12/03/2024

Botei

o voto na urna. Não foi fácil. Pelo caminho, cerca de seiscentos metros, ainda ia, já não como em tempos — a fazer undolitá — a votar mentalmente por exclusão de partes “Neste não, naquele nem pensar, no coiso era o que faltava”. Como sempre, fiquei na sala exclusiva das Marias, de Maria Eduarda a Maria Viviana. Tinha tido um cuidado desmesurado a escolher a hora para ir exercer os meus direitos, que os tenho, minha senhora, para não encontrar as caridosas do “Estás bem?”, a enterrarem os olhos nos meus, uns ares tão sérios que julgo que vão ralhar-me já, já, eu naquela, “Estou, estou bastante bem, que eu saiba”, elas logo a amolecer o olhar, “Isso é que é preciso, espírito positivo”, como quem diz, “Coitada, diz que está bem, é deixá-la viver na ilusão de que não é a primeira de nós todos a morrer”, sabem lá elas se dali a cinco minutos não vem uma betoneira desgovernada que as mistura com o cimento. Escolhi tão afincadamente a hora, que as encontrei todas, mas consegui tornar-me invisível à mais empenhada, que quis um dia tomar café comigo no pós-tratamentos e esteve todo o tempo a chorar porque havia saído recentemente de uma peritonite. 

À minha frente encontrei dezanove Marias até à curva que dava acesso à sala. Chegou a minha vez, o rapaz que presidia aquela mesa ia adormecendo a ler o meu nome (já estou habituada) e deu-me aquela folha gigantesca, onde constavam partidos dos quais nunca tinha ouvido falar, como o fálico (?) “Ergue-te!”, ou bíblico, sabe Deus (“Levanta-te e anda!”), para além de mais um ou dois, agora não sei precisar quantos desconhecia. Quase todos, vá.

Já no meu cantinho, pronta para exercer, reparo que não há ali caneta ao meu dispor. Procuro na mala, sei que é raro ter uma caneta (trauma com uma que se me rebentou dentro da mala, não quero lembrar-me; o mesmo para os pacotes de açúcar; e as saquetas de molho de soja), mas desta vez lá estava uma, triste, só e abandonada, gelada, gelada. Nos entrementes, ouvia-se o meu murmúrio, “Não há aqui caneta? Uma pessoa puxa pelo cordelinho e não vem nada na ponta. Se não tivesse uma na mala, a esta hora não votava”. Fui à mesa entregar o meu papelinho e comuniquei: “No meu cantinho não havia caneta. Senti um convite, mais, um incitamento, ao voto em branco”. Rimo-nos todos muito e depois voltei para casa, com o meu dever (não me enganei, não) cumprido.


06/03/2024

Aprendam comigo, que eu não duro sempre

Quando tu, mulher, desconfiares que algo está errado porque alguém mexe no teu corpo, é porque está. Não estás errada. Deixa-te de dúvidas, “Será que…?”, “Não pode ser…”, “Sou eu que tenho a mania”. Não, não és: os abusadores não têm escrito na testa “tarado”. Das duas vezes que fui atacada — mesmo, com perseguição e encurralamento — eram homens novos, fato e gravata, malinha de cromados.

Outra vez na fila do supermercado. Tinha ido comprar só batatinhas para assar, postas num saco de rede. De repente, sinto um toque na cauda (vá, não me obriguem a chamar rabo ao meu rabo), que deslizou um pequeníssimo instante sobre o meu vestido. O primeiro instinto foi puxar as batatinhas atrás, com a intenção de as espetar na cara do fdp. Virei-me em décimos de segundo, à espera de um rapazola da escola profissional, para se gabar aos amigos, ou um bêbado qualquer, mas deparei com um senhor, muito bem posto, que, naquele momento, muito providencialmente, mexia nas suas próprias compras. Aí é que me vieram as dúvidas, “Foi impressão minha”, “Dou-lhe com as batatas no focinho e ainda cometo uma injustiça”, etecetera e parva. Paguei, as lágrimas a quererem chegar no pior momento, como sempre, saí para o vento e admiti a mim mesma: “Não foi nada impressão tua, devias ter-lhe enfiado batatas cruas até à garganta e, simultaneamente, demonstravas naquele lugar a quantidade de palavrões que uma senhora sabe aplicar no momento certo”.

Nunca se esqueçam disto: não há impressão ou desconfiança ou dúvidas, de que alguém, sem o nosso acordo, nos está a tocar. Está. Sempre. Mesmo.

(Em casa, perguntei a uma das crianças se estava ordinária, dentro de um vestido roxo de gola camiseiro, não curto, não justo, e ela ensinou-me: “Até podias estar nua, o problema não está em ti, está nele”.)


04/03/2024

Errare

Ainda não sei porquê e admito que nunca vou saber, meti-me um destes dias no supermercado. Já na fila para pagar, lembrei-me do bolo do caco, que não constava do meu cesto. Ali o abandonei e saí da fila, “Falta-me o bolo do caco!”, por acaso a pensar por que diachos se chama bolo àquele pão — já para não escalpelizar a palavra “caco” (monco? Burrié?) — e depois se chama pão àquele bolo de ló (e “ló” porquê? Por que não “dó” ou “lá”?) Pronto, já sei: devia estudar a etimologia das palavras antes de me meter aqui. Depois voltei para a fila, e “Ai, onde é que estão as minhas coisas? O meu carrinho?”. Estive mesmo para fazer um espavento, “Fui assaltada!”, mas depois lembrei-me que os bagulhos só são meus a partir do momento em que os pago. Foi quando percebi que estava na bicha errada. Enfim, só não erra quem não faz. 

