainda tem maior ensejo para dar à matraca. Lado bom: ninguém se magoou, nem sequer com aqueles vidrinhos do tamanho da minha formiga (é assim que o cosmos me agradece) e também, menos um mono.</p><p style="text-align: justify;">De vez em quando sinto um bichinho a passear pela minha testa, junto à raiz do cabelo. Depois desce, passa-me pelo nariz a atira-se em bungee jumping para o meu ombro. Há dias percebi que era uma formiga das minhas, se calhar veio agradecer-me ter salvo a coxa.</p><p style="text-align: justify;">Hoje estava nas minhas danças e lá sinto outra vez um bicho pequeno a percorrer a minha raiz do cabelo. Sacudi com cuidado, para não assustar o animal nem o lesar e disse para a que estava atrás de mim: “Tenho formigas na cabeça”, que há-de ter sido a frase mais esquizofrénica que proferi na vida. Ela desesperadamente a tentar disfarçar o seu incómodo, “Pode ser algum champô que estás a usar”, mas eram de aflição os olhos dela quando eu esclareci: “Tenho imensas formigas em casa, nunca tinha visto umas tão pequeninas e, de vez em quando, uma ou outra vem passear na minha cabeça.”</p>linda bluehttp://www.blogger.com/profile/14127533587817702466noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-4258051922846575489.post-50081782982488363752023-12-29T11:14:00.007+00:002023-12-29T11:22:06.905+00:00Não somos nada todos iguais<p style="text-align: justify;">Decorei o caminho para lá chegar. Ou melhor, escrevi-o: ao fundo do corredor grande, viro à direita e depois, na primeira à direita, entro no elevador 20 ou 21. Na realidade, subo pelas escadas um piso, visto que estou no 1 e quero ir para o 2; viro para onde diz "Imagiologia", atravesso o serviço, constituído por um balcão de atendimento, gente sentada à espera, cadeiras de rodas e duas ou três macas, tudo ocupado; ao fundo de um corredor enorme — que nos dá a sensação de termos saído do hospital, pois não se vê uma alma viva ou penada —, existe uma porta que tem como letreiro "Medicina Física e de Reabilitação". </p><p style="text-align: justify;">Das vezes anteriores que o fiz, o caminho era outro, aquela área do hospital estava em obras, eu própria também. A médica que me assiste é bastante pontual, as consultas são um flash, e só demoram uma eternidade (para aí uns quinze minutos), por ela ser uma faladora patológica e mais de metade do tempo que lá estou falamos de assuntos triviais, tudo menos a manutenção do meu braço da grossura do outro. Até posso engordar — o que já fiz sem me receitarem nesse sentido —, até posso emagrecer — Verão 2024, aguarda-me. Vou estar como um cão faminto, rafeiro, só pêlo e osso, mas sem exageros. Todos os anos digo que vou perder peso na entrada do Ano Novo, mas depois esqueço-me completamente e continuo esta sereia chichuda. Efectivamente, nada disso me interessa. Quero ter saúde e nunca mais ter que rapar o meu cabelo. </p><p style="text-align: justify;">Enquanto espero, passam por mim dois rapazes com a idade do meu filho, um de cada vez. O primeiro está a experimentar a prótese nova, toda a tíbia e o pé. O cabelo tem metade da quantidade da de um bebé recém-nascido, mas é uma pluma com a mesma espessura. Vai amparado por um andarilho ortopédico e uma enfermeira, sem um ai. Desaparecem por uma porta adentro. O segundo tem cabelo, a prótese é para a mesma zona do corpo, e reclama do peso que ela tem, das dificuldades que vai ter a habituar-se àquilo, da chatice, do horror. Imagino que o primeiro rapaz teve cancro no osso e foi necessário amputar, no caminho para a cura, e o segundo deve ter tido um acidente que lhe levou aquela mesma parte do corpo e o prejudicou enormemente, dando lugar a uma incapacidade que não lhe trará nada de bom. </p><p style="text-align: justify;">Em todos os serviços do hospital, existe a valência oncológica — porque é preciso dermatologista, para tratar das unhas e das infecções na boca, porque é preciso ortopedista, pois os ossos começaram a ceder, porque é preciso cardiologista, visto que o coração ameaça saltar pela boca, porque é preciso psiquiatra, já que a cabeça estoirou — mas, pelo menos e principalmente na doença, se constata facilmente que não: não somos todos iguais. Existe um mundo que ficou para trás e uma multidão de fantasmas que há que enfrentar e derrotar, que, para uns, são mais e maiores, para outros são poucos ou quase nenhum e basta um dedo para os aniquilar. </p><p style="text-align: justify;">Eu, claro, sou um mix.</p><p style="text-align: justify;"><br /></p>linda bluehttp://www.blogger.com/profile/14127533587817702466noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-4258051922846575489.post-16711148524290894672023-12-20T11:23:00.006+00:002023-12-20T12:58:05.964+00:00Ainda existem mulheres honestas<p style="text-align: justify;">Quem nunca? Eu já. Uma vez riscara meu boi na garagem, numa <span style="background-color: white;"><span style="font-family: inherit;">primeira septingentésima sexagésima terceira vez em que fiz a manobra e até já a executaria de olhos fechados, mas parece que a p. da parede nesse dia avançou em continência e boi foi raspar-se nela. </span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="background-color: white;"><span style="font-family: inherit;">Desta feita, encontrava-me na subida de uma rampa e tinha à frente cerca de três automóveis, todos com intenção de seguir em frente — visto que não tinham o pisca para a esquerda (única alternativa para além da de andar adiante) —, sendo que eu queria ir para a esquerda e eles não me desempatavam o caminho. Até onde a vista alcançava (quase nada, pois a curva à esquerda me tapava a visibilidade para o que de lá vinha), não havia carro nenhum em andamento na faixa oposta, vai de arriscar (haha, muito bem aplicado) a sorte (que, como é do conhecimento mundial, é olimpicamente ínfima) e arranco para a esquerda com toda a convicção e força que o acelerador me permitia, logo assim dei por desfeito o ponto de embraiagem. De repente, senti um abanão para os lados e ouvi o inconfundível ruído. Porém, ainda tive dois décimos de segundo para equacionar se não estaria a ser protagonista de um tremor de terra. Assim que percebi que dera com as portas direitas na chapa do carro que estivera à minha frente e que as paralelas e tangentes não são o meu forte, só mesmo as secantes, avancei um nico para não estorvar nem inquietar os que estavam lá para trás, saí de Rosinha já a pensar acordo amigável - seguro - documentos do carro - meus documentos - assunção da porra da culpa (sem usar o cilício, também não devia ser caso para tanto) - vamos a isto, que não há-de doer. Da viatura acometida, sai uma senhora a rir, e eu <i>Ai tu queres ver que me saiu uma pior que eu? Tento acalmá-la? Dou-lhe um estalo para acabar com o histerismo? Chamo o 112 com uma jaula? Peço ali aos rapazes do hospital que vão buscar um dardo cheio de sonífero? Melhor não, a sorte vira-se sempre contra mim, vai na volta e o outro saía-me uma espécie de Tell sem pontaria, vinha de lá armado com a besta e eu ainda apanhava com a seta na testa como o do anúncio do "Fica quieto", "Ups". </i>Estava eu perdida e sozinha nestes pensamentos, quando ela optou por explicar o gargalhedo, não fosse eu colapsar: "Minha senhora, já é a segunda vez que isto me acontece hoje". Convém confessar que eram apenas 10:30 da madrugada. Respondi-lhe: "Vá para casa, por favor, e só saia de lá amanhã". </span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="background-color: white;">O lado esquerdo do carro dela estava todo riscado e amassado. Deitei dramaticamente as mãos à cabeça e perguntei: "Eu fiz isto tudo?". Honesta, podia ter aproveitado, "Não, isso já é <i><b>de outras</b></i>". Fui verificar o meu lado direito e havia riscas, sim senhor, mas nada de chocante, até se for fazer iguais do outro lado, parece que é um modelo diferente da marca. