11/01/2022

A nossa Natércia

Tenho uma comadre que só não é minha irmã porque não nasceu de obra de nenhum dos meus pais. Todos os dias, sem excepção, liga ou manda mensagens, a saber de mim. (Em contrapartida, tenho uma outra que me manda mensagem à segunda-feira a desejar boa semana.)

A minha comadre Madalena — que não podia ter um nome e um coração mais bonitos — baptizou a minha cabeleira (cansei de chamar peruca ao meu novo cabelo) de Natércia. Disse-me: “Arranjámos uma amiga para a vida: a nossa peruca!”. Assim, tal e qual. Eu uso, mas ela é nossa, faz parte deste caminho de pedras pontiagudas que percorremos descalças, de mãos dadas. Não vamos sozinhas, pois está connosco uma pequena multidão disposta a trilhar o túnel comigo, sem permitir que eu caia de todas as vezes que tropeçarei.

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Nossa Natércia é da melhor qualidade: bati o pé por uma de cabelo natural, pois o nome diz tudo. Faz-me confusão ver as pessoas com cabelo de boneca e temi que me voltasse em forças a vocação para cabeleireira que tive entre os quatro e os sete anos, em que não houve boneca nenhuma — e tive dezenas, filhas de médico são cruel e profusamente brindadas no Natal e em datas aleatórias — que não ficasse escalpada até à “raiz”/implante, julgo que por estar convencida de que aquilo crescia. Mais tarde, apurei a técnica (ou talvez tenha levado três anos a perceber que “aquilo não crescia”), passei a usar rolos ou escova de enrolar e secador, e passei também a queimar/ encolher/ trilhar o cabelo às bonecas. Em suma, a técnica estava toda lá, o material é que era fraco. Por estas e outras razões, decidi deixar um rim na loja das cabeleiras, mas trouxe o cabelo da outra, que agora é meu. “Ah, é porque podes”, dirão as inflamadas da vida. Biafine.

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Natércia passou a prova de fogo — longe vá o agoiro — numa ida ao hospital. Perguntei ao segurança da oncologia onde é que podia fazer análises clínicas e ele indicou-me um laboratório a cinquenta metros dali, também pertencente ao hospital, porém para outras especialidades. Assim fiz, e só quando a enfermeira me perguntou por que é que estava a fazer análises ali e não no laboratório próprio para oncologia, é que percebi que, para variar, havia batido pela enésima, porém não última vez nesta vida, à porta errada. Já que tinha que voltar ao edifício para ter consulta com o giro, perguntei ao segurança por que é que me tinha mandado para o outro laboratório, sendo que havia um ali mesmo ao lado. Olhos escancarados, “Oncologia?”, “Sim.”, mãos unidas em oração, “Ai, ó minha senhora, desculpe, mas é que não se percebe nada, ninguém diz!”. E eu, tão feliz, peguei numa mechinha de nossa Natércia e disse: “Isto não é meu.”, fazendo aquele gesto de vitória com o punho fechado, baixando o cotovelo, e, melhor que tudo, fazendo com que ele se risse do meu riso.

Gosto sempre mais de me ver despenteada, nem Natércia escapa