16/07/2025

Ela fala tanto # 33

Por exemplo, digo-lhe para fazer almôndegas para o almoço e ela responde-me com a descrição ao pormenor da casa de uma das irmãs na Costa, que afinal é uma tenda no Piedense, cujas segunda e terceira letras troco sempre sem querer quando rarissimamente lá passo e que só ficará na História da criminologia portuguesa por ser onde estavam instalados os pais e a própria Ana Cristina, único e dos mais tristes homicídios de que há registo, cometido pelo gang do multibanco.

É muito cansativa.

Mas mora ali um coração grande e bom, o que deve limpar toda a porcaria que me mete pelos ouvidos adentro. O pai dos filhos, com quem mora desde os dezasseis anos, tem uma pequena reserva onde instala animais que vai apanhando feridos ou abandonados. Tem lá, neste momento, dois casais de patos-bravos e uma galinha. Tirou a guia aos patos para que eles não voassem, e os dois casais lá se reproduziram, não sei se o mesmo pato com as duas patas ou se duas para dois, esqueço-me sempre de perguntar esses pormenores. Também porque receio que ela me conte a história da fractura da mãe, que nunca sei se foi de um braço ou de um pé porque entro em off quando ela começa a desbobinar. 

A verdade é que as duas patas ficaram chocas, dez ovos cada uma. Os primeiros dez nasceram algumas semanas antes dos seguintes, eu vi o filme e comovi-me porque também sou parva e o milagre da vida agrava-me essa característica. Entretanto, morreram três, pois a tal vida também consegue ser estúpida e ai a selecção natural e ai a lei do mais forte e porras. 

A segunda pata cansou-se de chocar ovos, é capaz de ser muito jovem e ou tola, deixou três ao abandono e foi à vida dela cuidar dos séptuplos. A galinha ficou choca, não tinha galo, não vai de modas: chocou os três ovos e nasceram-lhe três patinhos.

Diz que parir é dor, criar é amor, pelo que a galinha e os patinhos convenceram-se de que eram mãe e filhos. Só que a pata parideira e abandónica reconheceu aqueles três como sendo seus. Ao início, bicava a galinha como se a desgraçada fosse uma raptora ou uma subtractora de menores. 

Não sei como é que se entenderam. Sei só que, actualmente, andam as duas patas e a galinha a rodear os patinhos em todo o espaço, e ai do gato ou de outro animal qualquer que tente atacar os pequenos. Terá primeiro que lutar com as três mães até à morte.

Eles comem cascas de frutas e legumes. Dou comigo a descascar kiwis, deixando a casca cada vez mais grossa. A taça da alface fica a pouco mais de meio, para poder juntar tudo e, no dia seguinte, os patos terem refeição. 

Eu também falo muito.



12/07/2025

Quase

Fui lá por ir cumprir uma obrigação familiar, mas, e principalmente, por querer voltar a um lugar onde sentisse de perto a minha mãe. Na verdade, iria sempre, aqueles são lugares onde posso observar as pessoas com calma e tempo, onde a loucura é a regra do normal e onde a paz reina, apesar de, uma vez ou outra, soar uma voz alterada. Como a da mulher da cadeira de rodas, pele tostada em contraste com o cabelo todo branco, mas, sobretudo, com os dois lampiões azuis no meio da cara. 

Ando a ver do meu homem, não sei onde se meteu.

Sentei-me à mesa para acompanhar a refeição do aniversariante, e surge-me pela direita uma cadeira a rodar para trás, um homem bonito de olhos com riso e gozo lá dentro, logo para mim,

Boa tarde, minha senhora.

Olá. Como vai o senhor?

Eu estou bem, mas estou quase lá.

Não sei se não chegoantes.

Veja se consegue chegar, para me receber de braços abertos.

Os risos que seguiram este pequeno diálogo foram um coro em profundidade e duração, gargalhadas infantis pelo inexplicável inesperado, inesquecível ou não. Nunca recebi um piropo macabro, ele já os deve ter dado sob todas as formas, o criminoso, vestido exactamente com o uniforme de um cavalheiro sem fraque: calças bege, sapatos de vela, pólo azul, leve casaco de tecido. 

Depois da sopa, anuncia: 

Vou fumar.

Não quer sair dali e faz o desafio:

Queres vir, Linda?

Não posso.

Porquê, estás doente?

Já estive. Não posso fumar, não posso beber, isto é uma vida de convento.

O que é que tiveste?

Cancro.

Ai, foda-se.

Logo as duas mãos na boca, cruzadas uma sobre a outra, como se andar de cadeira de rodas fosse pedra leve, calvário de apanhar flores.

