07/06/2023

Sósia

- Diz (?) que todos nós temos um sósia em qualquer parte do mundo,

diz-me a mulher que jantava comigo naquele dia.

Diante da minha incredulidade, disfarçada de curiosidade de ver até onde é que ia o delírio, balbuciei um “Ai sim?”, para que ela continuasse e desfizesse, antes de se fazer, o nó que a minha cabeça ameaçava formar, apertado. Cheia de si, continuou:

- Por acaso, gostava de conhecer a minha sósia.

Percebi, desolada, que não ia desenvolver a tese, que, embora não seja inovadora, sabe sempre bem ouvir novas versões, quanto mais não seja para atestar do QI que vai pelo planeta. Percebi também que a sósia a que ela se referia era apenas no plano físico. Logo eu, que nunca quis ter uma gémea, que nunca desejei ter filhos gémeos. Não pelo trabalho em dobro, sim porque não vivo bem com pequenas desigualdades (com grandes, nem se fala) e comparações constantes.

Vou fingir que acredito na teoria. Descontando (literalmente) o facto de que morrem milhares de pessoas por dia, será que a minha sósia ainda está viva? Que idade tem? Creio ainda que existe uma enorme parcela do globo onde ela não viverá com certeza, pois eu tenho exactamente zero de asiática e de africana.

Sou única. As minhas cicatrizes contam a história da minha vida, pelo menos desde os cinco anos. O meu corpo guarda-as todas, como a um tesouro que conquistei a pulso e é só meu. Quantas costuras tenho? Nunca contei, mas andarão próximo das de uma boneca de trapos. Não tenho sósia alguma, e, mesmo quanto ao carácter, igualmente cheio de cicatrizes, é irrepetível.



02/06/2023

Dona Isabel

Vi-a a caminhar à minha frente, ladeira abaixo em direcção à escola, de onde está oficialmente reformada, mas não emocionalmente desvinculada. É Dia Mundial da Criança e lá vai ela, certamente distribuir beijos, abraços e berros, os olhinhos muito pequenos e verdes, sempre em linha com o sorriso constante. Um dia disse-lhe que ouvia os berros dela de casa, a cinquenta metros da escola. Deu uma gargalhada, acompanhada de um soluço, como sempre faz, e gaguejou que já lhe tinham dito isso. Com a bata-bibe vestida, sempre rodeada de crianças, era ter outro porte e lembraria a Senhora da Conceição. Mas, sem romantismos nem lirismos, veio ao mundo pequenina e rechonchuda, quase quadrada, quase redonda, com um infinito e aposto que confortável colo. “Põe o chapéu, olha o sol!”, “Não ponhas os pés na poça que te constipas!”, “Ó Pedro, não voltas a bater no Miguel!”, voz de longo alcance, a tomar conta, a conhecer todos pelo nome, adorada por todos.

Agora aí vai ela, fatinho de calça e casaco preto “estilo Chanel”, com um debrum branco, a calça atrevidamente curta, a mostrar o tornozelo, sandálias rasas de inspiração inglesa, “Tem piada, esta mulher, destituída de um corpo bem feito — anos e anos de trabalho físico e má alimentação —, tem uma certa pinta a vestir-se. Não cai no ridículo da legging com a blusa leopardo”. Nunca a vi com outra idade, já a conheço há quase trinta anos e não lhe perscruto alteração alguma, e entretanto passou a bisavó. Quando me encontra, pergunta-me sempre pelos meus meninos, sabe-lhes os nomes e as gracinhas desde o jardim de infância. 

Deixo-me então ficar parada para que ela avance e se distancie o suficiente para que não nos encontremos à porta da escola. Seria demasiado doloroso para mim explicar a razão do meu cabelo curto e estragar aquele sol que raiava na ladeira quando visse os olhos pequeninos e verdes dela a perderem a luz e a encherem-se de água.


25/05/2023

Os meus tops tiveram um bebé!

Não sei se se lembram de, há uns anos muito largos e compridos, os meus sutiãs terem tido um bebé. Sei que não se lembram, ingratos. Mas eu lembro-me, não só pelo milagre da multiplicação que isso significou, como também por nunca ter conseguido explicar-me semelhante fenómeno. 

Pois, repetiu-se. 

Isto é “muito eu”: quando compro básicos, até posso comprar também verde ou vermelho, mas o preto e o branco é certinho que me acompanham até ao lar. (Posso ter sido zebra noutra encarnação.) Vai daí, há uns anos — não sei agora quantos, e fazer contas parece-me que não quero —, comprei dois tops, um branco e um preto, tamanho M. Uma das crianças passava os dias e as horas a pedir-mos emprestados, pelo que lá fui à loja no intuito de carregar com mais dois, desta feita tamanho S. Recentemente, tipo ontem, apercebi-me de que tinha os dois tops brancos na minha gaveta, pensei “Ah, ela fala tanto…”, procurei a etiqueta para entregar à petiz o dela e… eram os dois M. Fui encontrar o S dela na corda, portanto não me enganei quando lhos adquiri.

Quero explicar isto e não encontro meio. Nunca consegui fazê-lo em relação aos sutiãs. 

A ver se tal magia se dá com os biquínis, é o dás! Pago-os todos a sangrar, a suar e a lacrimejar…


21/05/2023

Vida

Aparece-me, tenho a impressão, cada vez mais magra, os olhos a saltarem das órbitas, a pele da cara caveira adentro, as veias do pescoço dilatadas, toda a musculatura em sentido, cigarros seguidos, um ciclone de gente:

- Tens uma moeda? Estou esganada de fome.

Não sei bem o que significará o verbo para aquele pardalito, mas parece-me demasiado urgente resolver-lhe a questão. Sei que deixei quase todas as moedas que tinha na farmácia — eu, que ando sempre sem dinheiro, tinha um jackpot oferecido por uma máquina de um parque de estacionamento só porque lhe meti lá uma nota —, mas sabe-se lá. Vasculho no porta-moedas e angario, ao todo, noventa cêntimos. Dou-lhos para a mão, peço-lhe que veja na máquina dispensadora se dá para duas bolachinhas — que é, como se sabe, uma faustosa refeição para um passarinho. Mais tarde encontro-a à porta da aula de dança, “Então, deu para as bolachas?”, que não, tudo caríssimo, deu para a minúscula garrafa de água. A inexistente barriga deixar-se-ia enganar por cento e poucos mililitros do líquido fonte de vida. O desapontamento cresceu-me até ao desespero, quando a música tomou conta dos meus sentidos e transportei a preocupação para aquela outra, de não me enganar na coreografia. No meio dos giros, vi uma coisa redonda e dourada no chão. Apanhei-a, era uma medalha que me parecia a inicial C, precisamente a dela. Perguntei-lhe: “É tua?”, ela negou e então reparei que era uma Nossa Senhora com o Menino ao colo.