Saí dali direitinha à loja de lingerie, entrei e disse à funcionária: “Olá. Eu sou a dos sutiãs.”. Isto porquê? Porque já entabulara diversas conversações telefónicas acerca daquela peça em particular, cor, tamanho, encomenda, já chegou, vou buscar, eu guardo. A pessoa, extremamente maquilhada (verde na parte não móvel da pálpebra, muito anos ‘70), respondeu-me assim: “Eu não sou daqui, sou de Odivelas.”. Curioso — pensei, pondo a cabecita de lado, como fazem as galinhas quando estão baralhadas (amiúde) — já não é a primeira vez que esta retro me responde isto quando a abordo. Será que diz o mesmo a todas as freguesas? Para a próxima, entro na loja e digo: “Eu não sou de Odivelas, sou daqui.” Só para ver o que é que acontece. 

Deslindado o imbróglio, chegámos à conclusão que as negociações que eu havia entabulado não haviam sequer tido lugar com alguém daquele espaço comercial, mas sim de um outro, para lá da Estefânia. Tudo culpas do Google, que uma pessoa põe “loja de x no lugar y” e o destravado apresenta-nos o lugar z. Não importa, a verdade é que estava tão empenhada na aquisição que me despedi da de Odivelas e determinei-me a zarpar Rosinha, minha canoa, até para lá da Estefânia. Acerco-me da viatura e deparo-me com um idoso, dentro do carro estacionado ao lado, a ver no telemóvel mulheres sem sutiã. É o mal de darem smartphones àquela faixa etária, coitados. Depois enganam-se e vão parar ao inferno, ou ao céu, ou lá o que é.


21/01/2024

Fui à festa e, parecendo que não, diverti-me bastante

Então, lá fui ao aniversário de um dos professores de uma das danças que pratico. Tinha a morada do restaurante, mas a senhora do GPS devia estar com a cabra e, em vez de me mandar pela Av. Berlim, mandou-me por estradas nunca antes percorridas, mas o certo é que fui lá ter, orgulhosamente independente e crescida. Lá chegada, dou com mesas e mais mesas de senhoras grisalhas, pelo que pensei que me havia enganado na porta e fora parar ao octagésimo aniversário de uma anciã deste mundo. Já ia rodar os saltos quando descobri uma cara conhecida, acerquei-me e anunciei que não conhecia ali ninguém. Parece que fora ideia do aniversariante: “misturar tudo”. Ah tá bem. Fui sentar-me noutra mesa, à espera da mistura que me calhava na lotaria, que chegou praticamente em manada e a quem conhecia todos. Todos, não é bem assim: um pequeno homenzinho de cabelos pintados com tinta Robbialac branca e moldados por uma bisnaga inteira de wet gel extra firme, à prova de bala, com plastificação a quente, depois congelado a cinquenta negativos, com recurso a uma massa branca cimenteira munida de electrochoques a quem ousasse tocar naquilo, todo ele vestido de branco até aos pés, anéis, pulseiras e colares dos que se vendem nas lojas de piercings e — cereja no topo do bolo de noiva (ou Virgem Santíssima?) —, o seu perfume patchouli. Ao lado de quem é que se sentou a flausina? Pois.

Depressa concluí que era totalmente indiferente quem nos calhava perto, pois ninguém ouvia ninguém, derivados da barulheira que um senhor fazia, de violinha em punho, gritos de agonia, “Meu bem, você me deixou”, isto com a desculpa que se tratava de música ao vivo.

Uma velhota que já estava com uma cadela de todo o tamanho quando eu cheguei, veio dizer-me ao ouvido que teve uma loja que faliu e prometeu ir a pé a Fátima quando conseguisse livrar-se dela. E que estava, por isso, a angariar um grupo para a acompanhar. Olhem, ide, mas não vos esqueceis do garrafão para a organizadora, senão ela nem de Loures passa.

Também foi uma briga com a ementa, era só pratos de maminha, peito não sei de quê e salsichas. Parti para o menu das pizzas e escolhi a verde, mas sem o pimento e a cebola, que são dois alimentos que adoro do coração, simplesmente, quando comidos ao jantar, falam comigo toda a noite. E eu preciso de dormir.

Comecei a ver passar jarradas de sangria e achei oportuno, só naquela de deixar um bocadinho de mau ambiente (o proclamado “peidinho social”), avisar que só pagava o que comesse, pois também já não estou na idade de cair nessa de pagar as borracheiras dos outros. E foi o que aconteceu no fim: pizza vegetariana e 7UP, que eu agora estou do mais abstémio que existe à face. Continuo pasmada com o facto de ainda não ter sido canonizada.

Ao meu lado direito ficou uma rapariguinha e a sua mãe, que me pareceu que não falavam com ninguém, a não ser uma com a outra. À frente de ambas, uma das nossas que levou o marido (má ideia, isso nunca se faz!), que pendurou a cabeça em modo de crucificado e já só a levantou quando acabou a refeição. 

Disse à miúda: “Já viste o emplastro que me saiu ao lado?”, do que ela riu muito, passou à mãe, que também riu muito e, encorajada pelo tricot que iniciara, prossegui: “E o casal que está à vossa frente? Duas múmias. Não sei se ele chega vivo ao final da festa”. A criança não se riu, mas eu não estranhei. Passei mais tarde um nico de aflição quando percebi que os quatro não se largaram o resto da noite em amena cavaqueira. Eu sou pro neste tipo de gaffes.

Foi muito divertido, dancei muito, só com um 7UP no estômago, não houve necessidade de capirinhas, cervejas ou sangrias. Só agora percebi que não é daí que vem o swing.