Trailer - Palmier Encoberto
Prólogo - Xilre
Capítulo I - Calma com o andor
Capítulo II - Dúvidas Cor de Rosa
Capítulo III - A Mais Picante
Capítulo IV - Mirone
Capítulo V - Pasme-se quem puder
Capítulo VI - A Uva Passa
Capítulo VII - Kiss and Make Up
Capítulo VIII - Amor Autista
Capítulo IX - Talqualmenteoutro
Acordou em menos de nada, de tanto não conseguir pegar no sono. Olhou à volta, percebeu o silêncio da noite no acampamento, avistou a velha a fumar cachimbo à entrada da barraca do fundo, espreitou o panelão, onde a chave ainda navegava como uma âncora, pensou levá-la, assim pensou, assim não fez, Caguei na chave, e até se riu um niquinho da própria piada, afastando-se pela noite. Meteu-se num táxi, meteu-se em casa, meteu-se a fumar. Que dia de cadela.
Prólogo - Xilre
Capítulo I - Calma com o andor
Capítulo II - Dúvidas Cor de Rosa
Capítulo III - A Mais Picante
Capítulo IV - Mirone
Capítulo V - Pasme-se quem puder
Capítulo VI - A Uva Passa
Capítulo VII - Kiss and Make Up
Capítulo VIII - Amor Autista
Capítulo IX - Talqualmenteoutro
Acordou em menos de nada, de tanto não conseguir pegar no sono. Olhou à volta, percebeu o silêncio da noite no acampamento, avistou a velha a fumar cachimbo à entrada da barraca do fundo, espreitou o panelão, onde a chave ainda navegava como uma âncora, pensou levá-la, assim pensou, assim não fez, Caguei na chave, e até se riu um niquinho da própria piada, afastando-se pela noite. Meteu-se num táxi, meteu-se em casa, meteu-se a fumar. Que dia de cadela.
Um pensativo cigarro, dizia-lhe o João, quando a via assim, de pipa na boca, a meditar na vida. Dois pensativos cigarros, três pensativos cigarros, contava-os como carneirinhos, como quando não somos capazes de dormir e, depois, às quinhentas, e pelos quinhentos, já são os cabrões dos carneiros, feitos bodes, que também não deixam.
João dormia o sono dos condenados, como sempre. Que coincidências que a vida nos prega, mais estúpidas que partidas, nem ela nem ele algum dia haviam atravessado as trevas de uma noite completa, praticando o outro sono, o dos justos, que até os injustos são capazes de cumprir. Que desperdício de dinheiro aquele, se tivesse sido gasto na cama lá para a Moviflor antes da falência, não fora ter sido oferecida de uma tia por afinidade sabe-se lá de quem, morrida de caruncho em cima daquelas mesmas tábuas.
Era assim, o seu João Carlos, na verdade só Carlos, na verdade Carlos Eduardo, nomes desde sempre trocados pelas brigas da bêbada da mãe com o doente mental do pai, Há-des pôr João ao catraio - Há-des pôr Eduardo - Raio da bêbada, com a mania das grandezas, Eduardo Sétimo, não? - Eduardo, o meu pai - Olha, porra, outro bêbado.
Meu João, meu Carlos, ainda o via pequenino - ai, era tão magrinho -, a caminho da escola, todo míope, todo trôpego. Chelas, naquele tempo, era a doer, ninguém lá entrava, a não ser quem já lá estava quando Chelas nasceu, erguida do chão, roxa e amarela, verde e azul, com doze andares, como aquele nono onde moram agora os dois. Gritavam-lhe nomes de comida pelo caminho, banana, salsicha, febras, atiravam-lhe pedrinhas fininhas, da brita, que lhe acertavam de raspão na nuca e nos ouvidos, mas em cheio na alma. Transformava-as ele em gotas de água, viu ela vezes a mais, e foi por isso que o adoptou. A mãe tinha-o a ele e mais uma irmã, toda bêbada também, quem sai aos seus, e muito drogada, que andava na vida, nunca tinha tido vagar para mais um, daquele molho de dois filhos que tanto pouco trabalho lhe davam.
Queres caldo verde, Carlos?
Havia sempre caldo verde lá em casa, a mãe juntava-lhe muito chouriço, que ela dava a comer àquele pássaro franzino, mas não conseguia engordar nem à força de promessas e preces que não sabia rezar.
