Não sou sempre boazinha, e tenho dias assim, hostis. A noite cai de repente, e isso é tão agressivo, que me rebobina o dia, desbobinando-o, tão azul, tão pouco azul.
Hoje tive, desde todo o sempre, sono. Tomei mais cafés do que é costume, mas ele não me largou, amarrando-me. Devia ter adormecido de manhã, era o que era.
Fraquejo, por não me apetecer estar onde estou.
Três mulheres - a mulher, a filha e a neta - de um homem, fazem visita. A filha nunca mais se cala. Fala ininterruptamente durante duas horas, acerca de nada e também de coisa nenhuma. É incrível a capacidade que algumas pessoas têm de expelir tantos outputs, directa e inevitavelmente, para uma fossa. Dou por mim a falar alto, Será possível que a mulher nunca se cale? Ninguém me ouve, porque estou a ficar transparente, e, provavelmente, também muda. O homem está morto, mas tem os olhos abertos. As outras duas estão vivas, mas devem ter os olhos tapados.
Ao fundo, duas senhoras não fazem qualquer intenção de disfarçar que falam de mim. São as mesmas duas a quem ouvi uma vez comentarem a altura do meu vestido. Nesse dia achei graça. Hoje a graça que dou é pela minha transparência. Não sou neta delas, não tenho que respeitar a opinião delas quanto ao tamanho das minhas saias nem quanto ao tamanho do meu enfado, que elas não conhecem.
Mas vim de calças, agora venho sempre de calças. Há um senhor, de cadeira de rodas, que monta guarda ao meu lado, esteja eu onde estiver ali dentro. Não lhe sou nada, não vou ser-lhe nada, queria que me deixasse em paz com o seu olhar fixo e as rodas da cadeira, sempre à minha volta. Só falta fazer círculos. E pedir-me em casamento.
Mais ao fundo, há um outro que faz da mão pala - a sala está cheia de sol - e fica a observar-me à distância. Apetece-me fazer-lhe uma careta e perguntar-lhe se nunca viu.
Estou farta de ser tão opaca e de dar os meus sorrisos a toda a gente. Hoje queria ser só humana e fraca e também transparente. Não quero receber sorrisos de volta. Tenho tanto sono que me encosto à minha mãe. Preciso de mimo e quase me deito no braço do maple.
Ela sente o meu calor e adormece, criança.
Eu continuo acordada e nunca deixo de ser mulher.
Como percebo este texto. Principalmente, aqui: "Estou farta de ser tão opaca e de dar os meus sorrisos a toda a gente. Hoje queria ser só humana e fraca e também transparente. Não quero receber sorrisos de volta." Isto tenho sido eu, quase todos os dias, desde há um ano para cá.
ResponderEliminarJá nem é aquela transparência translúcida que me faz falta, que essa até tenho demais. É a invisibilidade, mesmo. Dou colo a tanta gente e nunca sobra um para mim.
EliminarNão permitas.
Olá,
ResponderEliminarNão costumo comentar, mas o que escreveste tocou-me. Durante muito tempo fui assim, de há um tempo para cá mudei, cansei-me de sorrir para toda a gente, de ser prestável, de estar sempre disponível para ajudar, para resolver problemas e muitas vezes receber de volta "grunhos", eu só gostaria que os outros me tratassem, me respeitassem como eu os tratava, mas infelizmente as pessoas, o mundo não são assim, então temos que nos defender . Agora adoptei a minha máxima "dá aos outros aquilo que te dão a ti" tento segui-la, não me distrair. Não é uma frase "bonita", mas cansei.
Até breve.
Carla A.
Olá, Carla,
EliminarObrigada pelo teu comentário.
Eu tenho fases, e gosto, verdadeiramente, de ajudar toda a gente, e também estou sempre à disposição. Sou eu que me ponho em campo para que as outras pessoas peçam. Sou eu que tomo a iniciativa do sorriso, para que as pessoas mo devolvam. Mas há dias, e circunstâncias, como aquela de ontem, em que queria mesmo ser transparente, ou fugir a sete pés.
No fundo, aquilo de que me queixo, sou eu que promovo. As pessoas como eu deviam perceber, de uma vez por todas, que o retorno nunca é equivalente ao que oferecem, porque a necessidade de oferecer nunca equivale à necessidade dos outros de darem de volta.
Um beijinho.
LP
Nota-se que tens bom íntimo. Só assim se compreende o texto.
ResponderEliminarMas falho, por ser uma pessoa igual às outras.
EliminarNão há seres humanos perfeitos.
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