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="background-color: white;">Concluímos que não havia nada a declarar, quais acordo amigável, quais quê, quase demos duas beijinhas e adeus e Boas Festas. Cada uma foi à sua vida, que a mulher tem mais com que perder tempo, quanto mais quando são duas. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="background-color: white;">Homens? Era não ter avançado do local onde havia raspado, empandeirar o trânsito local e depois da cidade toda, era o acordo, era o telemóvel, era a identificação, era o telefonema para a companhia de seguros e para o amigo mecânico, era o croquis do sinistro, <b>tudo</b> muito sinistro. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="background-color: white;"><br /></span></p>linda bluehttp://www.blogger.com/profile/14127533587817702466noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-4258051922846575489.post-14715380000525128842023-12-12T12:38:00.000+00:002023-12-12T12:38:05.251+00:00red velvet <p style="text-align: justify;"><i>A doença envelheceu-te muito</i>, diz-me ele à mesa, onde fica a maior parte do tempo calado, apenas atento. Está ao meu lado esquerdo, quero ver-lhe os olhos — os mais lindos que já vi, para além dos outros três pares — para perscrutar-lhes a emoção de, pela primeira vez desde que nos conhecemos, ele dentro da minha barriga, comentar qualquer coisa de negativo em mim. Por breves momentos, pensei “Não cortes o cordão que, na verdade, é uma corrente de ferro sem aros abertos, não existe ferramenta para tal”. Nesta pausa, ele retomou sem precisar de novo fôlego, e então compreendi que não era uma crítica, tão pouco um dito momentâneo para me magoar ou provocar — que jamais esperaria vindo dele —, e sim só uma constatação de facto: a doença envelheceu-me, cansou-me, desalegrou-me, levou-me aos píncaros da tristeza. <i>E fisicamente, achas que também?</i> Ele em consciência, breves segundos de impasse e, sem olhar para mim, caso contrário talvez me dissesse a verdade que custa a todas, “Não”. Não. Não me mentiu, simplesmente desarredou subtilezas femininas desimportantes. </p><p style="text-align: justify;">Fiz anos há umas quantas semanas e queria soprar as velas num bolo red velvet. Porém, em casa mais ninguém concordou, a não ser ele. Bolo delicioso, cor de sangue, sangue do meu sangue foi comprar os ingredientes, meteu-se umas horas na cozinha com aquele par de mãos que são as mais bonitas que eu já vi — para além dos outros três pares — e, no final, apresentou-me o bolo do meu capricho — ou do meu sonho guloso —, onde espetei as velas e cantámos todos a um ritmo alucinante, impróprio para aniversários. Houve abraços e desejos de muita saúde e houve também a prova de que nada me envelhece. Nem quando eu já for velhinha — se lá chegar —, enrugada e encolhida, haverá sempre aquele olhar que, com a desculpa de que me vê todos os dias, não me verá envelhecer.</p><p style="text-align: justify;"><br /></p>linda bluehttp://www.blogger.com/profile/14127533587817702466noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-4258051922846575489.post-87768174617160594092023-12-04T11:23:00.001+00:002023-12-04T11:23:52.252+00:00Parque de estacionamento - 1; Linda Blue - 0<p style="text-align: justify;">A pessoa até já vai nervosa quando se acerca de um parque de estacionamento. Tinha mais uma consulta das centenas que já tive, esta para verificar se o braço está mais gordo do que o outro ou não. Vivo um bocado aterrorizada com a ideia, porque, caso se verifique, vou deixar de saber que número visto. Nada é impossível comigo: tive um pé maior do que o outro durante anos a fio, agora o maior encolheu e passei a calçar o número abaixo <strike>[já vi desculpas melhores para renovar o calçado todo]</strike>, ou seja, todos os sapatos me chinelam, e isso provoca umas dores que ninguém supõe, uma vez que tenho que fazer imensa força com os dedos para que não me caia um sapato nalguma escada rolante, venha um príncipe atrás de mim e tenha que lhe aventar com o outro para correr mais agilmente.</p><p style="text-align: justify;">A facilidade com que me perco nos assuntos. Pareço <a href="https://youtu.be/zpiHDoQBetc?si=-aPMkD_BoimwTB-Z">o tio das Derry Girls</a>. </p><p style="text-align: justify;">Aproximei-me do parque, esperei pacientemente a minha vez (porque tinha tempo, pois aquela lesmice só dá vontade de uma pessoa perder o amor ao carro e empurrar os caracóis todos para dentro do parque), depois chegou o cruel momento em que tive que abrir o vidro e esticar o braço ao máximo e, mais uma vez, faltava-me cerca de um Danoninho para chegar ao botão da Via Verde. Veio imediatamente um cavalheiro muito solícito, e, sem eu lhe pedir nada, espeta o dedo em "retirar ticket", enquanto eu digo "Via Verde, por favor". O bilhete saiu mesmo, mas a teimosa até ganhou braço, qual Senhora Incrível, e pumba no botão verde. A cancelinha abriu, eu acenei gudebai ao senhor, ele de bilhete no ar, "O que é que eu faço a isto?", "Deite fora, que eu saio com a Via Verde". Estacionei Rosinha de forma a revelar o meu TOC — carro direito e com as exactas distâncias entre os extremos do dito e o tamanho do lugar —, saí um bocado contrariada porque o pavimento era daquele cheio de hexagoninhos, que qualquer humano que tenha calçado uns saltos altos joga ali um bocado à roleta russa, "a ver se o raio do salto não se mete nos buracos desta m.", mas avancei. Ao passar pela casota onde se esconde um senhor que já está irascível às nove da manhã, deu-me cá aquela dúvida "e se...?", sabem? Lá fui gritar para o acrílico que nos separava: "Bla, bla, bla, um senhor tirou um bilhete, bla, bla", e ele estende-me um cartãozito, "É este, minha senhora. A senhora não saía do parque com a Via Verde, porque tem prioridade a primeira escolha". Olha que bem pensado, existe sempre a possibilidade de alguém se pôr a tocar piano com os botões daquela coisa. Lá lhe agradeci e fui-me, na direcção da entrada do parque quando, de repente, vejo uma barra enorme na direcção da minha cabeça e só tenho tempo de dar um salto para o lado e dizer "Ai!". Sinceramente, em que mundo estamos? A ver se alguém me avisou. Se calhar, queriam ver o que é que acontece quando uma pessoa leva com a trave na mona. Eu também apreciava visionar os carros deles a levarem com aquilo no tejadilho. Será que tem uma lâmina, qual guilhotina? Fiquei a pensar nisso, seria coisa para me deixar para ali rachadinha nos meio. Mas não, como cheguei à consulta com as duas metades agarradas, tive a grata notícia de que os braços continuam da mesma <strike>absurda</strike> grossura. Ordens da médica: "Dance, dance, dance". Pelo menos, não me disse "Faça flexões, pranchas e burpees", senão também não me apanhava lá outra vez. </p><p style="text-align: justify;"><br /></p>linda bluehttp://www.blogger.com/profile/14127533587817702466noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-4258051922846575489.post-16032462019162891262023-11-27T11:55:00.002+00:002023-11-27T11:55:53.082+00:00Valor sentimental<p style="text-align: justify;">Ora aqui está uma expressão da qual não gosto, mas uso. </p><p style="text-align: justify;">Estou desde sexta-feira a passar tormentas sem boa-esperança, pois perdi a minha pulseira mais querida, e de que dependia quase toda a minha alegria e o meu esplendor estético. Sobretudo, porque me foi dada por uma das minhas crianças, há não sei quantos anos, tantos que são. </p><p style="text-align: justify;">Sei que a perdi entre a manhã e as cinco da tarde da passada sexta-feira. (Não sei se já aqui disse, mas todas as minhas sextas-feiras são 13.) Quando punha o relógio, era impossível não notar a falta da pulseira, que dormia comigo, tomava banho comigo, tomou todos os banhos de mar comigo, só não fez alguns exames e tratamentos incompatíveis com ela. Assim que me apercebi que não a tinha, para além da tontura e vontade de me amandar pela janela, desatei