Maria, assim lhe chamava Carlos, Maria Eduarda, assim registada aos dois anos de idade, levava-o pela mão até à escola, deixava-o no primeiro ano onde pertencia por justo direito, e seguia para a sala do último, onde ela própria não pertencia há um ano. Chumbara. Apenas uma vez, mas prontos. Capaz de ser a primeira de algumas.
Ele, não. Fez a escola toda de enfiada, parecia um rosariozinho a somar pérolas, que orgulho no seu menino, óculos nos olhos quase azuis desde sempre, desde sempre interessado, desde sempre de livro escondido dos predadores do bairro e do vinho da mãe, desde sempre a dizer-lhe aquelas coisas bonitas que ela mal entendia, como a do pensativo cigarro. Tão engraçado, agora um cigarro ter miolos.
Passou a ir ela às reuniões da escola, encarregada de educação daquele menino, que era só mais um de quatro irmãos que ela tinha, que diferença mais um, antes mais um que menos um, Maria Eduarda, mãe do mundo antes de ser mãe. Ouvia a professora, extasiada, O que aqui temos é um diamante debaixo das rochas, que tola, também devia ter alguma doença mental, como o pai do seu Carlos. Louco, raivoso, nunca a suportara, por lhe ter catrapiscado a mãe há uns anos e ela nunca lhe ter metido a trela que ele tanto queria usar. Dizia ela. Ainda bem que não havia cedido, só se estragou uma casa.
Aquele bruto obrigou, depois, o seu Carlos a ir trabalhar para o bate-chapas do compadre, por um triz não o fazendo perder a cabeça de poeta no meio dos pneus e das jantes, e foi nessa altura que ela o levou a passear num dos carros da oficina, agora fechada por falida, como a Moviflor. Já ninguém desamolga carros, vai tudo para a sucata, como nós um dia. Tinha ele quinze anos e ela vinte, ele virgem e ela quase, se não contarmos com aqueles outros tantos, derivado de ser mais velha e não aguentar as cabras das hormonas, mas também do desassossego que tanta mama e tanta coxa, tudo junto em tão poucos centímetros quadrados, despoletavam lá no bairro. Conduzia mal para caraças, mas o carro, um Peugeot 205 azul, de 1983, também não queria colaborar para mais do que fazer de quarto com quatro paredes e um sol a pino a entrar pelo vidro de trás. Foi ali, encostado ao muro do cemitério, mesmo ao pé da Rua das Flores, que o atracou, qual barco que logo se fez ao alto mar e, inábil mas experiente, conduziu Carlos Eduardo ao bom porto, que era o seu. Menino, exausto, adormeceu-lhe no regaço, cheirando-lhe à bata da mãe, que nunca cheirara ao perto, caldo verde que ela nunca havia feito, e ao perfume Si fraiche que Maria pusera em todos os generosos refegos do seu corpo. Que amor tão trágico, o nosso, diria, mais tarde, o seu Carlos Eduardo, todo tão diferente. Que é que tem celebrar a vida assim, colados à morte, se até há pessoas que morrem de morte contente? Ao Peugeot da memória dos dois, passou Carlos a chamar "a ilha dos amores", da mesma forma única que dava nomes diferentes às coisas todas.
Está nestes pensativos cigarros quando lhe surge o amor pela sala, aquela mesma sala da confusão da chave - Vou-te dar um quarto e sala, Maria, vamos para um nono andar do prédio azul - os caracóis no ar,
Tu não dormes?
E tu, dormes? - passa-lhe a mão no cabelo, sente-o sujo, puxa-lhe a cabeça para o regaço e ele volta a sentir o cheiro da bata da mãe, que nunca cheirou, caldo verde do dela, que nunca provou - Queres caldo verde?
Agora não.
Olha, diz a Jéssica que a gente, para ser alguém na vida, tem que ter uma ranchada de putos, plantar umas ervas e escrever num blog. O que é que tu achas?
Acho que tu devias abrir um blog. Quanto ao rancho, tratamos disso juntos, na ilha dos amores - assim chamava ele à cama herdada da velha carunchosa, in memoriam ao velho Peugeot. Metáfora de metáfora, distinguiria ela, caso soubesse alguma coisa de figuras de estilo.
