Soube pela Uva, ontem, e agora já está em todo o lado. Meu Alentejo querido.
Alentejo. E vem-me à cabeça, sempre, e em primeiro lugar, o meu avô Francisco. Eu sou a única pessoa que conheço cujos avôs tinham nomes normais. Ninguém se chamava Apolinário. Ou Jacinto. O meu outro avô era Rodrigo. E ambos nasceram no século XIX.
O meu avô Francisco usava chapéu preto e essa memória põe-me sempre a cantar "Ai, que lindo chapéu preto, naquela cabeça vai, mas que lindo rapazinho para genro do meu pai". E, quando vejo um rapazinho mesmo bonito, digo: "Mas que lindo rapazinho, não para genro do meu pai, porque eu já tenho idade para ter juízo". O cantar alentejano é assim, em coro só de homens, de braços dados, de camisa branca e chapéu preto, um cantar morno e bem pausado. Compassado.
Em miúda, via o anúncio do Porto Sandeman, com o homem da capa negra, e achava que aquele era o meu avô. Só uma criança é que faz uma confusão imensa destas, porque o meu avô do Porto era o outro, que eu nunca conheci, mas que toda a vida me fez falta e andava estampado na tristeza dos olhos do meu pai, de cada vez que falava no pai dele. Mas, para as crianças, a geografia ainda é uma imensa incógnita e colocar a figura do avô alentejano num vinho do Porto do avô do Porto era o raciocínio mais lógico que só quem nunca foi criança é incapaz de entender.
O meu Alentejo é o Alentejo do frio assassino no Inverno e do calor insuportável no Verão. De não se sair da lareira num e de não se sair de casa no outro. A chapa do sol dá uma pancada na cabeça que se vê tudo prateado, quando está calor. No Alentejo, ainda vi muitas crianças descalças. Ainda vi crianças com sapatos abertos à frente a canivete, para servirem mais uns meses. Não são os alentejanos que são lentos. A vida, no Alentejo, corre com outro fuso horário. Morna e bem pausada, como o cantar. Compassada.
Foi no Alentejo que corri até bater com os calcanhares no rabo. Foi lá que me enfiei por um lago pantanoso, depois de uma dessas corridas, em que ia despindo o vestido à medida que corria. Vá que me descalcei. Largávamo-nos a correr, a outra e eu, e íamos ensurdecendo aos gritos de "Ó meninas!", à medida que corríamos. Sorte aquele pântano ter chão. Escorregadio, mas seguro. Senão, tinha-me lá enfiado, só de cuecas - era mesmo direitinha, despia tudo, mas deixava sempre as cuecas - e já não saía de lá, a não ser transformada numa estátua de barro. Também foi lá que aprendi a nunca comer azeitonas pretas que não estivessem retalhadas e temperadas com orégãos, a não provar de outro azeite que não aquele, a saber distinguir o que é açorda e o que são migas, a pôr hortelã na alface e a entender o cheiro do mosto como o de um perfume, onde mergulhava, primeiro as mãos, depois até aos cotovelos, e, quando iam dar comigo, já tinha os braços enfiados até aos ombros no alguidar com o tempero das azeitonas. E uma perna alçada para meter lá o resto do corpo.
Alentejo é Páscoa, por ser uma época mais importante que o Natal, são apelidos de alcunhas - Calhau Branco, Perna Seca, Vaquinhas, Borracho, Bonito -, são nomes bonitos - Mariana, Margarida, Artur, Bernardo, Manuel, e sempre, desde sempre, Francisco -, são oliveiras a perder de vista, é um padre que, em novo, se entusiasmava durante a homilia, corria pela nave e chorava - e um dia espetou o rabo nas lanças das grades de uma estátua. Eu a vê-lo recuar para orientar a manobra do andor, e as lanças mesmo no caminho do rabo dele, ele a recuar e ah, o senhor prior espetou-se nas lanças, e a cabra da criança, vestida de branco para a procissão, viu e não avisou, mas se não era muito mais engraçado ver o padre a sangrar do rabo do que evitar que ele o espetasse?, até parece que adivinhava que um dia ia ter um blog e ia lá contar o feito de ter ficado calada na hora H e ter, de alguma maneira, contribuído para que a missa chorada entrasse em modo de pausa por uns tempos.
Alentejo é também terra de gente triste e desiludida, vestida de preto e destituída de sonhos. Dizem os especialistas que a monotonia da paisagem não ajuda, a emigração dos jovens também não, mas eu acho que é coisa da alma, e eu, que só tenho doze das vinte e quatro costelas de lá, ainda assim consigo perceber essa tristeza que nos assalta e corrói de vez em quando, muito embora os meus pais tenham tido o cuidado de me conceber, fazer nascer e criar à beira mar.
Alentejo é mãe. Mãe. E tenho tanto medo de me perder dela outra vez que, cada vez que penso nisso, fico tão vestida de negro e tão destituída de sonhos como qualquer alentejano dos sete costados.
Alentejo é mãe. Mãe. E tenho tanto medo de me perder dela outra vez que, cada vez que penso nisso, fico tão vestida de negro e tão destituída de sonhos como qualquer alentejano dos sete costados.
Li tudo... adorei a descrição do Alentejo profundo, porque o Alentejo litoral veste-se de outras cores, mais vivas, mais alegres.
ResponderEliminar*também coloco hortelã na alface e não sou alentejana :)
(nunca conheci os meus avós, nunca soube se usavam chapéu preto...)
Este meu, não.
Eliminar* e coentros em tudo? :) Vê lá bem isso.