rapidamente a fazer um rewind do dia todo. Fora de casa, supermercado e duas vezes papelaria. Liguei para ambos, nada. Mesmo assim, fiz o caminho até à papelaria pela escuridão das noites antecipadas e voltei na desolação que já me enchia o peito. Procurei nas mangas do casaco, nos bolsos, na roupa toda que tinha vestida, fui ao carro, que tem uma zona que é Nárnia, as coisas caem para lá e nunca mais aparecem, desviei banco do condutor, liguei a lanterna, fui ao porta-bagagens, fui ao fundo do poço (esta é exagero, ainda bem que não tenho um poço, senão já andava a descer as escadas de fato de mergulhador e óculos e tubo e garrafa de oxigénio). Procurei nos lugares mais inóspitos do lar: frigorífico, congelador, gaveta dos talheres, gaveta dos utensílios, área da máquina que diz que <i>cozinha por a gente</i>, bolso do avental, tudo à minúcia, pois tinha estado a cozinhar de manhã e à tarde (na tola esperança de não ter trabalhos ao fim-de-semana), por baixo de todos os armários que não são rentes ao chão (tenho uma gata que é gatuna e esconde tudo por baixo de tudo), dentro da minha cama (desfizi-a, sim. E sei perfeitamente que se diz desfi-la, mas perdi várias capacidades por causa disto), sacudi almofadas, edredon e coberta, às tantas já me sacudia toda e então fui dançar para desenervar. Sábado de manhã estava desvairada a dizer aquela frase estúpida: "A esperança é a última a morrer", quando isso até me lembra uma mulher que eu conheço e se chama Esperança. Tem uns pêlos no nariz que é de não prestar atenção nenhuma ao que ela diz. Depois da dança de sábado, pedi a cônjuge que me deixasse no supermercado (a frota estava em situação precária, um sem bateria, outro emprestado a uma das crianças), pois queria encontrá-la, nem que fosse esmagadinha por pneus, era minha, homéssa! Quem por lá passou no sábado perto da hora do almoço, era ver uma idosa de lanterna em punho, leggings e saia curta de dança, anorak de capuz, a revistar todos os lugares - por baixo dos carros incluído - e zonas adjacentes, com um ar tão suspeito que até um segurança se me acercou, mas não tinha tempo para conversa fiada e fui-me para o supermercado. Corri os corredores todos, varri à mão salsa e coentros e frango e bifes e tofu e seitan e laranjas - aquela rede que as envolve parece feita para pescar pulseiras - e tomate pelado e gelados e queijo mozzarella, num inacreditável desvario, sem carrinho nem cesto, a remexer em artigos (aparentemente) de forma aleatória, devem ter um filme meu lindo de se ver. Fui ao balcão do apoio ao cliente, e sim, precisava de apoio, precisava urgentemente que alguém me desse um ombro, enquanto eu gritava "Ai, minha rica pulseira!", tirei a senha e sequei enquanto um casal de idosos mandava embrulhar quatro brinquedos gigantes e eu lhes rezava pela pele. Chegou a minha vez, foram ver ao dossier e depois a uma caixa, e nada. Voltei para casa a pé, num desconsolo que só eu é que posso avaliar. </p><p style="text-align: justify;">Como tenho cinquenta por cento de possibilidades de a minha pulseira estar em casa, só ainda não levantei móveis, mas de resto, afirmo aqui sem vergonha que me tornei um perdigueiro. De repente, lembro-me de um sítio onde poderá ter caído (gaveta das meias, gaveta da roupa interior, sete gavetões e em todos os roupeiros), e lá vou eu farejar mais um recanto. </p><p style="text-align: justify;">Caso a tenha perdido na rua, estimo que a pessoa que a encontrou a perca também e tropece no tapete da entrada de casa, parta os dentes da frente e ainda lhe dê uma copiosa diarreia, daquelas que não se seguram na rua e é necessário fralda. E lhe dê a sarna. E uma incontrolável camada de piolhos. </p><p style="text-align: justify;">Se fosse eu, entregaria a pulseira nos perdidos e achados? Claro que não. Fazia o que faço sempre: ia lá e deixava o meu telemóvel sem descrever o que tinha encontrado. Só "pulseira", com a advertência de que entregaria a quem me desse a melhor descrição. Então não encontrei já um pc? Não encontrei já uma carteira cheia de documentos (vazia de dinheiro, óbvio)? Não encontrei já uma enorme quantia em dinheiro dentro de um envelope (e também encontrei logo a pessoa que o tinha perdido, que não me viu apanhá-lo do chão, era mesmo a dona, descreveu quanto era e tudo)? Preciso lá agora das coisas alheias? Para isso, ia roubar, não andava cá nesta penúria de trabalhos freelancer (que me matam e esfolam viva por uma merreca), e tempo para textos destes, que têm um interesse equivalente ao da reprodução das ervas daninhas.</p><p style="text-align: justify;">É o valor sentimental. A própria criança que ma ofereceu, disse: "Deixa lá isso, é só um item. Já me deste uma ideia para o Natal". Não é só um item, era mais um dos meus pés de laranja lima, filha adorada minha.</p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgP3SI6VlmQuAz-SKsuz83h_ALNQgD5FzzBUluhgkg3ntySmve11sWBkWFi6dPyr2cOvFBjoAoW1YMFudRsvzkBGLhYu5Fp10ZvCKXAMIU9fHyt7ZcCrcQYHCa9PJ1RPt0cQnXmMXe7KCJjg5ViUXd_3hqF4gIWAuGsk6F3uV7EbI7KomoUseps5UoUfx8E/s724/unnamed2.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="649" data-original-width="724" height="217" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgP3SI6VlmQuAz-SKsuz83h_ALNQgD5FzzBUluhgkg3ntySmve11sWBkWFi6dPyr2cOvFBjoAoW1YMFudRsvzkBGLhYu5Fp10ZvCKXAMIU9fHyt7ZcCrcQYHCa9PJ1RPt0cQnXmMXe7KCJjg5ViUXd_3hqF4gIWAuGsk6F3uV7EbI7KomoUseps5UoUfx8E/w242-h217/unnamed2.jpg" width="242" /></a></div><br /> <p></p>linda bluehttp://www.blogger.com/profile/14127533587817702466noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-4258051922846575489.post-20947757476109792722023-11-22T14:37:00.000+00:002023-11-22T14:37:24.459+00:00guerras<p style="text-align: justify;">Chegava da rua com três insignificâncias no saco, e estavam de um azul igual ao do céu de hoje os olhos do homem de rabo-de-cavalo e grandes entradas, arrumando coisas na bagageira. Viu-me, endireitou-se e disse <i>Bom dia</i>, eu instintivamente repeti o cumprimento sem saber de quem se tratava, mas depois estaquei diante dele, <i>Ah, o ucraniano que faz toda a obra nas casas e também já esteve na minha. </i>Viu-se obrigado a<i> </i>deixar a minha obra a meio, por ter que ir à sua terra natal, visto que o pai piorara da doença. Por lá ficou seis meses mas, quando voltou, ainda a guerra não rebentara e o mundo vivia na santa paz das inflações. </p><p style="text-align: justify;">Perguntou-me se estava melhor, eu disse que sim, mas ele não ficou muito certo disso. Expliquei-lhe da vigilância apertada, das análises, exames, consultas, medicamentos, e ele, com os olhos cada vez mais azuis e cristalinos, disse-me: “Tens os olhos a brilhar”. Respondi a primeira coisa que me veio à cabeça, “Custa muito não poder sonhar a longo prazo”. “É uma guerra. O meu pai perdeu essa guerra”, e era mágoa em estado líquido que lhe ondulava nos olhos, sem nunca os baixar. “É uma guerra, sim. Uns morrem, outros não.”</p>linda bluehttp://www.blogger.com/profile/14127533587817702466noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-4258051922846575489.post-54726924013316986232023-11-15T12:09:00.000+00:002023-11-15T12:09:31.329+00:00O universo também não ajuda nada<p style="text-align: justify;">Fui a uma palestra sobre alimentação de senhoras que tiveram cancro da mama, no âmbito de um programa em que me inseriram. Deixei Rosinha, minha canoa, num parque ao ar livre, porém debaixo de uma passagem superior. Lá chegada, sentei-me, observei as restantes pré-palestradas, todas significativamente mais velhas do que eu, menos uma, que é a que tem o ondulado mais bonito de todas. A primeira vez que a vi, perguntei-lhe se era consequência dos tratamentos (o cabelo renasce com outra textura e, às vezes, outra cor. O meu veio encaracolado e branco, vá-se lá explicar esta última). Ela respondeu-me que sempre o teve assim, e eu anunciei-lhe, como se ela soubesse o truque: “Eu quero igualzinho”. Nas outras, vi muitos edemas, muito peso a mais (por falar nisso, as minhas calças 38 deixaram todas de me servir, comprei umas 40, agora caem-me), muita grisalha, muito sobretudo num dia não tão frio que justificasse. A palestra foi dada por uma nutricionista magra (aleluia!) e, basicamente, era a explicação da roda dos alimentos: o que podemos ingerir, o que não podemos e em que quantidades. Tirei imensos apontamentos, a minha letra foi diminuindo de tamanho até quase chegar a invisível. Tenho a motricidade fina toda lixada. Saí muito esclarecida e pouco convicta de que me vou meter naquela prisão redonda só para ter mais alguns anos de vida. Engordei para aí uns três quilos nestes dois anos, provavelmente derivados dos tratamentos e da pastilhagem diária, mas não vou amandar-me a um poço a propósito. Danço cinco vezes por semana, é essa a minha roda.