05/05/2016

Mutatis mutandis

Um dia, andava eu de gatas pela casa, a apanhar brinquedos do chão. Trazia uma semente a germinar, que, de tão pequena, ainda nem sabia da sua existência. Pisei uma peça de Lego com um joelho e desmaiei. 
A de cinco anos continuou lá no planeta dela; a de três veio ajudar-me, chamando repetidamente "Mãe!", até que eu acordasse, e acordei; a de onze meses achou oportuno roubar-me os sapatos, pelo que acordei descalça.

~

Envinagrei demasiado a alface, porque a minha noção de salada é essa: umas folhas mergulhadas em vinha d'alhos, só que sem o alho. Mas engasguei-me. Tanto e tão profundamente, que vi correr em flashbacks — de muita categoria, por acaso. Perdeu-se aqui um talento para a sétima arte, e também para as outras seis —, não digo que a história da minha vida, mas, pelo menos, alguns episódios mais ou menos memoráveis, que foram tantos. Eu asfixiava, com a garganta afogada em vinagre de vinho, marca branca do Titio (que, só pela conjugação desses dois factores, deve ser bom para apanhar moscas), já entregava a alma a quem fosse ali a passar, que eu não sou esquisita, antevia, não sem alguma angústia — porque, não sei se já disse, sou uma senhora —, o peido mestre, ai Jesus, que vou falecêri, mas também não desasfixiava, chamem Heimlich, chamem Freud, chamem os bombeiros de Algés (os de Setúbal não, plizz-plizz), ponderei pôr-me de pernas para o ar (o pino contra a parede, meu maior mistério de sempre ao nível da ginástica, podia ser a solução, o instinto de sobrevivência faz milagres, quem sabe não era o momento de aprender uma coisa nova?), já via a luz — ai, é de halogénio, olha o Michael Jackson, então, filho, estás tão pálido, hádes tomar ferro, I'm bad, I'm bad, olha a Marilyn, hello, ainda não deslargaste o telefone? Olha, 'tás mais magrinha, lembras a Twiggy, eu bem, não fora esta acidez na garganta e até cantava um faduncho para animar, povo que lavas no rio —, os olhos lacrimejavam, do esforço, do horror, de vinagre (chorei vinagre, que eu sei). Os homens desataram a bater-me, pudera não, vais com os porcos, mas vais bem sovada, como aquela massa de que não és feita.
A mais velha continuou, impávida e serena, lá no planeta dela; a do meio sugeriu várias soluções para que aquilo acabasse depressa (a situação, não eu. Acho). A mais nova esperou que eu parasse de tossir, para, serenamente, me avisar:
- Tens um bocadinho de alface no canto do lábio.
...
Pelo menos, desta vez, ia — mas ia calçada.

8 comentários:

  1. Noutro dia, estava macaquito a perguntar-me se eu sabia de cor todos os números de telefone de pessoas para quem ele acha que deve ligar, lembrei-me de lhe ensinar a ligar para o 112 no caso de haver um acidente qualquer.
    Devias ensinar a do meio também, é a única de confiança.

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    1. Agora já sabem todos, naquela época é que eram demasiado pequenos. Só talvez a mais velha o pudesse fazer - assim que descesse à Terra :)

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  2. Anónimo5/5/16

    Menos mal...
    ...ou sou te deixou os sapatos porque não te apanhou a jeito?

    :)

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    1. Provavelmente, foi só por isso. A mania dos sapatos, manteve-a pela vida fora, até hoje. São ténis, mas não deixam de ser sapatos :)

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  3. O que eu chorei a rir! Mas não é pra rir que podia ter sido sério! :P

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    1. Foi bastante levado ao exagero, também :)

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  4. Anónimo5/5/16

    saí do outro condomínio, só para dizer que deves estar estafada, só de te lembrares da velocidade turbo em que tudo se desenrolou. Foi sova, ou só tabefes, como nos filmes? "Please, look at me, stay with me"- ninguém disse isto? há que reconstituir acena para um lhe introduzir uma melhoria significativa em todo o drama. Pode parecer que estou a desvalorizar, mas muito pelo contrário...subentende-se, não subentende, Linda?
    Boa noite e obrigada.
    beijo,
    Mia

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    1. Olha, valeu tudo. Com aquela desculpa do desengasga, "Dá-lhe lá umas palmadas nas costas", sovaram-me animalescamente.
      Não sei quem disse isso, mas não foi nenhum dos brutos que me agrediram só para me tirarem um nico de vinagre do goto, que eu isso lembrava-me.
      Claro que está tudo clarinho, Mia, sem dúvidas :)
      De nada, às ordens.
      Dorme bem.
      Beijos

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