07/04/2016

Eu tenho problemas com médicos # 21

Já me vai faltando a coragem, e não consigo ir a todas: mais dois sisos que saíram de uma boca das minhas, que até me arrancam a alma a mim. Fiz as contas, por alto, e, mesmo com os quatro que já saíram, ainda há doze sisos para verem a luz do dia fora das outras três cavidades que eu fiz. Ninguém me manda ter tantos. É sempre a multiplicar. Quatro vezes quatro, dezasseis sisos para extrair.
Não há-de o cirurgião gostar de mim. Eu sou a árvore das patacas, a árvore dos dentes, a fada. Cada vez que olha para mim, até deve ouvir o tinir da caixa registadora.
(Eram tão giras, faziam trshc-plim.)
Este é irmão do dentista dos olhos bonitos. São quase iguais, mas este não tem olhos bonitos. E dedica-se à arrancação. O mano não se encoraja, é mais delicado.
Cheguei a meio da cirurgia, já ele tinha desdentado a rapariga numa unidade. Parecia um açougueiro: as mãos cheias de um pó branco, que eu não sei se era pasta de dentes, ou pó de talco, à halterofilista; e o avental cheio de sangue do meu sangue. 
Estive para o esmurrar.

Fez-me lembrar a minha própria extracção dos sisos: estava escalada, pelo talhante que me fazia as vezes de dentista, para os arrancar aos quatro de uma só assentada, com anestesia geral. Sucede que eu já era bem viva aos 19 e, no momento da passagem da cama para a mesa de operações, quando a cirurgiã me perguntou se eu tinha a certeza se queria mesmo arrancar tudo de uma vez, a conversa cheirou-me a cocó e então respondi que era melhor tirar só metade. Ela deu-me ouvidos, e tirou só metade. 
Ia sendo a minha morte. Suspeito que se tivesse permitido que me tirassem os quatro, teria morrido mesmo. Ainda hoje não percebo como é que foi possível sobreviver a um simples pós-operatório da extracção de dois dentes. 
(E esta que vos fala já perdeu a conta a quantas cirurgias sofreu na carne. Só para sacar coelhos da cartola, foram quatro, fora o resto.)
(Muito filme e muito artista francês não terão tantos césares como eu.)
(Depois queixo-me de memória fraca, como se a memória fosse carne.)
(Onde é que eu ia?)
(Ah, já sei.)
Nenhum pós-operatório se comparou àquele. Só para terem uma ideia, a primeira vez que me vi ao espelho, estava tão feia que desmaiei. OK, pode ter sido da anestesia, mas não interessa. Estava medonha. Depois, andei uma semana a líquidos, porque a minha boca não abria mais do que o espaço suficiente para entrar uma palhinha. Sucede que a dieta líquida dá a volta à tripa, ou então era de estar deitada (a anestesia induziu-me uma espécie de coma, em que babei copiosamente durante oito dias), mas o que é certo é que me enchi de ar. No entanto, eu já era uma senhora aos 19 anos, pelo que não flatulava de maneira nenhuma, apesar de isso me provocar dores de subir às paredes. (Deve ser assim que se sentem os balões de hélio.) Há quem não acredite nisto, mas então, não há quem tenha prisão de ventre? (Haha, não pode fazer a dança do ventre.) Tem os sólidos presos, certo? Eu tenho prisão de gases. 
Passei o cabo das tormentas, mas sobrevivi, apesar de, no fim, não ter podido chamar àquilo boa esperança. Mais tarde, tiraram-me os outros dois, um de cada vez, sentada numa cadeira, e acordada. Babei-me na mesma, mas em consciência.
A avaliar pelo que diz o povo, na sua imensa sabedoria, siso e juízo são a mesma coisa. A ser verdade, ups. 

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