</p><p style="text-align: justify;">Mas não era a isto que eu vinha. Chego ao parque de estacionamento, coloco o bilhete lá naquela coisinha óptica e diz a máquina: “bilhete inválido”. Entretanto, formava-se uma bichinha atrás de mim, tudo muito solidário, “Ai, agora como é que a senhora sai daqui?”, “A senhora venha atrás do meu e, quando a cancela abrir, passamos juntos” (eu já a ver-me finada, degolada por uma cancela de parque de estacionamento), “A senhora peça ajuda”, já eu ligara para cônjuge, “O que é que queres que eu faça? Vem para casa e amanhã vais aí buscá-lo” (a ver se não me esqueço de o retirar dos contactos de emergência), já eu premia com todas as forças de meu indicador o botão de SOS da máquina e nada, o homem devia estar a dormir lá dentro, já eu ligava para os dois números de assistência, um não atendia, o outro dizia que só funcionavam num raio de um horário que, obviamente, não incluía o meu. Tentei outra vez na porra óptica, “bilhete inválido”, Cristo, que merdas tão grandes que só a mim sucedem. Carreguei então de novo no botão de SOS e lá hei-de ter acordado o humano, “O senhor desculpe…”, “Ó minha senhora, eu estou a trabalhar” [ninguém diria, há dez minutos, se calhar tinhas ido fazer cocó enquanto eu me espremia aqui dos nervos]. Mas foi útil. Fez-me ler o bilhete todo, hora de entrada, número de código, nome do parque. “A senhora está no parque errado”, ah, eureka, fico-lhe muito agradecida e até estimo que a sua inoportuna evacuação tenha decorrido pelo melhor. Mas a sério, fiquei desconfiada que mudaram os parques de lugar só para medirem a minha capacidade de sair de uma situação.</p><p style="text-align: justify;">Quanto a mim, não sei se estou pior ou só mais velha.</p>linda bluehttp://www.blogger.com/profile/14127533587817702466noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-4258051922846575489.post-52965755707946438382023-10-12T11:44:00.001+01:002023-10-12T11:44:59.012+01:00Agora eu sabia fazer malas e o meu cavalo só falava InglêsA noiva do cowboy era você além das outras três<p style="text-align: justify;">Algarve em Outubro, em cheio na semana de calor, férias marcadas com um mês e meio de antecedência. </p><p style="text-align: justify;">Tive trinta e seis horas para fazer esta mala, não seguidas, pois entretanto houve que dormir, satisfazer outras necessidades básicas, cozinhar, lavar, estender, recolher, passar a ferro, limpar cantos mais visíveis - Mlle. Que Fala Tanto adoeceu após três semanas de férias (provavelmente, fazem-lhe mal. Para o ano já só goza duas semanas) e meteu baixa por outras quatro. Esta que tecla não quis chamar outra de substituição, pois cada uma que vem é pior que as anteriores todas. O ano passado tive cá uma que me partiu o cano do aspirador e me torceu irremediavelmente o cabo do ferro. Cheira-me que andava às piruetas pela casa com os meus electrodomésticos na mão. Não me lembro como é que ficou a bicha do duche. Só devia apreciar eléctricos. Tive diálogos com as substitutas de minha Sandra dignos de filme de terror: "Senhora, eu não sei dobrar camisas"; "Passe-as, que eu as dobro". Fim do dia: camisas todas dobradas por ela. "Senhora, eu não sei passar a ferro, mas fui ver ao Youtube e acho que aprendi". E não é que passou tudo eximiamente? Fico-te a dever uma, You.</p><p style="text-align: justify;">Ora, esta mala, comecei a fazê-la de antevéspera, porque já sei que me falha sempre qualquer coisa. Mas também aprendi que posso começar na semana anterior, que vou sempre esquecer-me das cotonetes. Ou do único champô que faz iludir que o meu cabelo não parece tanto acabado de sair de uma permanente. Desta vez até nem me esqueci de coisas muito importantes, a não ser dos dois biquínis de que mais gosto (e os únicos que não demonstram por A + B que me sobram coisas), do corta-unhas (não as cortei, portanto) e do espelho que aumenta a imagem por dez e nos revela pormenores na cara que desconhecíamos ter e dos quais devíamos envergonhar-nos: pêlos, manchas, altos, baixos, rídulas (quais rugas, quais quê). Já estive para escavacar aquilo, só para não ter mais trinta e quatro preocupações diárias, mas diz que dá azar por sete anos, e não esquecer que este multiplica por dez. Há cinco anos, partiu-se um espelho enorme no lar (durante uma das mil obras que o dito já sofreu), estava na varanda para ser transportado para outro lado, lá veio o vento e tudo levou, escaqueirando-me a grande porra e a minha vida por sete anos. Ainda faltam dois, ando aqui mais direitinha do que na trave olímpica. </p><p style="text-align: justify;">Enfim, revelei ao mundo que me rodeava as chichas que, se pudesse, arrancava à naifada, cheguei à cidade com umas unhas boas para esgrimir com Eduardo, Mãos de Tesoura e com pelitos vários a assomarem-se no sobrolho, dando-me aquele ar mais sóbrio com que a pessoa fica.</p><p style="text-align: justify;">(Férias maravilhosas. Levei comigo primogénita, que tem exactamente os mesmos ritmos biológicos que eu, o mesmo humor - o bom e o mau, nas mesmas proporções -, só que é francamente mais inteligente.)</p><p style="text-align: justify;"><br /></p>linda bluehttp://www.blogger.com/profile/14127533587817702466noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-4258051922846575489.post-12678732387549609102023-09-26T14:58:00.004+01:002023-09-26T17:37:09.022+01:00A sala das pegas *<p style="text-align: justify;"><a href="https://www.parquesdesintra.pt/pt/aprender-em-casa/descobrir-as-colecoes-dos-palacios/palacio-nacional-de-sintra/sala-das-pegas/">*</a></p><p style="text-align: justify;">Entro na clínica que fica num rés-do-chão, porta sempre encostada, é só empurrar, e sou invadida pela animadíssima conversa das cinco mulheres que ali se encontram, uma senhora de idade com o cabelo extremamente curto, queixas de unhas negras e os pés sempre levantados ao nível da anca — cada vez que os baixou, percebi que não chegava com eles ao chão e então mexia-os para trás e para a frente —, uma mulher gorda — ela é que disse “Eu sou toda gorda” —, a trabalhar no portátil e ao telemóvel qualquer coisa de carregamento de trezentos e quinze cabazes de Natal, enquanto falava com as outras quatro, uma terceira, completamente vulgar, cabelo pintado de vermelho, sandálias rasas, prateadas, que disse calçar o quarenta (outro dia ouvi, numa série de crime, um detective dizer acerca do esqueleto humano que havia sido encontrado, “Só pode pertencer a uma mulher muito jovem ou muito baixinha, o pé corresponde a um trinta e sete”, por acaso achei piada, porque nem uma coisa nem outra, mas acho que a tabela americana deve ser diferente da nossa), uma quarta mulher, a mais jovem de todas, seus quarenta anos bem estampados, vestida de adolescente, mascando ruidosamente uma pastilha elástica, declarando-se incapaz de usar os mesmos ténis brancos duas vezes, logo para lavar, e, de facto, os sapatos brilhavam como novos, os atacadores impecáveis, e, por último, mas não a última, a histriónica, vestido transparente com riscas largas muito coloridas, botas de cowboy, peito gigante e gingante, falando ininterruptamente, rindo a cada pausa, gabando seu gesto e modo a cada frase, um ruído impossível de ignorar, uma tormenta igual a um álbum inteiro de metal. As cinco taca-taca-taca, sobre roupa, sapatos, lide doméstica, truques secretos para a despachar mais rapidamente. A faladora entrou no gabinete de psiquiatria e julgo que ficou lá a viver, pois não voltei a vê-la. Pergunto-me até que ponto a alegria e a euforia não estão intimamente ligadas com a tristeza. As restantes quatro tinham ido só para lhe fazer companhia. Quando me apercebi que a minha consulta estava bastante atrasada, disse para comigo que talvez fosse melhor ir arejar a cabeça e o resto do corpo. Devia estar em transe ansioso quando abri a porta e saí, porque respirei fundo o ar misturado de árvores e escapes e considerei o barulho dos automóveis e das gentes que passavam uma verdadeira entrada no céu.