29/04/2023

Podia ter corrido bem

Andava há três anos a treinar para uma microscópica maratona — míseros e miseráveis dez mil metros —, quanto mais não seja no plano mental, porque ao nível físico não treinei, sobretudo nos últimos meses. Mas, entretanto, covid, corrida sucessivamente adiada, o que até me deu jeito, pois houve por ali uns meses em que não passaria de claque do meu grupo, uma daquelas pessoas que não arredam pé da meta, que é também o ponto de partida.

Corrida à noite, entendi por bem alambazar-me ao lanche panqueca mais gelado, ao jantar dois bolos e ala para a partida. Ia apreensiva porque uma das minhas companheiras de luta resolveu que ia acompanhar-me durante toda a corrida e havíamos de atravessar a meta de mãos dadas, quais irmãos Castro, apesar de ela ter menos vinte e tal anos do que eu. Primogénita e cônjuge saíram disparados, nunca mais os vimos, e nós lá demos corda aos ténis dentro das nossas possibilidades, a ver se chegávamos à meta ainda vivas. Ela só tem um pulmão, eu tenho variadas mazelas de que me queixar, portanto estávamos boas uma para a outra. Estávamos. Se ela se calasse. Se ela não me ordenasse que fosse mais devagar quando eu estava com o fogo no rabo e que acelerasse quando eu já mastigava brônquios e pulmões (eu tenho dois). Queria ouvir música, que me ajuda a espantar o esforço e ela teca-teca. Quando lhe respondia, mandava-me calar para não me cansar. Uma verdadeira prova de nervos. E eu tenho um feitio de m. cada vez mais apurado, tanto que ao quilómetro sete lhe disse que fosse andando que eu já ia lá ter e meti os auriculares. Abrandei um nicochinho, quase a pular por me ter livrado da coach que não pedi, e deu-se o moche à Linda: umas seis pessoas agarraram-me, com a desculpa esfarrapada de que eu não estava bem e não podia continuar a corrida. Segundo eles, eu ia aos ziguezagues (hão-de ter pensado que eu abusara no tinto e ia com a cadela). Boa estratégia para eliminar adversários. Depois foi tudo muito rápido: eu praticamente em lutas físicas para me livrar dos socorristas, duas motas com bombeiros a chegarem, um carro da Polícia onde me enfiaram à força, senti-me mesmo uma irreverente. O polícia era giro que dói, uns holofotes azuis a fazer pandan com a sirene, eu feita coquetezinha: “Se calhar, agora tenho que pôr o cinto, não vá vir um polícia para nos multar”, ele a rir, missão cumprida. Carregou comigo para a tenda da protecção civil, onde me deitaram numa maca daquelas de guerra e eu contei a história da minha vida, saltando os pormenores sórdidos, enquanto me picavam o dedo, me mediam a tensão (nos píncaros!) e me davam miminhos. 

Passada talvez meia hora, deixaram-me sair, acompanhada da tropa que tinha ido comigo e ficaram dois bombeiros à porta da tenda, a acenar adeus. Presos nos meus braços, ficaram dois abraços que não dei por pudor, sobretudo ao bombeiro gordinho, que eu adoro abraços gordos, cheios de chicha, mas pode ser que haja uma próxima. Para o ano volto lá e, mesmo que consiga fazer os dez, vou à tenda abraçar os meus heróis.


24/04/2023

Fim da linha

Fui ali para tomar uma injecção demorada, ironia desta doença, os tratamentos destroem partes do corpo, a mim calharam-me os ossos e sei lá o que mais. Pedi o lanchinho do costume, se há coisa boa que eu levo disto tudo são os lanches dos hospitais.

À minha frente estavam eles, ambos aí pelos trinta, ela deitada, cabelo ondulado pela almofada afora, mas uma fita a cobrir a raiz, nada de pestanas, nada de sobrancelhas, e a cor, aquela cor que só as velas das igrejas têm, as velas dos velórios. Ouvi dizer que ia ficar internada, fim da linha, isso não ouvi. O olhar dele mergulhava no dela, sorrindo muito, o dela distante posto no dele, “adeus”, e o dele “não”, as mãos tocando-se, entrelaçando-se como bailarinos numa dança eterna, nem um aperto, nem um desespero, “adeus, é hoje que vou”, “não vais, eu não deixo”, o sorriso dele e a expressão inexpressiva dela.

Saí dali doente e cheia de saúde.


06/04/2023

Agora só nos falta uma praga de gafanhotos

Nos últimos dois anos, a minha vida tornou-se num rosário de amarguras com muitas continhas: covid com direito a duas semanas de internamento, inundação que basicamente destruiu a minha casa, e cancro. Resolvidos o primeiro e talvez o último, começou a obra de restauro do lar, a terminar nunca, não fora termos dado um ultimato à equipa, “Amanhã [hoje] mudamos, esteja isto como estiver”. Não sei se lançaram foguetes, se assaram para ali sardinhas, se cuspiram fogo sei lá de que parte do corpo, a verdade é que nos incendiaram a varanda, pelo que, em vez de ir “estrear” uma casa a cheirar a tintas e a móveis novos, vamos para uma que só me lembra uma chouriçada assada, e há-de ser o pitéu que me adentrará as narinas nas próximas noites. Dizem eles que caiu uma beata lá de cima e pegou fogo a uns cartões e a umas madeiras que ali estavam. Bem se vê que nunca estudaram Física e desconhecem que um objecto feito de papel e esponja, com um peso que não deve chegar a três gramas, não faz um trajecto descendente de vários metros e depois, sem mais nem menos, num dia sem vento, curva para dentro. Azar deles, que nenhum vizinho de cima dos meus fuma, ao contrário do pintor, que mais vezes vi com a pipa nos dedos do que com o pincel.