26/04/2016

Na cara dos outros

Assisto à formação com o distanciamento que me é possível. Tenho que lutar contra mim própria e as minhas características, que são defeitos, algumas delas. Custa-me ficar sentada tanto tempo, as pernas picam, o sono chega, e depois o corpo todo pica, não consigo prender a atenção numa única pessoa  e ficar calada  por mais do que meia-hora. Intervenho quando posso, para dispersar as luzinhas brilhantes que dançam diante de mim, enquanto bebo chá aos litros. Encher a bexiga espanta-me o sono, embora me distraia para esse órgão, em vez do que devia ser o meu foco: a formadora e seu discurso.
Ainda nova, bastante bonita, seca. É o terceiro dia que está diante de mim, e não esboçou um único sorriso, ou sequer proferiu uma frase onde raiasse um raio de humor. A voz, fina e flautada, de timbre agudo, denota uma personalidade impaciente, irascível. Toda a sala está dominada, tingida e atingida pela energia que dimana de alguém que, diga o que disser, jamais acende uma centelha no olhar.
De alguma maneira que não explico, lembra-me uma professora que, em reunião de direcção de turma, explicou aos pais que o grupo constituído pelos seus filhos, era um grupo difícil, falador, desorganizado, pouco empenhado, nada trabalhador, para além de quase todos os defeitos que podem caracterizar uma péssima turma. Penso que apenas não os classificou como criminosos, ladrões e mentirosos. Mas fê-lo com a voz doce e suave, e a expressão bonacheirona da gordinha de óculos grossos, assentes a meio da cana do nariz. Toda a linguagem corporal fazia supor uma professora empenhada e preocupada, até ao momento em que, serrando um punho, e abrindo a outra mão, socou a mão aberta, repetidamente, acompanhando as palavras, uma a uma, enquanto declarava, no mesmo doce tom: "Eu-não-quero-fazer-mal-aos-vossos-filhos". Oito socos, que senti desferidos na cabeça.
Às vezes, questiono-me se eu própria não tenho momentos em que, apesar do cuidado com a postura, a abordagem, a apresentação, o gesto e modo, o tom e o timbre, e mesmo a luz do olhar, e apesar de moderar na forma, o conteúdo e o modo de transmissão não me comprometem e me denunciam enquanto pessoa agressiva.
Nas costas dos outros, vejo as minhas.
Na cara dos outros, vejo a minha.

6 comentários:

  1. Anónimo26/4/16

    A descrição que fizeste da formadora fez-me lembrar a chamada na sala de aulas no filme "O rei dos gazeteiros"...
    ...em que na chamada já os alunos bocejavam...

    :)

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    1. Mas olha que outro dia tivemos um formador que, ao primeiro intervalo, provocou a debandada para a máquina do café :)

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    2. Anónimo26/4/16

      É giro...

      ...há pesoas que conseguem prender-nos a atenção durante horas a falar acerca de coisa nenhuma,...
      ...e há outros que nos fazem dispersar em segundos, mesmo que estejam a falar dos mais profundos segredos do Universo!

      Paradoxos!

      :)

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    3. Foi assim com os professores, é assim pela vida fora. O pior é quando nos calha a nós o papel de orador :)

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  2. Anónimo26/4/16

    Já não te lembras das insónias que provocavam as conversas de Vítor Gaspar?

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    1. Mas quem tinha as olheiras era ele, quando se esqueciam de fazer photoshop!

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