Fume lá um por mim.

Fica descansada. Eu já volto.

Não voltou. Ficou no pátio a fumar, não sei se um, dois ou mais cigarros. Não jantou, ali se deteve noutro lado e não me acenou de volta quando me fui embora. O mergulho que deu nalgum lugar tirou-lhe a fome e fê-lo voar com o fumo, enrolado nos seus galanteios, esquecido. 

Deve ter razão, é capaz de estar quase .

17/06/2025

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar ao supermercado # 63

Acerco-me, confiançuda, das caixas em que a gente, pessoas humanas, é que faz tudo: desde o registar ao pagar — no qual deveríamos ser agraciados com um respeitoso desconto —, ao ensacar, nada passa pelas mãos dos funcionários. Isto, claro, em se tratando de um vulgar terrestre, já nado com o dom da tecla e da leitura óptica. Em cada compra das minhas, o mínimo de vezes que chamo a ex-antipática do braço entrapado são umas três. Hoje, perdi-lhes a conta. Fui confrontar-me com uma máquina que absorveu o mau génio que dominou em tempos a ajudante-de-clientes-aflitos, e que implicou comigo logo à cabeça. Primeiro artigo, um par de rolos de papel de cozinha. "Artigo desconhecido" [Oh, Deus, queres ver que vim comprar ouro em pó?]. Ela veio, tocou em trinta e dez botões, passou aquela coisa que parece um secador de cabelo [hei-de experimentar] por vários cartões que trazia no bolso, e sentenciou: "Pode continuar." Continuei. Passa isto, passa aquilo, tudo a eito. Ah, não, espera. Passei um artigo que pesava vinte gramas e a máquina indiferente. Passei uma embalagem de fiambre, põe-se ela: "Peso de artigo não especificado". [Fiambre já pesado na fábrica, capaz de ter uma barata a dormir dentro da embalagem, chiu, não acordem a menina]. Lá veio a senhora dos botões e da leitura óptica e repetiu que continuasse. Estava aqui a pessoa a passar uma embalagem de cajus, atira-a com uma certa determinação para aquilo a que chamam balança, mas que mais não é do que uma passadeira estática (como, aliás, deveriam ser as de todos os ginásios), vê lá escrito Caju - não sei quantos euros, mas não vê os cajus em parte nenhuma. Rebusca no tapete dos registados, Ai, queres ver que sou o novo David Copperfield e, ao invés de um avião, faço desaparecer frutos secos?, nada do pacote, rebusca no chão, na vizinhança e, atónita, exangue, lá chama outra vez a amiga loira, que vem a rir, e ainda se ri mais quando lhe é explicado o facto. Depois encontra os cajus atrás da máquina, toca em mais quarenta e oito botões e usa aquele taser [não sei como não na minha testa] e some-se, não para trás da registadora, mas lá para o posto de vigia dela. Tento, então, passar um conjunto de três embalagens de toalhitas para a higiene do povo do lar, que a gente é suavemente limpinhos e, ao preço a que está o papel higiénico, mais vale isto, mas verifico que não tem um código de barras único e lembro-me que não sei multiplicar por três lá naqueles botões do ecrã. Por isso, rebento a fita que os une e pretendo passar um a um, que lá somar, isso sei. Passo o primeiro, pouso na passadeira e leio logo: Peso errado, ou coisa que me valha. A outra aparece-me e explico-lhe a minha enésima dificuldade, e é então que ela me esclarece que cada código daqueles é referente às três embalagens de toalhitas. Continuo sem entender, visto que acabei de passar seis litros de leite e tive de os virar de cabeça para baixo porque a asa com o código está no topo.

É claro que, muitos minutos depois, chegou o momento do pagamento. E paguei. E enchi um saco de supermercado, para além do meu, íntimo e pessoal, que já transbordara desde a cena do papel de cozinha. Tudo aquilo me exaspera. A alternativa, que é alguém registar as compras por mim, simplesmente não me assiste. Demasiada conversa parva para meus actuais parâmetros. A velhice tem destas coisas: poder escolher, poder dizer “não”, poder não dar contas porque. E peguei no segundo saco e o cheiro a peixe podre era assim algo de histriónico. Todo molhado por dentro. A água que teve, apodreceu ali. E eu a pensar numa solução. Tudo, menos chamar a minha já velha serva. Vou comprar outro saco. Não, tenho dezenas em casa. Vou deitar este fora. Não, este pesadelo custa uma parte do intestino grosso. Vou comprar sacos de plástico. Não, que eu sou pelo bem. Vou deitar-me para o chão e gritar que quero a minha mãe e que estou farta de viver estes pesadelos acordada, e depois, quando efectivamente acordo, são verdade. Vou fugir. Deixo aqui as m. todas e defeco no assunto. Não posso. Já entrei na recta da meta. E essa é uma rota de colisão. Então, a mais luminosa que me ocorreu foi pegar em parte de um dos rolos de papel de cozinha e limpar aquele nojo, enquanto paguejava, P. da minha vida, só me acontecem m., depois de todas as m. por que já passei aqui, agora tenho o c. do saco a cheirar a escargots podres. É isto, a velhice. É tudo descarrilar e ainda termos forças para trovejar, encher o saco com mais dez quilos de trampas e levar tudo para o lar. 

