22/04/2016

Pur

Não era bem uma esplanada: a zona, fora do restaurante, estava envolta por um toldo de oleado, mas, como dava para um pequeno relvado, criava-me a ilusão de estar num jardim, embora abrigada da chuva. 
Elas estavam as duas, sentadas a uma mesa, e já não sei o que é que me chamou a atenção, mas acho que foi tudo. A mesa delas ficava junto à entrada e saída da tenda. Estavam ambas do mesmo lado da mesa: uma, de frente, enquanto a outra estava de costas, mas de frente para a companheira. A posição dos dois corpos formava, assim, um S, cúmplice. 
De onde me encontrava, apenas via o rosto de uma delas, mas vi-a sorrir e, de alguma maneira, intuí o sorriso da que estava de costas para mim. Era bastante magra, e o primeiro pormenor nela que me prendeu o olhar foram as meias que tinha calçadas: opacas, azul petróleo, juntamente com uns ténis, igualmente em azul petróleo, com pormenores amarelos. Tinha vestida uma saia comprida de lã castanha, uma camisola azul — manchada pela lixívia —, e uma boina tricotada, castanha. Nos olhos, uns óculos anos 70's. A outra, de compleição bem mais larga, vestia de forma neutra: calças, sapatos rasos, impermeável preto. 
Não as vi trocarem uma palavra. Uma delas levantou o copo que tinha à frente, ergueu-o ligeiramente, criando na outra a vontade de celebração. Içados ficaram, então, os dois copos no ar, bateram levemente um no outro e voltaram a pousar, sem terem ido às bocas. Continham um líquido cor-de-laranja, que podia ser sumo, não fora terem elas tantos sinais silenciosos, a gritar vício: barrigas dilatadas, pálpebras inchadas, narizes rosados.
Estavam sem pressa, sem destino, sem rumo.
E — genuínas, puras —, absolutamente felizes.


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