Aqui estou, desta vez de acompanhante ao exame, que leva sedação e obriga à presença de adulto, não vá o examinando sair tonto e incapaz de pagar e chegar a casa. Já em tempos o fiz, dormi justamente até um sapo me acordar, anunciando-me que teria de me tirar uma parte do intestino. Depois não foi preciso, mas entrou no campo do desagradável.
São horas de espera, já esgotei os jogos do telemóvel, os sudokus desta vida, já me fartei de ir buscar água ao dispensador, já alarguei as calças na cintura, que estava quase serrada ao meio, já só me falta dormir, que é o que mais me apetece agora e tantas vezes.
Surge uma mulher de quase oitenta, rica de carnes e com aquela boa disposição que eu tão bem conheço — quando um exame corre bem, quando dias de angústia dão a vez ao alívio —, mas que me soa falso, “Vou pôr toda a gente alegre!”, e depois, para aquela que vim a perceber ser a irmã, “Não foi preciso biópsia”. Ninguém ficou alegre, eu solidária, devo ser egoísta, mas por que raios devo exultar com o facto de a mulher não ter precisado de biópsia? Seguem-se vinte minutos de tagarelanço alto e bom som, que domina a sala e a mim me traz o pensamento invasivo de lhe gritar: “Cale-se, porra! Mais valia que lhe tivessem feito a biópsia, era capaz de estar menos eufórica”. Mas sou uma pessoa crescida, fico a remoer o beca-beca, a pensar, “Não há mal que sempre dure”. Fala de pólipos, de manchas, de massas, de caroços, até que diz:
- É que a palavra ‘cancro’ é uma palavra tão grande.
É verdade, sim senhora. Enche a boca de fel, o peito de ar sujo, as mãos de suor, os nervos de farrapos e as noites de pavor. Mas também há momentos dessa alegria, que nos tiram daquele vulcão fundo lá na Indonésia, onde caímos sem saber como nem porquê.