Por exemplo, digo-lhe para fazer almôndegas para o almoço e ela responde-me com a descrição ao pormenor da casa de uma das irmãs na Costa, que afinal é uma tenda no Piedense, cujas segunda e terceira letras troco sempre sem querer quando rarissimamente lá passo e que só ficará na História da criminologia portuguesa por ser onde estavam instalados os pais e a própria Ana Cristina, único e dos mais tristes homicídios de que há registo, cometido pelo gang do multibanco.
É muito cansativa.
Mas mora ali um coração grande e bom, o que deve limpar toda a porcaria que me mete pelos ouvidos adentro. O pai dos filhos, com quem mora desde os dezasseis anos, tem uma pequena reserva onde instala animais que vai apanhando feridos ou abandonados. Tem lá, neste momento, dois casais de patos-bravos e uma galinha. Tirou a guia aos patos para que eles não voassem, e os dois casais lá se reproduziram, não sei se o mesmo pato com as duas patas ou se duas para dois, esqueço-me sempre de perguntar esses pormenores. Também porque receio que ela me conte a história da fractura da mãe, que nunca sei se foi de um braço ou de um pé porque entro em off quando ela começa a desbobinar.
A verdade é que as duas patas ficaram chocas, dez ovos cada uma. Os primeiros dez nasceram algumas semanas antes dos seguintes, eu vi o filme e comovi-me porque também sou parva e o milagre da vida agrava-me essa característica. Entretanto, morreram três, pois a tal vida também consegue ser estúpida e ai a selecção natural e ai a lei do mais forte e porras.
A segunda pata cansou-se de chocar ovos, é capaz de ser muito jovem e ou tola, deixou três ao abandono e foi à vida dela cuidar dos séptuplos. A galinha ficou choca, não tinha galo, não vai de modas: chocou os três ovos e nasceram-lhe três patinhos.
Diz que parir é dor, criar é amor, pelo que a galinha e os patinhos convenceram-se de que eram mãe e filhos. Só que a pata parideira e abandónica reconheceu aqueles três como sendo seus. Ao início, bicava a galinha como se a desgraçada fosse uma raptora ou uma subtractora de menores.
Não sei como é que se entenderam. Sei só que, actualmente, andam as duas patas e a galinha a rodear os patinhos em todo o espaço, e ai do gato ou de outro animal qualquer que tente atacar os pequenos. Terá primeiro que lutar com as três mães até à morte.
Eles comem cascas de frutas e legumes. Dou comigo a descascar kiwis, deixando a casca cada vez mais grossa. A taça da alface fica a pouco mais de meio, para poder juntar tudo e, no dia seguinte, os patos terem refeição.
Eu também falo muito.