Foi durante aqueles dias de calor, a praia que este ano me está proibida — mas já lá estive, sentada sob o guarda-sol, de chapéu na cabeça e besuntada como um peixe (fora de água) para assar, juro que só pus os pés metade do corpo no mar uma vez, e nem mergulhei, olha, para o ano posso pedir seis desejos, paz, saúde, alegria, beleza, dinheiro e chocolates, não necessariamente por esta ordem —, que saí à rua e a canícula ia-me fritando os mióis, Natércia transformada num capacete de ferro daqueles que se colocam nos condenados da cadeira eléctrica, só lhe faltavam os fusíveis, achei mesmo que ia electrocutar a caixa craniana, então cheguei a casa e arranquei-a. Perguntei para o lado da casa onde se encontravam todos se preparados para me verem sem Natércia, o uníssono positivo, surgi então cheia de medo e alívio, mas sou tão parva e amada, a primeira reacção veio dele, não que goste mais de mim do que os outros, mas porque é mais rápido no gatilho, mesmo à macho, @s não binári@s que não me escutem, fui eu que fiz este homem que me enche sempre de orgulho e afecto, o primeiro abraço vem sempre dele, como naquele dia em que mandei mensagem para o nosso grupo com a palavra carcinoma, depois também naquele outro em que a palavra era remissão, disse ele: “Tão bonita”, com os olhos escuros e enormes que guardam a comoção dos do meu pai, para logo desmontar a “fraqueza” e acrescentar “Pareces um kiwi”. A mais velha, minha primeira vida, “Pareces uma actriz, ou a Sinead O’Connor”, a mais nova, “Que pausada”, o pai deles todos, “Pelinhos [meu mais recente petit nom], estás cheia de pelinhos na cabeça”. Foram seis meses a esconder o que estava por baixo da cabeleira, agora acabou também isso. Fiz o que disse que nunca faria.
18/06/2022
Nunca digas nunca
14/06/2022
Eu tenho problemas com médicos # 30
07/06/2022
200 dias
Foram exactamente duzentos dias entre aquele em que, agarrada ao papel, na avenida cheia de trânsito no chão e aviões no céu, percebi que tinha chegado o momento de me fazer forte e enfrentar a fera, e ontem, quando o médico me tirou a cruz das costas, as correntes dos tornozelos e a corda da garganta, e me disse que estou livre, matei o monstro, a quimioterapia limpou-mo do corpo.
Estávamos a lanchar, ela e eu, amigas desde os dez anos, já perdi a conta a quantas décadas tem esta amizade. Tínhamos o sol em cima, a luz toda só nossa, quando me lembrei de lhe mostrar em que pé está o meu cabelo. Levantei um dos lados de Natércia e os olhos dela logo marejados, eu sem cabelo, ou melhor, com um cabelinho pequenino, e de repente também sem chão, sem saber o que dizer, “O que é que foi? Ficaste comovida por veres o meu micro-cabelo?”. Agarrei as duas mãos dela, queria consolá-la do mal que tinha acabado de lhe provocar, e nisto ela dá-me a resposta mais bonita que podia ter dado: “Não, é que me lembraste muito o teu pai”.
28/05/2022
Sabichona
Naquele dia, que verdadeiramente não interessa para aqui qual foi, dirigi-me ao balcão de levantamento de exames médicos de um dos hospitais de Lisboa onde é praticamente imperioso que se deixe um órgão qualquer à nossa escolha para que seja possível liquidar uma factura.
A jovem criança que me atendeu, pestanas muitíssimo postiças, cabelo apanhado num rabo-de-cavalo extremamente repuxado, farda impecável, responde-me, após consulta do oráculo computorizado onde haveriam de constar quase todos os meus passos do último meio ano: “Não tenho cá nada”. Pacientemente, expliquei-lhe que não se deve usar secador no cabelo das bonecas seria operada no dia seguinte, pelo que um electrocardiograma e um RX de tórax são fundamentais para que a cirurgia possa ter lugar. E diz-me a bebé, de repente médica por osmose, do alto da sua científica sabedoria: “Mas não é por a senhora não ter o resultado desses dois exames que vai deixar de ser operada amanhã”. Tive uma pequena taquicardia, respirei um bocadinho fundo, equacionei dar-lhe uma palmada no rabo, mas apenas esclareci: “Uma cirurgia com anestesia geral requer que se façam esses dois exames, para que o anestesista saiba em que estado está o nosso coração e os nossos pulmões. Sem eles, nem o cirurgião pode operar, nem eu me deixo operar. Repare, se eu morrer a meio da operação porque não toparam com uma insuficiência cardíaca, dado que não tinham o resultado dos meus exames, a culpa morrerá comigo, mas solteira, pois ninguém saberá que este diálogo aconteceu”.
Acho que a baralhei. As pestanas postiças abriram em leque, pareciam uns pavõezinhos, quando me despachou para a colega — “A senhora vá ali ao balcão do internamento, pode ser que lá consigam [percebê-la] esclarecê-la” —, onde, simplesmente, no mesmo oráculo que a petiza consultara, constavam os meus exames, que a colega imprimiu e me entregou. Isto levou cerca de dois minutos, vá, dois minutos e trinta e nove segundos.