26/03/2015

Diálogos à sombra # 5

a-DIU

Vamos pelo vendaval, lanchar, os dois. Os catorze anos dele não lhe permitem aproximações físicas nem manifestações afectivas públicas, quando em casa são tão frequentes os abraços e os beijos. Lembro-me (também porque o escrevi, mas não só por isso) de um diálogo que tivemos há seis anos, numa altura em que ele quis comprar uma bateria. Tínhamos visto, nesse dia, uma, à venda, que custava 600 euros, preço reduzido dos 900 iniciais.

- Mãe, quero-te dizer uma coisa.
- Diz lá, filho.
- Eu vou juntar dinheiro para comprar uma bateria.
- Para tocares onde?
- Cá em casa.
- Nem penses. Só se eu estivesse doida. Ou melhor, mesmo não estando, fico logo. Entra a bateria e saio eu.
- Isso não, mãe. Eu não consigo viver sem ti.
- E há os vizinhos. No fundo, os vizinhos são os grandes culpados por tu não teres a tua bateria.
- Vamos morar para outra casa.
- Boa. Uma vivenda com jardim.
- Não, uma casa de madeira, em cima de uma árvore, ali no meio da nossa rua.
- Então, e tu tocas bateria, e eu, o que é que faço?
- Tu lavas roupa.
- Boa ideia. Começa mas é a juntar o dinheiro para a tua bateria.
- Mãe, tu és tão linda e querida que, se eu fosse mais velho, casava-me contigo.
[pausa do abraço]
- Este é o nosso momento "Tragédia da rua das Flores" [eu já dizia coisas esquisitas, há seis anos].
- Não digas nada ao pai.

Agora caminhamos lado a lado, escondo as mãos nos bolsos que não tenho, para não cair em tentação de lhe dar a mão, a atravessar a rua. Faço pior: dou-lhe o braço e encosto-me toda a ele.

- Vamos fingir que somos namorados.
- Não, eu sou muito mais novo do que tu.
- Preconceituoso.

Está vento a mais para a esplanada, enchemos duas caixas de bolos e voltamos para casa. Sentados à mesa, leite para ele, limonada para mim, lanchamos sozinhos, tão acompanhados, e voltamos ao nosso primeiro encontro, há quinze anos atrás. Ele conhece os pormenores do DIU, da falha do DIU, da retirada do DIU com ele cá dentro. Ri-se, mais uma vez, da partida que acha que pregou ao destino, pela enormíssima improbabilidade de que resultou a sua concepção, monta uma história em que ele, sob a forma de espermatozóide, super-herói, ultrapassa todas as barreiras que se lhe apresentam, enfrenta o grande monstro DIU, e termina:

- E depois, disse assim ao DIU: a-DIU...


17 comentários:

  1. sabes aqueles smileys com os olhinhos fechados?! tipo fofinhos!

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    1. Sei, pois :)
      Põem-nos com essa cara, a toda a hora!

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  2. Love! Que amor tão bonito.
    Mas agora fiquei de coração apertado, não consigo imaginar o dia em que terei de sair à rua com macaquito sem lhe dar a mão.

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    1. Há um dia, que chega devagar, não é assim, de repente: começamos a sentir a hesitação da mãozinha, que já coube tão bem na nossa, e que a procurava logo à saída, apercebemo-nos da perda de força naquele dar de mãos, damo-nos conta da vontade da ex-mãozinha em soltar-se da nossa que, naturalmente, lhe faz a vontade :)

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    2. E depois há aqueles que não estão cá com meias medidas, nem rodeios, nem falinhas mansas, que isto é pão pão, queijo queijo : " oh mãe podes ir andando? não fiques aqui a olhar para mim, ok? não preciso de beijos, está bem?" e com alguma sorte ainda nos dizem "a-DIU", assim de esguelha... ;)

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    3. Os mesmos patifinhos que nos ocuparam aquele espaço todo cá dentro, e, depois de saírem, ainda ocuparam um espaço maior? :)
      Ingratos queridos.

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    4. Acho que vou buscar macaquito à casa dos avós e ficar com ele apertado num abraço até me apetecer. Que más! ;)

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    5. :) Vai, aproveita-o! Mas ouve, nunca o perdes. Simplesmente, ajustas-te ao crescimento dele, crescendo com ele ;)

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  3. Anónimo26/3/15

    É preciso interiorizar que tudo tem o seu tempo.
    Do I make myself clear?

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    1. Sem dúvida.
      Eu não guardo mágoas inúteis. Cresço com eles.

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  4. Anónimo26/3/15

    DIU? Será um dos elementos da tríade Goa, Damão e Diu? :-)

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    1. Não, trata-se de um acrónimo (vai lá googlar).
      Diu, aquele território, até se lê como se estivesse escrito díu.
      (não digas que vais da minha parte, que eu sou aquele poço. Mas já levaste 2 sabonetinhos grátis só numa resposta a um comentário :))

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    2. Anónimo27/3/15

      Um acrónimo? Mas isso não estava em vias de extinção?
      Ó pá, o território não se lê DIÚ mas sim DIU. Não precisa de acento para nada.
      Sabonetinhos? Mau, ando a ser enganado a toda a hora. E não havia necessidade ;-)

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    3. Ó pá, tu leste o que eu escrevi?
      Eu escrevi assim: até se lê como se estivesse escrito díu. Lê-se assim, não significa que tenha acento.

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    4. Anónimo27/3/15

      Understood :-)

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  5. Anónimo26/3/15

    ainda bem que aconteceu. valeu a pena.
    Beijinho

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    1. Tal e qual :)
      Eu digo-lhe sempre: "Não planeado, muito desejado".
      Beijinho, Mia.

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