19/01/2022

Um dia virá a aceitação

Pode ser raiva, sim. Contra coisa nenhuma, muito menos contra alguém, não tenho o desejo de trocar com outra pessoa que eu considere mais “merecedora”, tudo aquilo por que estou a passar, já nem é um “por que não eu?”, nunca foi um “porquê eu?”, é todo um “porquê nós?” em tantos momentos como aquele.

Éramos só três a fazer tratamento naquele dia, todas mulheres, duas senhoras de idade e eu. Fui relativamente espampanante, vestido bonito, botas com salto, já bem nos bastam as tristezas. As duas que ali coincidiram comigo, calças neutras, confortáveis e macias, sapatos ortopédicos, blusinhas sem viço nem vida. 

A auxiliar perguntou a cada uma o que queria para o lanche, à senhora que estava ao meu lado ouvi dizer “Uma bolachinha”, a rapariga respondeu que trazia um pacotinho de bolachas, “Mas eu só quero uma bolachinha”, só que os pacotes trazem quatro ou cinco, “Eu trago à senhora o pacotinho e a senhora come só o que tiver vontade”. Eu pedi um croissant com queijo e manteiga e um galão com descafeinado, mania que nasceu para princesa.

O lanche demorou tanto para lá do normal, que o meu tratamento acabou e ainda esperei uns minutos, primeiro inquirindo, depois protestando, finalmente levantando-me, malinha ao ombro, vestido e minha Natércia esvoaçantes pela sala, “Hoje não lancho aqui. Imaginem o que seria, quando os meus filhos eram pequenos, na época em que tinha dois no jardim de infância e duas na primária, se eu levasse este tempo todo a preparar quatro lanches. As crianças lanchavam à hora de jantar. Repare que somos só três e a senhora que está ao meu lado pediu uma bolachinha. Quanto tempo leva a preparar uma bolachinha?”. As duas serenas, desistidas, nem um ai, a bruta a fazer um pandemónio por um croissant, a raiva a subir, tanta injustiça, senhores, eram duas velhinhas, que só por esse motivo arrastavam os pés a andar, por que é que o dedo aleatório pousou nelas, se já não lhes chegava o resto?

Porquê nós? Não é “por que não outros?”, é “porquê nós?”. Porquê elas? Ou só: porquê?