04/11/2015

Talidomida

Hoje vi-me com o peso do mundo sobre os ombros, mas não foi nada de metafórico, foi mesmo literal, porque carregava um saco com quinze quilos num ombro e outro com oito no outro, e eram vinte e três quilos de sacos, para mais de um terço do meu peso total. É que, se o mundo — o tal que me pesava nos ombros naquele momento —, fosse dividido entre magros e gordos, uns para um lado e os outros para o outro, eu ia para o lado dos magros. Sou magra, tão magra. Naquele momento, eu era a pessoa mais magra do mundo, imagine-se que até tive que subir umas escadas, uns quinze degraus de calçada portuguesa, sem patamar de segurança. Se caísse, eram quinze, quinze pancadas até ao chão, quinze piruetas sem rede, havia de custar um bocado. Ao alto das escadas estava um homem a sorrir e acho que não tinha braços, porque não lhos vi estendidos, depois desci as escadas com os sacos a pesar ainda mais, apesar de todos os pesares, pus um saco no chão, desci com o outro, e então vi um homem sentado no alto das escadas, a descansar de ter estado a aparar relva, mas acho que também não tinha braços, porque não mos estendeu. E um outro, à porta de uma loja, também sorria de me ver passar albardada, mais um que não devia ter braços, não sei, pois não reparei, de pesados que levava os meus. Cruzei a porta onde moro, saiu de lá um homem sem braços, que me desejou bom dia e, coitado, comentou que carregada vai. Felizmente que eu não tinha caído pelas escadas abaixo (teria dado quinze pancadas), mas, ao menos, fiquei a saber por que é que há tantas mulheres que caem — será que se atiram? —, tanta falta de braços, tanta falta de abraços.


16 comentários:

  1. Nada se compara à forças de uns (a)braços!

    Deixo-te os meus. :)

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    1. Nada mesmo, sobretudo quando se carrega uma cruz.

      Obrigada, querida :)

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  2. Olá LB !
    Coitada ... eu pedia uma mãozinha à vizinha do 1º C !
    A talidomida foi um medicamento horrível.
    Há duas pessoas com sequelas aqui no Estoril.
    Horrível !

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    1. Coitados deles.
      Essa não me serve para nada, a não ser para me dar tema para posts.
      Foi. E atravessou uma geração inteira.

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  3. Anónimo5/11/15

    Bom dia Linda.
    O título que escolheste, transportou-me à imagem de duas pessoas que vivem aqui, no meu sítio, cujos braços não chegam para abraços, e tudo isso, por causa da Talidomida.
    Beijinhos e um bom dia.

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    1. Foi um flagelo que afectou um ano de nascimentos inteirinho, penso que 1960, ou 60 e picos.
      Podem sempre ser abraçados, e não duvido que bom uso dariam aos braços, caso os tivessem. O problema é o de quem os tem e não os usa.
      Um dia feliz, Mia.
      Beijinhos

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  4. Anónimo5/11/15

    Tás a ver o problema que causa o feminismo exacerbado?
    Pois é!
    Todos iguais, todos iguais!
    Pediste ajuda? Não? Então porque é que alguém havia de se chegar à frente correndo o risco de ser, eventualmente, insultado?

    Eu, se passasse por ti nessa situação teria agido da mesma maneira! Já houve alturas em que, por uma questão da educação que os meus pais me deram, me predispus a ajudar e levei com uma cara que parecia que tinha feito um sacrilégio! Como se um "precisa de ajuda?" fosse o piropo mais trolha do mundo!
    Noutras alturas fui mesmo insultado!
    Serviu-me de lição! Nunca mais me cheguei à frente ou ofereci ajuda a uma senhora desconhecida (a não ser que seja uma pessoa já de uma certa idade, que aí compreendem ainda o conceito de cavalheirismo de certeza)!
    De resto, esquece!O Cavalheirismo foi barbaramente assassinado à machadada pelo feminismo exacerbado! E como tal, não gosto de ser insultado por tentar ser prestável!
    Se me pedirem ajuda, faço os possíveis! Caso contrario observo, enquanto vejo figuras como a que fizeste!
    É triste de facto, mas tendo já batido de frente contra esse poste, só o faria novamente se fosse muito estúpido!

