Não tem quem a visite no hospital. Está ali há cinco dias, que só não lhe parecem mais por estar tão baralhada. Eu entro e chama constantemente por mim. "Ó menina!". Quer que lhe tire os pulsos que a prendem à cama. Explico-lhe uma, duas, dez vezes por dia, que não trabalho ali e não posso soltá-la. "Ó donzela!", "Ó senhora, não me chame donzela, que eu não sou isso há muitos anos", "Olha lá, vamos lá a conversar as duas, vens aqui e tiras-me isto ou não?", "Olha lá, e agora tratas-me por tu porquê? Andámos juntas na tropa, não?", "Como é que te chamas?", "Isabel" - minto-lhe. Da vez seguinte posso dizer "Patrícia", depois "Vanda", que ela engole tudo. Vou começar a fazer o que faço no Starbucks ("Gisele Bundchen", "Priscila", "Paulão") -, "Isabel, tira-me isto", "Não tiro. Sossega".
Dou a mão à minha mãe. Arranjei-lhe as unhas e ficaram lindas. Aquelas mãos curaram pessoas e salvaram vidas. Agora estão sem carne, cheias de nódoas negras, mas, ainda assim, lindíssimas. Bem seguras nas minhas, não quero rezar, não quero, porque se começo a rezar é sinal que perdi toda a esperança e não quero, não rezo, mas ouço-me a pensar "Não ma leves. Não precisas dela para nada, tão velhinha". Sento-me ao lado dela e fico entre duas camas. A mão da outra estende-se na minha direcção e diz-me:
- Dá-me a mão.
- Não dou.
- Não dás porquê?
- Porque eu digo sempre que não a tudo.
- Porquê?
- Porque sim. - contradigo-me - Foi a minha primeira palavra. "Não".
- Dá-me a mão.
- Não.
- Porquê?
- Porque não quero ficar ligada a ti.
- Porquê?
Já não a podia ouvir e dei-lhe a mão. Fiquei com as duas mãos dentro das duas mãos das duas desgraças mais magras daquele piso. Dizem uma da outra: "Tão magra! Parece uma criança!". Diz o roto ao nu. Não posso ligar-me a mais ninguém ali dentro. Aprendi agora que a ortopedia dos hospitais está cheia de senhoras de idade. As mulheres partem-se, no final da vida. A nossa natureza é tão ingrata que, depois de darmos fruto, perdemos a razão de existir e desfazem-se-nos os ossos. No quarto ao lado esteve uma que gritava e se despia. Eu, como sou uma artista, achei que ela tinha um peito bonito. Não vi a velhice nem vi a demência. E nos dias seguintes, até ter alta, fui vê-la. Qualquer dia fico lá, e não quero. "Não".
Entra o auxiliar novinho que as trata a todas por "querida". Digo-lhe: "Pareço um Cristo". "Pois parece". Vá que não me tratou por querida.
Errei, com toda a certeza, alguma porta nesta vida. Devia estar fechada todo o dia num convento, a rezar e a fazer o bem. Acabaria os meus dias beatificada, certamente. Podem não acreditar, mas eu acho que dava para santa. Até a figura se presta. Porém, deixam-me à solta. E dá nisto. Assim, não pratico a bondade nem me deixam ter sossego.
Olha lá, ó lá de cima: eu disse boa. Boa. Boazona. Não disse boazinha.
Se mais mãos tivesses...
ResponderEliminarOs quartos são de duas.
EliminarSe fossem de quatro, iam dar comigo em estrela, feita devassa.
Lá se ia a imagem do Cristo.
Que arranques os sorrisos todos que consigas, para que ambas sorriam juntas. :) Um beijo, as melhoras.
ResponderEliminarEstou quase transformada num palhaço, mas até já consegui fazê-la rir uma vez.
EliminarVamos ver.
Obrigada.
Beijo
No fundo... bem lá no fundo até és boa pessoa :P
ResponderEliminar(as melhoras para a mãe)
Até. Nas catacumbas.
Eliminar(obrigada)
Estou com a Lírio.
EliminarMetaforicamente, cariño?
Eliminar