Diz que passamos por algumas fases nos acontecimentos dramáticos da vida, que primeiro vem a negação, depois de umas quantas a raiva, olhem, modestamente acrescento a surpresa como podendo ser a primeira, mas saltei todas como num jogo da macaca e fui directa à da aceitação. Havia um instinto que me dizia “Vai ver”, e não era um caroço, não era uma mancha, nada, a não ser “Vai”, um covid demasiado prolongado, excessivas “interdecorrências” em duas semanas de hospital, “Vai ver, começa por algum lado, vê as mamas”, bingo. Não entrei em negação, sou demasiado mole e conformada para considerar a clássica “Porquê eu?”, quando “Por que não eu?” me responde muito mais vezes à pergunta “Que mal fiz eu a alguém/ Deus?”, sei lá, fiz mal, com certeza, ou então isto é tudo uma lotaria ao contrário, saiu-me a sorte pequena, ou pode ser a paga por tantas vezes ter dado à luz o número premiado. São matemáticas e tentativas de lógicas que não vou fazer, servem apenas para encher verbo aqui e na minha cabeça praticamente oca, que, no momento, apenas quer ocupar-se com Natércia, a cabeleira, nanoblanding de sobrancelhas, vernizes compatíveis com tratamentos de quimioterapia. E ainda temos por resolver o problema das pestanas, que passará certamente por muita cola, muitos nervos, muitas lágrimas, mas todas de frustração e intolerância dérmica.
Diz-me uma companheira de danças que passa pelo mesmo processo, embora mais adiantada nos tratamentos, que só devo fazer aquilo que o corpo me pede. O corpo, do qual me parece que a cabeça faz parte, pede-me que vá correr. (Por favor, por-fa-vor, ninguém mais me sugira caminhadas. Por piedade.) Ou que vá dançar. Porém, no momento em que até, o mesmo corpo pede-me encosto e molenguice. E faço a vontade ao caprichoso.
Estou só a começar a intolerar os que alardeiam que têm saúde para dar e vender. Não querendo ser, mas já sendo um velho do Restelo, tenho a declarar ao Mundo que as minhas análises clínicas, um mês antes do diagnóstico, eram as de um atleta (com mais de cinquenta anos, mas, ainda assim). “Marcadores tumorais: negativo”. E que corri dez quilómetros três dias antes de sair o resultado da biópsia. Pelos cálculos de quem sabe dessas coisas, já eu passeava — e corria e dançava com — um cancro junto ao coração há seis meses. Também tinha saúde para dar e vender. Como não me lembro de a ter vendido a alguém (a conta bancária não mente como as análises), devo tê-la dado, sei lá se a quem nem sequer a merecia, e agora se arroga dela.