</p><p style="text-align: justify;">Ainda bem que nasci mulher. Se já tenho alguma dificuldade em aturar-me a mim, que direi aturar uma toda a vida?</p>linda bluehttp://www.blogger.com/profile/14127533587817702466noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-4258051922846575489.post-35605558074045318572023-09-12T19:07:00.003+01:002023-09-12T19:19:25.138+01:00O já velho e eterno problema de fazer uma mala condigna <div style="text-align: justify;">Vamos aceitar sem cerimónias que não sei fazer malas. Desta vez, despejei a gaveta das cuecas para dentro da dita, levei o dobro dos biquínis para os dias que ia ficar, levei apenas uns calções e uns ténis, um vestido para cada dia e umas calças caso chovesse, apenas uma parte de cima de pijama e seis de baixo e zupa com ela. Resultado: voltei com dezenas de cuecas limpas, usei todos os biquínis porque me dava ao luxo de fazer pausa de almoço, passei o tempo a lavar os calções de treino no bidé do quarto pois frequentei o ginásio até ao estoiro (dois quilómetros de cada vez na passadeira transformavam-me numa torneira de suor, o que vale é que não cheiro. A retirada de gânglios não tem só coisas más e a outra axila solidariza-se e também não cheira), usei as calças porque choveu mesmo, e tive que improvisar pijamas com t-shirts giríssimas que tenho. </div><div style="text-align: justify;">Este ano fiz férias no sul da nossa Espanha, escapando airosamente ao sul daquele Portugal seboso e chineleiro, que adora fazer filas para tudo, até para o pão que o diabo amassou. Do lado de lá, sessenta por cento dos hóspedes eram portugueses, o que também não é só vantagens. Queres perceber onde está um português, nem que seja na China? É o homenzinho que tropeça. É o que desconhece em absoluto a noção de espaço vital e fala alto e escuta tudo o que dizes. É o que come três pães ao pequeno-almoço, ou então ovos mexidos com um estrelado (saw it) e fatias de pão com bacon. Eu comi todos os dias um Donut, ora pequenino, ora grande, ora médio. Bem feita que me venha parar tudo ao <strike>donut</strike> pneu. </div><div style="text-align: justify;">No geral, a Península Ibérica é uma fartazana de varizes e celulite, e não é só nas mulheres. Mas as criaturas estão tranquilas com aquilo, quem sou eu para me ralar?</div><div style="text-align: justify;">No geral, apreciei assaz as férias. Fiz muita praia, num mar que até permitia nadar, muita piscina, apanhei muito sol e a minha pele não berrou que só tem um ano de radioterapia, o meu cabelo não ficou com aquela cor de cocker spaniel (muito protector, muito chapéu), dormi e comi em excesso mas não pus um grama (devo ser muito criteriosa ou tenho uma balança burra), não bebi senão água e cerveja sem álcool. É por estas e por outras que julgo que um dia me canonizam, nem que seja à força.</div><div style="text-align: justify;">No regresso, porque perdemos uma hora para fazer dez quilómetros derivados a um acidente (um carro foi parar ao talude, desconheço como é que se faz semelhante manobra) e tínhamos, ao todo, para almoço, quatro barrinhas de cenoura, dois Actimel* (ou Actimeis, como diz o povo), um pacote de batatas fritas com sabor a ketchup e um chocolate branco, para além de um pequeno saco de ração para gatinhos, porque nos tomámos de amores por uma gata com uns dois meses, que baptizei de Mira. Repartimos aquilo tudo, prescindindo da ração, mais porque ficámos empanturramos com a mistura anterior, e foi o nosso almoço, já não havia cá tempo para paragens. Não percebo como é que o meu aparelho digestivo não me manda à merda. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">* NMPPI</div><div style="text-align: justify;"><br /></div>linda bluehttp://www.blogger.com/profile/14127533587817702466noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-4258051922846575489.post-3689562824057483172023-08-23T20:01:00.010+01:002023-08-23T22:58:23.633+01:00Sutiãs chineses <p style="text-align: justify;">A loja do chinês do meu bairro já pertenceu a vários donos — tanto quanto me lembro, os primeiros foram o casal Zhu e Jy —, e, de há uns bons anos para cá, está à frente do negócio um outro casal, de quem desconheço os nomes, porque não os oiço conversar. Ele percebe e fala um Português cheio de LL, mas corrente. (Fico sempre a pensar o que será da vida de um chinês que não consegue dizer os LL, como <a href="https://youtu.be/pUmyY8qANa8">Feuisberto Uorenço Uauande</a>. Em vez de “Não estlague”, se calhar diz “não estuague”.) Já ela, é uma verdadeira desgraça, tanto a entender como a falar. Mas ri muito, com os olhos em linha, o seu carrapito e o metro e meio de altura, acha divertido tudo o que eu digo. Há-de ser porque não entende. Encontra-me na rua, eu digo “Bom dia” e é vê-la toda grisada.</p><p style="text-align: justify;">Vou lá muito, à loja deles. Têm sempre mil merdinhas que, se não fazem falta, passam imediatamente a fazer. Outro dia, andava eu a deambular pelo espaço comercial asiático quando me deparei com os sutiãs da minha vida: sem aros, sem copas, sem elásticos, sem costuras. Vi os tamanhos e, dos que havia, só me servia o preto. Vai de preto nas meninas, que bem precisam de ser bem tratadas.</p><p style="text-align: justify;">Gostámos tanto da peça de lingerie, que vai de comprar as duas outras cores básicas: bege e branco. Entro na loja, faço sinal à chinesa que venha comigo e ela hi-hi-hi, lá me acompanha até ao recanto das intimidades. Pergunto pelas cores, ela hi-hi-hi, apercebo-me de que não há o meu tamanho, aproveito para perguntar se dá para tirar as duas almofadas, e ela, como não percebe um boi, apesar de eu ter gesticulado, grita, enquanto simula com as duas mãos dois enormes peitos: “Glande!”. E mais dez hi-hi-his, os ombros encolhidos até lhe desaparecer o pescoço, um toque solidário no meu braço e eu: “Gostaria ao máximo de não ter que discutir sutiãs com o seu marido, mas apercebo-me de que tal é impossível”. O que a doida riu.</p><p style="text-align: justify;">Foi só chegar ao balcão, dizer o que queria e, passados dias, já lá, e depois cá cantavam os ditos suportes. O homem não se riu vez nenhuma, mas, em compensação, também não chorou.