24/04/2019

O problema é se o verniz é recente e de má qualidade

Eu também acho que cada um deve fazer ao seu dinheiro aquilo que quiser. 
Aceito e acredito na liberdade de escolhas e sei que cada qual deve viver tranquilo com a defesa dos seus valores. 
Sou pessoa suficientemente crescida para acreditar que há coisas que tocam mais de perto uns do que outros: desde que fui mãe, fiquei mais sensível à causa das crianças; desde que tive uma mãe velhinha, fiquei mais sensível à causa dos velhinhos; desde que tenho gatas, fiquei mais sensível à causa dos animais. (Não me dêem flores. Por favor. Não aguento mais tanta sensibilidade.)
Também já sou adulta o suficiente para saber que o Mundo em que vivo só não é uma merda porque estou do lado bom, civilizado, com água potável a sair das torneiras e rodeada de gente que, mais ou menos, respeita as mulheres (quando não as mata). Mas também suspeito que vivo rodeada de patos-bravos, pois até ouço um grasnar de vez em quando. Só isso me explica que seja tão necessária a afirmação do valor Cultura (e História?) (e Tradição?) — que, efectivamente, não existe enquanto tal —, agigantando-o sobre o valor Vida. Deve ser por ser da vida dos outros que se trata. Pergunto-me o que seria de nós, pequeno país do sul da Europa à beira-mar plantado, se fossemos um destes dias brindados com um qualquer desses caprichos da Natureza. Quem nos acudiria? E que prioridades teria o tal mundo de gentes superiormente cultivadas sobre a nossa salvação?
Eu também acho que cada um deve fazer ao seu dinheiro aquilo que quiser. Reafirmo, a ver se me convenço disto. 
No limite, ou muito antes dele —, ainda que haja pessoas a morrer de fome, de sede, de frio, de epidemias —, pode sempre rasgá-lo, fumá-lo, metê-lo pelas veias, pelo nariz, ou num orifício qualquer que lhe apraza e lhe seja prazeroso. Ninguém tem nada a ver com isso. Porque, ao que parece, neste Mundo em que eu vivo, nenhum de nós tem uma obrigação Moral — e, antes dessa ainda, uma obrigação Afectiva — para com o próximo. 
Afinal, pensando melhor, não sei se estou do lado bom do Planeta. 



4 comentários:

  1. A vaidade tal como a solidariedade não necessitam de muitas palavras. A vaidade, porque o seu elemento é a dissimulação e a sombra. A solidariedade porque não tem de alardear as suas acções.

    (Pensando melhor, não sei se o Planeta tem dois hemisférios.)

    Como vai?

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    1. E parece-me que hoje em dia, porque muito expostas por sua iniciativa (factor que esquecem com frequência), as pessoas têm grande necessidade de mostrar-se publicamente solidárias por uma questão de vaidade, e modestas por uma questão de solidariedade. Escasseia a autenticidade, cada vez mais.

      (Pois não, Impontual, os dois hemisférios estão dentro da cabeça das pessoas :))

      Bem, obrigada, quando não acometida por estes achaques. E o Impontual?

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  2. Tenho sentimentos dúbios.... Moralmente e afectivamente sei quais são as que sinto como prioridades, e falta-me o ar quando penso na quantidade de pessoas que vivem em situações horríveis e cruéis.

    Mas não consigo encher o peito de ar e dizer mal de quem deu x euros para a reconstrução da Notre Dame. Tenho a visão, quiçá ingénua de que: 1) não faço ideia que quem deu para estas situações não deu também para outras 2) E se não deu? É obrigada a dar? 3) Todos os que enchem o peito de ar para falar, o que fazem? Para os pobres do outro lado do hemisfério? Pelos pobres ao nossa lado? Pelo vizinho da frente? 4) Tenho pouca capacidade para juiz de bancada. E irrita-me um bocadinho mandarem-me no dinheiro dos outros (independentemente de achar melhores ou piores as opções que casa um toma, seja moralmente ou não) 5) Há tantas causas boas onde aplicar o dinheiro..."que bom" que há para todas as vertentes.. talvez não haja o suficiente? Concordo. Mas uma parte de mim fica muito feliz de existirem pessoas com sentimentos diversos para que várias áreas sejam contempladas.

    Agora, se falarmos de obrigações... do que nós como sociedade colectiva deveríamos fazer, como estados, já acho que há uma moral que devia prevalecer. Seja por Moçambique, seja pelo Irão (ah, mas esses são os maus não é? É?..)

    Eu não estou do lado bom do Planeta. Irrito-me demasiado com a maldade , com o egoísmo para conseguir ter uma visão zen e bondosa.

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    1. E quem não tem, Espiral?
      Só não suporto radicalismos, e cansei-me de ver escrito que quem não concorda com a posição dos multimilionários é burro, idiota e outros adjectivos igualmente desqualificativos. Se é para entrar numa guerra de palavras, posso então chamar patos-bravos a quem se põe de um lado de uma barricada à qual não pertence. Ou que defende o indefensável só porque sim, porque cria frissons, chama leituras, incomoda. Nas grandes questões, já passei a adolescência há muito, detesto a posição da belle rebelle, que só fica mal em pessoas adultas.
      Mas quem sou eu, senão uma gota no oceano? A minha contribuição para Moçambique foi simbólica, retirou um quase nada do meu confortozinho, um muitíssimo da minha consciência pesada.
      Também não julgo, só não admito extremismos para o meu lado. É esta raça de gente, que tudo sabe e sobre tudo opina, que só conhece a sua opinião e vontade, que um dia rebenta tudo à sua volta, só porque se sente a pregar no deserto. Fundamentalismos, M-E-D-O...

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