12/11/2015

Na minha família, atravessa-se o rio depois de se morrer

Nascem todos no Alentejo e vêm morrer a Lisboa, porque aqui passaram a morar, ou porque assim lhes calhou nos meandros dos hospitais. Depois voltam, muito deitados, atravessando o rio pela última vez, na direcção de além Tejo.
São muitos, são imensos, são enormes, também em quantidade. Por isso, de vez em quando, ultimamente vezes a mais, atravessamos o rio juntos e voltamos mais sós, os que cá ficam — em Lisboa, e na vida. Andamos para perder o parentesco uns dos outros, não porque nos tenhamos esquecido, mas por termos a árvore genealógica mais peculiar e ramificada do pomar. Dei comigo a dizer a uma das minhas tias o que só talvez ela e eu consigamos entender — Tia, a tia é minha prima direita, pois se o seu pai era irmão da minha mãe... — e é isto que nos fica, todos entrelaçados no tronco esquisito que o meu avô e os meus tios mais velhos plantaram, por terem procriado raízes ao mesmo tempo. 
Hoje, quando atravessei o rio por mais uma vez, que sei não ser a última, lembrei-me da minha Titi — que foi minha mãe, tão mãe quanto a minha mãe —, e de como estava um dia assim, radioso e azul, quando ela fez a travessia, apesar de Janeiro. E veio-me à lembrança uma esperança, que é a de, pesem embora os dias azuis que banham a ponte azul, nunca chegar a minha vez de atravessar o rio tão deitada. Eu quero ficar aqui. E, se tiver mesmo que o atravessar, que seja porque os meus olhos se fecharam além Tejo, e eu estarei, enfim, em fim, a voltar para casa. Num dia assim, azul.

10 comentários:

  1. Anónimo12/11/15

    O quê?!?
    A tua família é Egipcia?!?!?!?!?

    (Sorry, brincadeirinha da treta)

    Excelente texto!

    :)

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  2. Lindo, o teu texto, pese ser sobre a morte.
    Quando os teus olhos se fecharem, seguindo a ordem natural das coisas, os meus já se terão cerrado. Porém, as cinzas espalhadas ao vento norte, irei fazer-te companhia.

    Beijos, Lindinha.

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    1. Oh, Maria, mas as coisas não têm ordem natural...
      Eu também me quero de cinzas, assim bem acompanhadas.

      Beijos para ti, rapariga.

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  3. Um beijito. (N vamos p novas...acho q é por isso que começamos a atravessar mais vezes o rio...pq não somos as únicas a não irmos p novas....)

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    1. Obrigada, Me. Para ti outro (Faz parte da viagem...).

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  4. E não significará a morte sempre a travessia metafórica de uma ponte?
    Tão bonito, o seu texto, Blue. Tocou-me muito.

    Um beijinho e um dia feliz :)

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    1. É sim, Miss Smile — uma viagem, uma passagem para outro lado.
      Obrigada, minha querida.

      Um beijinho também, um dia bom :)

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  5. Olá LB !
    Gostei do texto ( como sempre ).
    Mas fiquei impressionado com as tuas associações.
    Mais natural no teu caso ...devemos ser realistas ... dá para lembrar/ recordar .
    Mas ... " voltam, muito deitados, atravessando o rio pela última vez "... fez-me impressão.
    Achei uma imagem muito forte .
    Beijo,
    José

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    1. Olá, José
      Obrigada.
      Os meus eufemismos nem sempre correm bem.
      Se soubesses onde fui buscar "a inspiração" de muito deitados...
      Uns acabaram de maca, outros ainda mais deitados, o coveiro que o diga...
      :)
      Beijo

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