Liga o PC deitado fora pelo centro social, pousa as unhas de gel no teclado, põe a setinha na barra "criar blog" e põe-se a pensar num título para ele. Não tem assunto nenhum, não percebe patavina de arte, poesia, livros com letras, política, moda, casamentos, filhos...
Filhos. Amor. Carlos. É isso.
"Introduza a palavra chave".
Chave - digitou Maria Eduarda, no campo do título do blog.
* título inspirado n' Os Lusíadas.
Cara Linda,
ResponderEliminarA sua tríade da felicidade pessoal é divina. Gostei muito.
Boa noite,
Outro Ente.
Caro Outro Ente,
EliminarQuanto mais romanceamos, mais nos "denunciamos", como sabe. Muito obrigada pelas suas palavras.
Bom domingo.
Linda Porca.
Quando começaram com esta brincadeira, eu pensei cá para os meus botões "a LP faria um brilharete, tem que participar". E cá estás tu, a fazer o teu brilharete :)
ResponderEliminarOs meus dramalhões :)
EliminarEstou cada vez menos cómica...
Obrigada, Pandy
Aí Jasus, que ainda não tenho os olhos abertos nem há uma hora. Volto mai' logo para ler o testamento. xD
ResponderEliminarJá leste "Os Maias"?
EliminarIsso sim, é que é grandeza :P
Pois eu cá sabia ao que vinha.
ResponderEliminarAinda bem Linda.
Mais vale, de longe, o arrependimento daquilo que não fazemos.
Fizeste isto muito bem. Um dia convido-te para escreveres um livro.
Obrigada, Uvinha. Correste um grande risco, que eu sou aquele nunca se sabe.
EliminarQuanto ao livro, olha, prefiro pensar em ti na banca da Feira de Maio, a dares autógrafos, e eu, de cuecas amarelas, na fila :)
Esta obra prima tem que ser 'transportada' para o cinema.
ResponderEliminarAo cuidado, então, de Manoel de Oliveira, na impossibilidade de Steven Spielberg ;-)
Clint Eastwood, que realizou e protagonizou "As pontes de Madison County". Menos que isso, não me serve.
Eliminar:)
Mas que bela prosa, LP: não apenas pelo entrelaçado das histórias, mas também pelas reflexões aforísticas que se acham, como pepitas, pelo meio (praticando o outro sono, o dos justos, que até os injustos são capazes de cumprir). Como uma visão queirosiana transportada, centritpetamente, do centro para a periferia, sem que dela se perca, de facto, o centro.
ResponderEliminarBom domingo. :)
Xilre, tu, como sempre, sabes ler-me. Percebeste tudinho. O mérito é todo teu. Não há bela prosa sem belos olhos.
EliminarObrigada.
Bom domingo :)
eu venho só cumprimentar com uma vénia! bom domingo!
ResponderEliminarObrigada, Mia! Bom domingo também :)
EliminarCabruuuum!!! ;) isto vai tão bom caraças... :)
ResponderEliminarBuuuuumba! Bom-bom, é eu ter aqui a NM a comentar, cristinho!
EliminarAinda vamos mas é todas para a Feira do Livro, assinar autógrafos, feitas leides e djentlemans dos escritos a muitas mãos :)
Ahahahahahahahah estou mesmo a ver... Todos em filinha a autografar os livros... A armar zaragata porque fulaninho ocupou muito espaço da folha e sicraninho usa uma caneta que borrata tudo... :D
EliminarA filinha dos autores, em frente da filinha dos fãs (muitíssimo maior, claro - ai que barraca, se essa fosse mais pequena :D), e nós já todos a passar rasteiras uns aos outros, e a empurrarmo-nos, para sermos os primeiros a assinar, numa demonstração de grande falta de educação :D
Eliminar(Ai que delícia, será que conseguimos mandar isso para o prelo, já para a próxima Feira? :D)
Que lindo, adorei, transportou-me a Eça não só nas referências mas na escrita. Muito bom!
ResponderEliminarObrigada! Isso é um elogio muito sério, muito bom :)
EliminarMais um belo episódio. Boa Linda P! Gostei :)
ResponderEliminarObrigada, Gaja Maria! É sempre bom ler palavras dessas :)
EliminarJá tinha comentado na Uva, que grande texto, Porca.
ResponderEliminarEu vi, Mirone, vocês estragam-me :)
EliminarObrigada!