Um dia acertamos contas, Hades. Há-des ver.  


27/05/2025

O que interessa é participar?

Blhag, não. O que interessa é ganhar; ou então, ficar numa posição que não envergonhe as gerações vindouras. Ai, "Os últimos são os primeiros". São nada. Os últimos a entrar num elevador estreito como os do meu prédio, são os primeiros a sair, senão ninguém sai. 

Só balelas.

Aqui há bastantes semanas, nem me quero lembrar, fui enfiar-me numa corrida à noite, para percorrer um milhão de centímetros. Não treinei grande coisa, por preguiça, falta de vontade e ânimo e por achar inútil. Cada um sabe de si. [Hoje estou inquinadinha de ditados populares.] Foi ainda no tempo das monções que este país sofreu, pelo que os três primeiros quilómetros foram feitos à chuva. Nada de especial, não fora estar um frio de ananases, mas a pessoa humana ia resguardada com uma camisolinha por baixo da camisola da competição, fora a manga que uso às vezes para que o braço não se transforme numa pata de elefante. Nem dei por ter parado de chover, pois já suava as estopinhas e outros paninhos ordinários. Mas ia determinada a não parar nem para beber água, de tal modo que até levava um cantil de dois litros às costas — e ainda hoje ponho a possibilidade de terem sido aqueles dois quilos a mais a prejudicar o meu resultado —, para não ter sequer que abrandar. É claro que, ao primeiro quilómetro, já pensava coisas ao melhor estilo vernáculo (é um estilo!), mais ou menos: "por que piiii me vim meter nesta m.?". Não me doía nada, nem os pés [agora encravam-se-me as unhas, a quimioterapia ainda circula alegremente. E também devo estar um nico radioactiva], nem os joelhos [que nunca doem, mas é uma queixa vulgar do povo], nem os pulmões, nem o burro. Mas doía-me, sobretudo, a alma, muito em particular quando me vi sozinha, de noite, numa cidade cujos contornos mal conheço, a tentar correr, e nem pelotão à frente, nem atrás, com a possibilidade (que teria sido superiormente inteligente) de me atirar para o chão e chamar os meus bombeiros, que me levassem para a barraca e me dessem miminhos, como já aconteceu. Ao invés, havia uma força estúpida que me ordenava: "Continua, bruta!". Devia estar no sexto quilómetro, a solidão iniciara-se há minutos, quando me aparece uma anja alada e me diz: "Vamos embora, juntas até ao fim!". Explicou-me que faz tracking e que, nessa modalidade, ninguém fica para trás. O último é sempre acompanhado pelo "vassoura". Então, começou a varrer-me na direcção da meta, os piores quatro quilómetros que já corri na vida. Dores, agora sim. Dores nas plantas dos pés, a queimar, dores nas ancas, dores nas mãos, a inchar como salsichas frescas, dores nas costas, dores na cauda equina, dores, dores, dores, e estrada, estrada, estrada. Não sei quantas vezes morri. Ia acompanhada da minha bruxa fada e dois polícias de mota, com muitas luzes azuis, ou eu já as multiplicava, tamanho e tão penoso era o calvário. Aproveitei e contei a história da minha vida à Vassoura, porque já estava a correr há mais de uma hora e estava aborrecida de estar calada. Pedi a um dos agentes que me deixasse acabar a corrida sentada na garupa do motociclo dele, e ele riu-se de nervos. Tudo me ocorreu, mas tudo corri e cheguei, atravessando a meta de braços vitoriosos (ainda não sei como consegui erguê-los naquele momento). Uma multidão esperava por mim para a ovação, um dos polícias tirou o capacete e disse-me que queria dar-me um abraço. Assim que o fez, segredou-me ao ouvido que nunca viu um exemplo de resiliência como o meu. Cada um dá-lhe o nome que lhe quer dar, eu acho que sou só teimosa como uma mula.