01/04/2016

E chega ainda o dia em que

alguém não te reconhece porque te falta A barriga.
———
Passaram mais de dez anos sobre a última vez que nos tínhamos visto. Ela estava de costas, a servir-se de um café, os gestos hesitantes, a cabeça levemente inclinada para a frente. Eu fui fazer um chá, e, enquanto esperava que a chaleira eléctrica aquecesse a água, encostei-me na bancada, de frente para ela.
— Olá! — E rasguei um ruidoso sorriso, autêntico. 
Fomos vizinhas há muitos anos, durante talvez uma década — a minha década de árvore de fruto —, até que ela se foi, quando o escândalo lhe estoirou em cima e lhe detonou o casamento. Na época, era uma figura meio caricata, de senhora desocupada e extremamente vaidosa, vagamente profissional da decoração, estritamente dedicada à cirurgia estética na óptica do utilizador. A imagem de boneca  que meticulosamente construía, transmitia-me a ideia de que nas artificialidades de cada um também moram as suas fragilidades, e foi por isso que nunca deixei de sentir alguma simpatia por aquela pessoa. Vê-la agora, envelhecida pelo tempo, muito maquilhada, fez-me considerar se, também eu, um destes dias, não estarei assim.
— Desculpe... — Disseram-me os olhos muito abertos, as lentes à vista, as reveladoras manchas na íris — não estou a ver...
— Fomos vizinhas, há uns anos, não se lembra de mim, Filomena?
— Não estou a reconhecê-la...
Esqueço-me constantemente que, se os outros mudam pela passagem do tempo, também eu sofro alterações, mais ou menos subreptícias, mais ou menos cruéis. Em segundos, procurei lembrar-me de mim, de como era na época em que morámos na mesma rua, revi o cabelo, revi a maquilhagem — tive uma breve fase de bâton escarlate, quem sabe não seria isso...? —, revi qualquer pormenor que pudesse identificar-me no passado e desidentificar-me agora, não era muito mais magra, nem muito mais gorda... stop.
— Falta-me a barriga de grávida? Lembra-se de mim, sempre grávida?
E a luz da memória, acesa como um holofote:
— Oh, sim, já me lembro. Acho que nunca a tinha visto sem a barriga. Você... teve quantos, afinal?

2 comentários:

  1. Anónimo1/4/16

    Definitivamente, não podes sair à rua. Deixas qualquer pessoa à beira de um ataque de nervos :)))

    ResponderEliminar