    :)

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    1. Estou a ver, estou. Logo a mim, que sou anti-feminismo. Até te digo mais: acho que sou a última machista do planeta: não aturo gajas, salamaleques, fricotes, TPMs e outros achaques. Já me chegam os meus.
      Mas isto é uma questão de delicadeza. Não é por se tratar de uma mulher e, pelo menos, quatro homens no percurso. Na verdade, não me cruzei com mulher nenhuma, nem à subida, nem à descida, nem depois ao chegar a casa. E é bem sabido que os homens têm mais força. E eu, não sendo tão magra quanto digo na metáfora, não sou, evidentemente, gorda, nem forte, nem de aço. E ia de saltos altos (culpa minha, erro de cálculo). Eu não posso ver nenhum vizinho carregado, homem ou mulher, novo ou velho, que não lhe pegue em dois sacos. Não posso ver uma pessoa subir escadas com um carrinho de bebé, que não vá agarrar numa das pontas. Não posso ver uma criança quase a cair da cadeira da esplanada, que não vá agarrá-la, ou dizer à mãe que a segure melhor. Sou uma chata, e arrisco-me a caronas, mas prefiro as caronas ao peso na minha consciência.
      Tiveste pouca sorte com as pessoas que abordaste. Não desistas, essa não pode ser a regra. Senão, um destes dias, andamos a empurrar as pessoas carregadas pelas escadas abaixo.
      Olha, repito o que sempre disse: a delicadeza é um sentimento: ou se sente, ou não se sente.
      :)

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    2. Anónimo5/11/15

      Para mim o não desistir é estar disponível, e isso garanto que estou!
      Mas se a Srª não abrir a boca e pedir ajuda, não me chego lá! Não estou na cabeça das pessoas (nem quero estar) e olhares do género "tás a aproveitar para meter conversa, é?" são coisas para as quais já não tenho paciencia!
      Vivemos num mundo que tem cabeças tão envenenadas que a gentileza é confundida com outras coisas...
      ...e eu não gosto de confusões!

      (claro que digo isto em relação a pessoas que não conheço de todo! Em relação a pessoas que conheço de alguma maneira, claro que a minha atitude é diferente...)

      :)

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    3. É verdade. Eu própria inibo-me de pedir ajuda, nestas circunstâncias, porque podem achar que eu quero mais qualquer coisa que não seja... ajuda. A sério, e uma pessoa ver-se na contingência de, para além do cansaço, ainda ter que se livrar de um sem noção, olha, prefiro os carregos. E ainda ponho a hipótese de haver quem me negue. Uma vez, num escritório onde trabalhei, andámos três a levar uma secretária pesadíssima para o andar de cima, escadas acima, pedimos ajuda a uma quarta (para ficarem duas em cada ponta do monstro), e ela, que era evidentemente a mais forte de todas, surgiu logo como "doente de coluna" e continuou a fumar cigarros na portaria onde trabalhava.
      Não é só falta de braços que por aí há muito. São doentes de coluna, também.
      :)

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  5. Fizeste-me lembrar uma altura menos boa da minha vida, para aqui não interessam porquês, em que amiúde carregava a minha macaquita num braço e no outro macaquito. Nessa altura teriam cerca de 2 e 5 anos e pesavam mais que cada um dos sacos que carregavas, já eu pesava pouco mais que eles dois juntos mas sempre que me pediam colo e sempre era quase sempre, eu não o negava. Muitas vezes, homens e mulheres me diziam "grande mãe" mas não se ofereciam para os carregar.

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    1. Ninguém ajuda, Be. Se eu te disser que andei pela rua com um carrinho, uma menina de três anos de um lado e outra de cinco do outro, e ainda mais uma barriga, e que a estratégia para atravessar uma rua ou entrar num elevador era de fazer suar as estopinhas e chorar as pedrinhas, mas ninguém estendia uma mãozinha que fosse (mais depressa ficavam em contemplação, com esses ais todos "que bonito, tantos"), nem sei como não sou uma ressabiada e ainda saio a correr para ajudar toda a gente. Mas fui sempre assim, no liceu era a que carregava os livros dos das muletas.
      (Devo ter visto "Super Mulher" a mais, em pequena.)

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  6. É por isso que gosto tanto da expressão "de braços abertos." Diz tanto sobre ser-se pessoa.

    Um beijinho, querida Blue

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    1. É isso mesmo, Miss Smile. Uma pessoa de braços abertos nem precisa de ter braços.

      Um beijinho, minha querida :)

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  7. Teria braços intermináveis para ti mesmo que nas tuas mão transportasses apenas um bouquet de papoilas......

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