</p>linda bluehttp://www.blogger.com/profile/14127533587817702466noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-4258051922846575489.post-46299544492487685182023-08-21T09:45:00.008+01:002023-08-21T19:19:46.892+01:00Chico-espertice<p style="text-align: justify;">Entro na farmácia do hospital convencida de que vai ser canja de galinha despachar-me num instante: Agosto, <i>toda a gente </i>fora, só peregrinos pelos passeios, nenhum iria ali tomar a vez de ninguém. Afinal, foi fígado. Com ossos e espinhas e nervos: sessenta pessoas à minha frente. Esquecera-me que a doença não mete férias. Mas não posso ir-me dali, que é a vontade que tenho, porque preciso mesmo daqueles comprimidos para sobreviver: são os que evitam que o cancro desate a passear pelo meu corpo. Prescrição de mínimo cinco anos, máximo dez. Se sobreviver até à última toma, já dou por ganha esta coisa, sei lá que nome lhe dar. </p><p style="text-align: justify;">Faço o que é costume fazer quando tenho muita gente à frente: conto o número de guichets, o tempo médio de atendimento de cada um e faço a divisão, para calcular quanto tempo vou esperar. São seis, um deles não tem ninguém, conta cinco. Assim à queima-roupa, não consigo fazer cálculos: entra uma mulher com uma farda de auxiliar e fica quinze minutos a conversar com a farmacêutica do guichet 3. Depois sai, a outra abandona o local de trabalho e, ao cabo de cinco minutos, ambas voltam, para conversarem mais um quarto de hora. Começo então a desconfiar que o tereréu não é sobre trabalho, mas quem sou eu? A mulher sai de lá com um saco de plástico com seis caixas de magnésio e é aí que puxo as antenas para fora, uma vez que o contador das senhas não anda para a frente (nem para trás, vá lá). Entra um homem com uma menina no carrinho, aí pelos seus cinco anos, sem qualquer espécie de incapacidade para andar. Atrás dele, uma mulher cheia de saúde, mas agarrada aos rins e com uma expressão de sofrimento bastante circunstancial. Já cá ando há demasiado tempo e vi demasiadas caras em agonia para cair na daquela. Começo a sentir as tairocas a enfiarem-se-me nos pés, revejo mentalmente a lei - <i>crianças <b>ao colo</b> com menos de três anos - </i>e já pondero ir atrás dos três para lhes dar uma breve luz jurídica, qual fada Sininho falante, quando me lembro das doutas palavras de uma das minhas orientadoras espirituais (<i>Respire fundo e conte até dez</i>), respiro como se tivesse acabado a maratona, conto até dez saltando os ímpares e já vou levantar-me quando aparece um rapaz com meias cirúrgicas vestidas e um par de muletas, a cabeça até ao chão, todo ele um calvário que me dá para pensar que talvez seja primo daqueles pedintes dos semáforos da Praça de Espanha e de Sete Rios, que são demasiadamente deficientes e coxos para ser verdade. E então, ao cabo de uma hora disto, percebo que os prioritários são tantos que os outros vão ficando para trás e a m. do ecrã das senhas não avança nem à paulada. Calma, Maria Linda de Blue. Vai-te informar. <i>Boa tarde. Pode informar-me se quem tem atestado de incapacidade também é prioritário? </i>Voz de desenho animado: <i>Sim, sim, a senhora exibe o atestado e é atendida com a senha de prioritária. </i>Os cinquenta e dois que ainda faltavam para a minha vez transformaram-se em dez. </p><p style="text-align: justify;">Chico-espertice? No fundo, não. Uma, foi tomar meia-hora a quem estava à espera. Outros, foram com uma criança enorme no carrinho. O outro levava meias brancas e canadianas. </p><p style="text-align: justify;">Usei o atestado. Não gosto, não quero ser definida por uma doença ("Aquela que tem cancro", como dantes "Aquela que tem quatro filhos"), mas, já que tenho que a carregar e ela me confere pequenos alívios, que carregue o diabo os outros que vão para lá de meias e coisas assim parecidas.</p><p style="text-align: justify;">(Já muitas vezes ponderei ir para os hospitais, repartições de finanças, centros de saúde e outros infernos que tais, a arrastar chinelos, de bata de nylon vestida - que, como se sabe, cheira a bedum -, o cabelo com um carrapito oleoso ao alto da cabeça, desmaquilhada, sem verniz e a chuchar nos dentes, aos berros para um telemóvel assuntos da vida da Lina e do Mário, porque acho que, assim, seria mais bem tratada nesses lugares.)</p>linda bluehttp://www.blogger.com/profile/14127533587817702466noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-4258051922846575489.post-56601320718965743432023-08-07T11:52:00.001+01:002023-08-07T11:52:15.333+01:00É preciso tão pouco para me fazer feliz # 16<p style="text-align: justify;">Não sei se as pessoas já repararam que os nadadores profissionais, que até concorrem em competições, assim como as bailarinas da natação sincronizada, colocam uma peça no nariz para que a água não lho penetre e não lhes atrapalhe as performances. </p><p style="text-align: justify;">A pessoa que digita estas coisinhas também é assim: não pode permitir que a água — seja do mar, seja do rio, seja do lago, seja do poço, seja da piscina, seja da torneira, seja do charco, seja da Fonte Luminosa (da chuva nunca experimentei) — lhe entre narinas acima, qual teste de covid, caso contrário aquele jacto faz uma ligação directa com a garganta e é ver-me à beira-mar ou a qualquer beira de água a jorrar água por todos os buracos da cabeça, excepção feita às orelhas, acho.</p><p style="text-align: justify;">Então, há muitos anos, comprei uma mola de nadador. Pus aquilo — e atenção que o meu nariz é pequeno — e pensei, em pânico, que mais valia ir à água com uma mola da roupa no nariz (quem nunca?). Arrumei a tralha e voltei ao sistema antigo: mergulhos de mão no nariz e a outra à frente, não fosse ali a passar um golfinho e se esbarrasse com a estranha. Mais tarde, comprei outra mola, mas acho que a perdi logo na gaveta dos trajes veraneantes e, tanto quanto me lembro, também não era lá muito confortável. Isto foram-se passando os anos e, teimosa, comprei a terceira mola. Só que esquecia-me sempre dela em casa. Até ontem, dia em que empunhei a dita, coloquei-a no nariz, primeiro ao contrário, depois correctamente, e lá fui eu até ao mar, todos por quem passava a olharem curiosos (“A tia partiu o nariz”; “A tia fez uma rinoplastia que correu mal”; “O piercing da tia é fixe”; “A tia pôs uma argola do gado para se sentir estupendaça”), esperei pela primeira onda daquelas grossas, com para aí trinta centímetros de espuma e a velocidade de uma locomotiva, e brrrrruuuum, passou-me ela por cima e eu com os dois braços à frente da cabeça, como convém.</p><p style="text-align: justify;">Nunca mais poderei encontrar um rochedo, um banco de areia, um coral, quanto muito, parto um braço, o que é certamente melhor do que ficar numa cama toda a vida. </p><p style="text-align: justify;">Tenho a teoria, que acho altamente científica, embora ainda por provar, que o fenómeno da entrada da água no nariz destapado é de quem se viu obrigado a arrancar os adenóides. A água entra até ao cérebro, faz lá uma centrifugação qualquer, depois sai e está a gente todas desmanchadas, que parece que não nos ensinaram a nadar. Isto é bastante nocivo para a dignidade de alguém que, ainda por cima, já não vai para nova.</p><p style="text-align: justify;"><br /></p>linda bluehttp://www.blogger.com/profile/14127533587817702466noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-4258051922846575489.post-6963712408569762032023-08-03T20:22:00.008+01:002023-08-05T20:15:03.655+01:00Vinde a mim os peregrininhos Editado<p style="text-align: justify;">Post editado, que a pessoa também podia amandar para os rascunhos, ou então eliminar sem dó, mas que não sou feita dessa raça (nunca aqui contei que, só numa manhã, salvei a vida a cerca de quarenta mosquinhas da fruta, através do método copo + papel, e não o fiz porque sei que o Planeta berraria de troça de mim), mas (e aí vai mais uma oportunidade para o Mundo o fazer) é que juntei João Paulo II com Francisco num só, o que apenas denuncia a minha completa abstracção por estas lides, e não que já estou varrida, se acreditarmos nas dezenas de milhares de exames, análises e outros dói-dóis que me fizeram nos últimos vinte meses. </p><p style="text-align: justify;"><br /></p><p style="text-align: justify;">Aqui fica um pedido aos milhões que já leram este coiso: tenham paciência e boa continuação.