De entre outras, mais ou menos criadas por mim, tenho usado muito a metáfora do caminho de pedras pontiagudas que percorro descalça. Às vezes até tenho superstição em abrir a boca para falar, pois que até as imagens figuradas que construo vêm ter comigo: a quimioterapia sensibilizou-me mãos e pés, julgava eu que se limitaria à infecção nas unhas, afinal deu-me de graça plantas e palmas ultra sensíveis, com uma maravilhosa pele que não devo ter desde o berço, e que, apesar, contudo, todavia, mas, porém, não aguentam qualquer calçado e, uma vez descalça, qualquer piso.
Isto para dizer que a enfermeira que me fez a consulta preparatória de radioterapia me deu carta branca para ir à praia até começar os tratamentos. O que é que ela foi dizer. Fui, e fui à grande: alugámos colmo, almoçámos que nem reis (ignoremos, só agora por momentos, o facto de o meu paladar estar do avesso e um hambúrguer de salmão com batatas doce fritas poder saber-me a uma barra ferrugenta), fomos mergulhar até lhes perder a conta. Pedi os três desejos da praxe, que, se fosse uma pessoa normal, pediria “a cura, a cura, a cura”, mas sou tão prosaiquinha que “desperdicei” (aos olhos e sob o ponto de vista de humanos mais elevados) um deles a pedir “que o meu cabelo cresça depressa”. Só me danei por não ter definido “depressa”, por ser um conceito tão vago e vasto, que lá quem recebe estes pedidos tanto pode ser uma lesma e pôr-me o cabelo a crescer ao ritmo dos elevadores do IKEA, como pode ser um hiperactivo e amanhã acordar qual cavernícula. Também nadei, apesar de frequentar uma praia cujo mar não permite grandes braçadas, mas era verem-me sem Natércia, a nadar enquanto levava tareia das ondas, e teriam a imagem perfeita de um pato feliz.
A saída do mar, de todas as vezes que lá entrei naqueles dois dias, custou-me muito mais do que a entrada: havia uma barra larga de conchas partidas, que todas as pessoas passavam como se fosse areia fina, mas aqui à princesa do pé fino causaram dores excruciantes, rés-vés a lágrima bem salgada. Então, ofereci pela saúde dos meus filhos. (Caluda, eu é que sei onde é que gasto as minhas fichas.)
Portanto e à conclusão, corrijo a metáfora: estou a percorrer, descalça, um caminho de conchinhas partidas.
(Pode ser que, para o ano, já tenha pés de tairoca, com aquele calcanhar de queijo de Serpa, ai que delícia.)