18/03/2015

Não sei se vou querer que amanhã seja dia do pai

É que eu arranjo todos os motivos para me torcer de saudades e já estou a ficar farta de mim.
Estou sempre com saudades. Pareço uma fadista, mas de má qualidade. Rouca, desafinada, de escasso reportório. Estou sempre a cantar a mesma ladainha. 
Queria só lembrar-me das coisas boas e não escrever um rosário de amarguras. 
Lembrava-me só de mim pequena, a dançar em cima dos pés dele, ao som de you are my destiny.
Lembrava-me só de mim média, a contar-lhe as minhas coisas, olhos dentro dos olhos, até ver os dele a rirem-se, até vê-lo rir-se e dizer Dizes tantos disparates, rapariga. Com tanto amor me dizia aquilo que eu até tinha orgulho em dizer disparates. 
(Rapariga. Nunca mais ninguém me tratou por rapariga. Acho que morri)
(Continuo a dizer disparates. Eu não acredito na vida depois da morte, porque o meu pai também não acreditava, mas acho que ele ouve os meus disparates e ri-se. Deve dizer assim: Continuas a dizer tantos disparates, rapariga, e depois até o vejo a rir-se, os olhos todos iluminados de amor)
Lembrava-me só de mim grande, a sentar-me no colo dele, a recordarmo-nos de como, em pequena, não conseguia, vez nenhuma, sentar-me no colo dele sem adormecer em cinco minutos e, passados cinco minutos, estar a dormir no colo dele. Mulher feita, enorme, esparramada, adormecida como uma menina pequena.
Lembrava-me só de mim maior ainda, já a viver noutra casa, a ir vê-lo todos os dias, todos, sem falhar um, a esperar que ele chegasse para poder voltar para casa descansada da tormenta das saudades, que são mesmo uma tormenta, que isto só quem passa por elas é que sabe.
Mas não consigo lembrar-me de nada dessas coisas. Prefiro perder a memória, se é para isto.
Já fiz um homem pai, que comemorou o primeiro dia do pai no mesmo ano em que eu já não comemorei com o meu.
Também já bradei aos céus ao Pai, a pedir pelo meu pai. Tinha eu sete anos e ele estava num coma do qual não saía. A mim ensinaram-me a rezar e eu rezava muito, mas tanto, tanto, que adormecia de joelhos no quarto, com a cabeça deitada na cama. Acordava de madrugada, deitava-me, e rezava mais, até o sono voltar. E ele salvou-se, tal foi o fervor e a quantidade de súplicas que fiz ao Pai, pelo meu pai. 
Lembro-me de mim, de rabo grávido, e ele a dizer O teu rabo está tão grávido, rapariga, a rir-se, a rirmo-nos os dois, todos iluminados de amor. 
Lembro-me de me chamarem, de sair a correr, cheia de vida dentro de mim, a antever a morte, outra vez a bradar aos céus ao Pai, a pedir pelo meu pai, e depois chegar e só ter tido tempo de abraçar a barriga, fim da oração, Pai Nosso, que estais no céu, não me ouviste a súplica, meu pai, meu pai, meu pai...
Lembro-me de procurá-lo, na cara de uma menina que me nasceu, na rua, nas sombras da minha casa, no meu delírio, tantas eram as saudades que tão impossível se tornou suportá-las, por isso ia à casa dos meus pais - agora casa da minha mãe -, atravessava o corredor, esgueirava-me para o quarto deles - agora só dela -, abria o armário, que sabia ainda cheio da roupa dele, e metia-me lá dentro, agarrada à roupa, agarrada a ele, a cheirá-lo, a matar aquelas saudades que eu acho que só eu é que sinto, que são as tais que até no olfacto me dão dores. 
É por estas e por outras iguais a estas que eu não sei se vou querer que amanhã seja dia do pai.
Vou andar o dia todo a engolir perolazinhas de cristal, e isso faz-me dores de garganta, e, dores por dores, já me chegam as outras dores, que são as tais que me dão no olfacto.