</p><p style="text-align: justify;"><br /></p><p style="text-align: justify;">A cidade está um veludo azul, só contrastando esta ventania enviada pelo Cão, aparentemente para fazer arredondar as saias do papinha e, eventualmente, fazer-lhe voar para parte incerta a tigela que ele usa na cabeça. Não se engane quem pense que eu sou contra a liberdade religiosa e blás, só estou um bocadinho danada, ratada e frenética com o preço daquele palco, a origem do capital para o construir e depois o destino do lucro com a festarola, sobretudo porque calculado por Moedinhas, aquele presidente autárquico com voz de pífaro que só percebe de cêntimos, a avaliar pelo modo como multiplicou o número de jovens, gastos diários e resultado final. Tenho mais coisas contra padrecos, mas agora não me apetece vomitar.</p><p style="text-align: justify;">Como sempre em Agosto, Lisboa partiu para parte certa e ficam apenas os resistentes ao massacre dos supermercados pejados de pegajosos humanos de xnelo, óleo bronzeador (ou será dos fritos?) e vernáculo, das praias diminutas com colmos ao preço de um apartamento na capital, das filas para tudo, dos restaurantes de décima categoria a servirem-nos uma lasanha congelada às dez da noite, todo um pesadelo do qual fujo como do fogo do inferno. Normalmente, há menos de metade do trânsito, mas este ano está como o diabo gosta (e eu): quase não se vê uma alma viva na rua, apenas rapaziada de t-shirt amarela (isto mói-me: será que usam a mesma toda a semana?), chapéu e colar com a identificação, deambulando sem rumo (por exemplo, há bocado vi um grupo a atravessar entre o Hospital de Santa Maria e a Universidade Católica, ou seja, no sentido oposto ao do Parque Eduardo VII). Não incomodam, não estrilham, não se metem com ninguém. Tragam-nos de volta em todos os próximos Agostos, se faz favor.</p><p style="text-align: justify;">Não fui ver Sua Santidade. E explico: já o vi duas vezes, ambas em Lisboa. Na primeira, era petite petiza, na segunda, já um pedaço de mau caminho. <b>Referia-me a JP2.</b></p><p style="text-align: justify;">(Quando fui a Roma, não o vi, mas, em compensação, ele também não me viu). <b>Referia-me a Chico.</b> No fundo, temi que El Papa dissesse, apontando para mim: “Olha-me aquela! O tempo não passa por ela!”, e ainda me ver na contingência de revelar o meu segredo, como fizeram à Lucy. <b>Isto não poderia acontecer, já que o actual Papa nunca me pôs a vista em cima. Lamentável.</b></p><p style="text-align: justify;">(Ponto mais awkward desta visita papal: aquele Marcelo a recebê-lo na pista, ele em cadeira de rodas e o outro resolve dançar o rock and roll com Francisco.)</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhXKqzIHnyM7YSZlbfjbujeflgJQ6y5jWuExai3oUSwo5YNQgUmyy-sB_ZkeXUQScEJps5Mh7YcGXSmuO0VzoVb5xC8SnbOAc9SlPtLI9590sn7PHWhmosYDaoZ8NPf1ShvgaOE2oP4fW3CEaCgyL_nPEN_MKCC2pPt3nVu8h_L-_8vTeM7i32uiQx7Iw0d/s900/IMG_2116.webp" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="506" data-original-width="900" height="180" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhXKqzIHnyM7YSZlbfjbujeflgJQ6y5jWuExai3oUSwo5YNQgUmyy-sB_ZkeXUQScEJps5Mh7YcGXSmuO0VzoVb5xC8SnbOAc9SlPtLI9590sn7PHWhmosYDaoZ8NPf1ShvgaOE2oP4fW3CEaCgyL_nPEN_MKCC2pPt3nVu8h_L-_8vTeM7i32uiQx7Iw0d/s320/IMG_2116.webp" width="320" /></a></div><p style="text-align: justify;"><strike>Foi a terceira, mas está bem.</strike></p><p style="text-align: justify;"><br /></p>linda bluehttp://www.blogger.com/profile/14127533587817702466noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-4258051922846575489.post-59792277093610415392023-07-18T12:42:00.000+01:002023-07-18T12:42:21.549+01:00zzzzzzzz<p style="text-align: justify;">Tenho sono. Durmo como uma criança toda a noite, mas basta que me forneçam algo de muito aborrecido ou interessante, que preciso de dormir como se tivesse muita vontade de fazer chichi. É que nem sou esquisita, não necessito de um colchão galáctico nem de almofada ergonómica, nem de silêncio, nem de luz rebatida. Até um chão de pedra fria me serve. Quero dormir.</p><p style="text-align: justify;">Claro que ando a pastilhar como gente grande. Só para a tola, tenho duas terapeutas. Ontem estive com as duas, a primeira reprovou simpaticamente uma atitude/ decisão minha e só não me mandou lá voltar para a semana porque vai de férias. A segunda aplaudiu a mesmíssima reacção que tive e mandou-me lá voltar daqui a dois meses. Desconheço os critérios. Procurei fazer a mesma cara, usar o mesmo timbre, a luz que me iluminava era praticamente a mesma. No entanto, as sentenças de uma e da outra foram diametralmente opostas. Bem me queria parecer que um dia ia pirar de vez, só nunca pensei que fosse tão jovem (chiu, já disse) nem por este motivo. (Até parece que há uma lista taxativa de razões. Se é para emaluqueceres, emaluqueces e prontos.)</p><p style="text-align: justify;">Hoje sou acompanhante de cirurgiado. Pedi para ficar à espera no quarto, mas negaram-me a excelente ideia. Ao invés, vou ficar sentada numa poltrona de dois lugares semi-(des)confortável, mas não quero abandoná-la, não vá alguém tomar-ma: tenho uma ficha mesmo ao lado para carregar o telemóvel — cuja bateria consumo como tremoços, à custa de um jogo — e também a casa-de-banho. De toda a maneira, nem que se me arrebente a bexiga, não tenciono arredar daqui. Dói-me um bocado o final das costas, mas vou aguentar. Tenho um espírito de sacrifício inigualável, creio mesmo que só não serei canonizada porque já matei um gato e um melro com o carro, inadvertidamente. </p><p style="text-align: justify;">Quem olhar para mim neste momento, nunca dirá que aqui se encontra uma aflitinha por satisfazer quase todas as necessidades fisiológicas: vestidinho que cai sempre bem (também não engordei nada, apesar da criminosa doçaria que tenho consumido. Ou os nossos espelhos mentem-nos, “És tu, minha rainha”), sandalinha de salto alto, que me põe vertiginosamente (porque tenho vertigens) alta e me faz esquecer que, afinal, não tenho 1,68 metros, mas sim 1,65. Não encolhi, acontece que aí pelos vinte anos bati a pestana ao funcionário do centro de identificação, “Não me desconte os saltos” e ele ofereceu-me três centímetros, para além dos ditos, e aos seguintes foi só dizer: “Ponha lá a mesma altura, eu não mirrei entretanto”. Eis a verdade.</p><p style="text-align: justify;">Parece-me que vou deitar-me na poltrona, como aqueles passageiros das low cost e dos aeroportos com vendavais.</p><p style="text-align: justify;"><br /></p>linda bluehttp://www.blogger.com/profile/14127533587817702466noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-4258051922846575489.post-90137383599265315442023-07-01T21:17:00.001+01:002023-07-01T21:17:44.923+01:00Nunca subestimes<p style="text-align: justify;">Atrás de mim, um estrondo metálico, que me fez virar, constatando que um rapazinho tinha batido com a bicicleta no passeio, embora ainda estivesse em pé quando o vi. Começou a gritar uns gritos de dor lancinante, mas dizia-me a subestima que era “mais um puto do bairro que se estoirou de bicicleta”. Porém, o tom, o volume e, sobretudo, a aflição dos gritos, fizeram-me questionar “E se…?”, e despertar em mim a tal bombeira, que tudo acode, que prefere arriscar perder um minuto a roer-se de remorsos para o resto da vida. Os carros passavam por ele, abrandavam e seguiam, eu estava a uns trinta metros e corri para ele, vi-o pálido como uma mortalha, verifiquei que não tinha nada fracturado, umas feridas sem importância no joelho e na mão, agarrei-lhe os dois pés, “Tu estás a desmaiar, dá-me os teus pés”, ele já calado a fazer que sim com a cabeça. Entretanto, chegou gente que palpitou bastante e a mim fez-se-me aquela luz “Mas eu conheço-te!”, pedi aos opinativos que não o deixassem mexer dali, corri outra vez, mas desta na direcção da casa dele, chamei os pais pelo interfone e depois, quando voltei, já alguém da pequena multidão chamara o INEM. </p><p style="text-align: justify;">Lembro-me da carinha dele, a entrar na ambulância, um breve sorriso a piscar-me os dois olhos. Foram dez semanas mais um dia, de melhora, piora, cirurgias, tratamentos, esperanças, desânimo: pâncreas esmagado, hemorragias várias, líquido num pulmão. Na queda, bateu de frente e depois caiu em cima do topo de um dos pinos de ferro que separam a ciclovia do passeio.