11/04/2019

Intemporal vida

Então as duas senhoras, uma já entradota, essa espécie de definição aplicada a quem anda pela casa dos sessenta, a outra seguramente com idade para ser sua mãe, ambas me medindo com invisíveis fitas métricas e olhos perscrutantes, vaiando-me de "minha senhora" a cada pausa, haviam-me dito que, umas portas adiante, três ruas para trás, descendo ali uma parte da calçada, iria encontrar um senhor de muita confiança, que amola tesouras, e não é desses de andar na rua com a roda, a anunciar chuva, que se paga uma fortuna e fazem um serviço que é uma vergonha e depois não temos a quem nos ir queixar, porque eles desaparecem, "na chuva", acrescentei eu mentalmente. Isto porque tinha dito a uma das duas ou a ambas, acho que ao calhas, que tinha a minha tesoura de vinte e seis anos, mais velha que qualquer dos meus filhos, a deixar de fazer o que lhe compete, que é cortar. Por isso é que lá fui bater à porta aqui há umas semanas, que é como quem diz, muni-me do mapa mental, o crosquis descritivo das duas, e fui lá dar. Há lugares assim como aquele, em que o tempo muda de lugar, e em que qualquer retrato que deles tiremos ou façamos será sempre intemporal: impossível identificar-lhes o ano, sequer a década. Assim era aquele, tanto podia ser hoje como na minha mais tenra infância, perguntei-me à chegada se já existia ali há duzentos anos, e tal e qualzinho. Havia guarda-chuvas, bengalas, facas e tesouras um pouco por todo o lado, e o espaço, algo amplo e não muito diferente dos antigos sapateiros - anteriores a umas fabriquetas chiadeiras de chaves coloridas que não servem em fechadura nenhuma e me preenchem de raspão a visão periférica -, era praticamente todo ocupado pela presença de um senhor, também ele intemporal, e seus vivos olhos atrás de grossas lentes, que me recebeu com um "bom dia, menina", sem medições nem distâncias inúteis. Comprometeu-se então a ter-me a tesoura fina, afinada e afiada para dali a sete dias, e foi também por isso que voltei passavam já dez sobre esse dia, e o que é facto é que a tesoura não estava pronta. Riam os olhos quando me confessou que, entretanto, fora operado às cataratas, como se isso não fosse já previsível naquela outra data, e riram os meus quando me pediu meia-hora para proceder à magia da afinação, combinada dez dias antes e atrasada agora por três, contas feitas assim por alto. E foi assim que voltei para casa com o assunto resolvido, é certo, mas também com a certeza de que há pessoas e lugares em que a vida é intemporal - sem temporais.

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