10/08/2022

Invisibilidade indolor

(Este blog parece uma página de Instagram que tive que deixar de seguir porque a autora, apesar de muito cómica, era assaz aborrecida: cada vez que “abria a boca”, era para dizer “Eu sou vegan”. Já eu, cada vez que escrevo um post, digo “Eu tenho cancro”. Cada parva com a sua mania.)

Passei a conhecer as pessoas por outros prismas, como se me tivesse sentado numa cadeira elevatória e giratória e pudesse andar-lhes a toda a volta, vê-las por quadrantes nunca antes imagináveis porque impossíveis, olhá-las de cima, de viés, do avesso, à socapa. Sentir-lhes, assim, as fragilidades, as cobardias também, as fraquezas, as falhas. Claro que a inversa também é verdadeira, e foi-me igualmente dada oportunidade de conhecer a dimensão inumana — no sentido positivo do termo — de outras, por tão generosa e abnegada. Curiosamente, nestas últimas incluem-se pessoas da blogosfera, ou daquilo que resta deste nosso recanto, que vieram dar-me um abraço muito mais apertado e definitivo do que o de outras da minha vida real.

Antes que haja por aí alguma confusão, estou a lembrar-me concretamente de uma amiga de amiga, que se cruza comigo no ginásio e que, desde que o mundo soube, logo a seguir a mim, que eu estava doente, simplesmente deixou de me falar. Não que antes travássemos diálogos muito profundos, basicamente não passávamos do “olá”, ou, no limite da loucura, algo acerca de treinos ou da nossa amiga comum, mas agora julgo que me tornei invisível, pois a criatura passa por mim e desvia o olhar, ou, melhor ainda, olha-me à transparência, eu feita cristal bonito que se quebra quando cai.

Não sei como, nem se vale a pena, explicar a estes seres que o que eu tenho não se pega. Que o que eu tenho precisa de palavras, sobretudo se forem ditas por mim, sobretudo se forem um bocadinho mais do que chavões, andrà tutto bene. Que o que eu tenho se chama cancro, não tumor, não problema, não doença, só. Eu chamo o boi pelo nome, nada temam, que não desmaiarei se disserem “cancro” à minha frente. Cancro, cancro, cancro. 

Compreendo que, sem saber o que fazer ou dizer, haja quem prefira não fazer ou dizer coisa alguma. Eu também já fiz isso. E agora sei o quanto dói essa forçada indiferença. Mas também sei que, quando nos tornamos invisíveis, deixa de doer.