</p><p style="text-align: justify;">Fui vê-lo no dia seguinte a ter chegado a casa. Menos doze quilos, aos quinze anos representa vinte por cento do peso total. Demos um abraço muito demorado, ralhei-lhe baixinho ao ouvido “Que susto, meu menino, nunca mais nos faças isto. E agora alimenta-te para ficares fortezinho”, enquanto lhe acariciava o cabelo e lhe dava um beijo no que sobrou da bochecha. Ele tinha na cara aquele mesmo sorriso de quando entrou na ambulância, serei para sempre a primeira pessoa que o acudiu na enorme dor. Só porque não subestimei.</p><p style="text-align: justify;"><br /></p>linda bluehttp://www.blogger.com/profile/14127533587817702466noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-4258051922846575489.post-6529824724983494292023-06-21T17:10:00.001+01:002023-06-21T18:01:42.884+01:00Quem não sabe o que dizer | Quem devia ficar calado <p style="text-align: justify;">Caminhava eu a passos estreitos pela ladeira, rodeada de arbustos e flores exageradamente aromáticas — madressilvas, lavanda —, quando ela se cruza no meu caminho e me prega o susto do dia: conheço-a há décadas, mas não me lembro do nome dela. Já era, ao tempo do início da primária da minha primogénita, e ainda é, auxiliar. Agora tem um nome mais pomposo, tipo hospedeira de solo infantil, ou técnica superior de pim-pam-pum, mas não me lembro de qual é. Acho-a sempre igual, só muda a cor do pêlo — cabelos, sobrancelhas e pestanas branco-branco, aquele da neve e da cal. Abre-me os braços, muito espalhafatosa — sempre me deu a ideia de que ia desatar a cantar o fado a todo o momento, aquela inclinação da cabecita para trás enquanto fala dois tons acima do necessário, é algo sugestiva —, prega-me dois beijos, pergunta pelos meus e queixa-se que não me vê há muito tempo. Digo-lhe porquê sem entrar em pormenores sórdidos — o de ter arranjado caminhos alternativos no bairro para que ninguém me visse, por exemplo —, e então ela sai-se com esta:</p><p style="text-align: justify;">- A [Linda Blue], sempre aquela fortaleza, um dia foi-se abaixo. — E nisto, aquele gesto polegar-indicador, que percorre da cabeça à pança.</p><p style="text-align: justify;">Devo ter ficado tão atónita, que ela repetiu, agora com mais ênfase:</p><p style="text-align: justify;">- A [Linda Blue], sempre aquela fortaleza, um dia foi-se abaixo. — Juro que a vi empunhar um par de bandarilhas, que me enterrou no cachaço e até gritou “Olé!”, a bater os pezinhos no chão.</p><p style="text-align: justify;">Lá acabei de subir a ladeira, sangrando do pescoço e rindo não sei de quem, se dela, se de mim, que nunca na minha vida fui uma fortaleza, nem nunca me fui abaixo. Acontece que adoeci. Sei que vou deparar-me com estas pessoas para o resto da vida. Quando menos esperar. Quando estiver, como estou, cada vez mais forte. Não tenho vergonha de dizer que à custa de muita terapia.</p><p style="text-align: justify;">Balas perdidas? Apanho-as com a palma da mão. Não me atingem a cabeça, enterro-as com um pé.</p><p style="text-align: justify;"><br /></p><p style="text-align: justify;"><br /></p>linda bluehttp://www.blogger.com/profile/14127533587817702466noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-4258051922846575489.post-8895282057355867172023-06-13T14:54:00.003+01:002023-06-13T14:54:49.136+01:00Ricardo <div style="text-align: justify;">Uma febre que não cedia há oito dias, acompanhada de outros prazeres semelhantes, levou-me ao hospital, consulta de urgência de oncologia. Fui atendida por uma médica que era de uma exímia antipatia, tendo começado a esgrimir argumentos de que eu deveria ter aposta a máscara, uma vez que tinha uma infecção respiratória — que ela deve ter cheirado no ar, pois não era isso que me levava ali —, ao que respondi: “Não tenho dores no peito, dificuldade em respirar, tosse, ranho e espirros”. Mas a teimosa insistiu que eu não podia andar a atravessar um corredor cheio de doentes a fazer quimioterapia sem a máscara — ela pode, porque o diploma lhe conferiu uma assépsia jamais discutível — e, assim, a consulta decorreu entre uma pessoa que claramente devia dedicar-se à silvicultura e um pato de bico verde.</div><div style="text-align: justify;">Havia um grande alarido no corredor, que se estendia às salas de espera e à sala de tratamentos, cujo denominador comum era “Ricardo”. Eu já vira, de costas, numa cadeira de rodas, menos cabelo ainda, alguém que me pareceu ser <a href="http://lindaporcaoucheirodeestrume.blogspot.com/2022/11/a-linguagem-do-olhar.html?m=0">o meu menino aflito</a> daquela vez, a quem menti com os olhos, dizendo-lhe que todos saímos <i>disto</i>. Andava uma rapariga a correr de um lado para o outro, agora é preciso um papel, agora o carimbo é lá ao fundo, e ela incansável, “Eu sou a irmã do Ricardo”. Desta vez, o corpo da mãe ia numa derrota, a cabeça caída para um lado, os dois braços a crescerem até ao chão. Pareceu-me que, mais uns dias, e aqueles dois braços se abririam em cruz e assim ficariam para sempre.</div><div style="text-align: justify;">A meio da consulta, uma enfermeira foi lembrar a médica que me atendia de que o Ricardo estava lá fora à espera de vez. Pedrada da bruta, mas extremamente esclarecedora: “Pois, trazem-nos dos paliativos…”</div><div style="text-align: justify;">Saí do gabinete e encarei imediatamente com o Ricardo. Os olhos dele, desta vez, não pousaram nos meus: cravaram-se. Os meus dizendo “Menti-te. Fossem quais fossem os meus motivos, menti-te”. Ouvi-lhe um ronco, os olhos: “Mentiste. Já não vou ver-te com o cabelo comprido”.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div>linda bluehttp://www.blogger.com/profile/14127533587817702466noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-4258051922846575489.post-38573133453158181262023-06-07T16:12:00.000+01:002023-06-07T16:12:03.545+01:00Sósia<p style="text-align: justify;">- Diz (?) que todos nós temos um sósia em qualquer parte do mundo,</p><p style="text-align: justify;">diz-me a mulher que jantava comigo naquele dia.</p><p style="text-align: justify;">Diante da minha incredulidade, disfarçada de curiosidade de ver até onde é que ia o delírio, balbuciei um “Ai sim?”, para que ela continuasse e desfizesse, antes de se fazer, o nó que a minha cabeça ameaçava formar, apertado. Cheia de si, continuou:</p><p style="text-align: justify;">- Por acaso, gostava de conhecer a minha sósia.</p><p style="text-align: justify;">Percebi, desolada, que não ia desenvolver a tese, que, embora não seja inovadora, sabe sempre bem ouvir novas versões, quanto mais não seja para atestar do QI que vai pelo planeta. Percebi também que a sósia a que ela se referia era apenas no plano físico. Logo eu, que nunca quis ter uma gémea, que nunca desejei ter filhos gémeos. Não pelo trabalho em dobro, sim porque não vivo bem com pequenas desigualdades (com grandes, nem se fala) e comparações constantes.</p><p style="text-align: justify;">Vou fingir que acredito na teoria. Descontando (literalmente) o facto de que morrem milhares de pessoas por dia, será que a minha sósia ainda está viva? Que idade tem? Creio ainda que existe uma enorme parcela do globo onde ela não viverá com certeza, pois eu tenho exactamente zero de asiática e de africana.</p><p style="text-align: justify;">Sou única. As minhas cicatrizes contam a história da minha vida, pelo menos desde os cinco anos. O meu corpo guarda-as todas, como a um tesouro que conquistei a pulso e é só meu. Quantas costuras tenho? Nunca contei, mas andarão próximo das de uma boneca de trapos. Não tenho sósia alguma, e, mesmo quanto ao carácter, igualmente cheio de cicatrizes, é irrepetível.</p><p style="text-align: justify;"><br /></p><p><br /></p>linda bluehttp://www.blogger.com/profile/14127533587817702466noreply@blogger.com