30/11/2016

Estudos antropológicos que basicamente redundam em nada

Das tipas da Calzedonia do Colombo, já eu desisti. Admito que devo ter ar de quem vai comprar a loja toda, assumo que terei um ar irremediavelmente irritante, porque entro, sou mochada por uma multidão delas, que desistem de me massajar assim que percebem que não, não vou sequer levar o raio dos collants que fazem maravilhas, todas menos não se rasgarem. Desisti de tentar perceber o mau humor constante e permanente das colegas do Continente, que, vá lá, acho que me odeiam. Imagine-se que eu entro, digo o que quero, tipo, cor e tamanho, e já levo com a cara de caso/funeral/ovo atravessado de qualquer uma das que lá estão. É aborrecido, sobretudo para elas, tendo em conta que eu possuo o dom e a arte e o engenho e o super-poder e a admirável capacidade de fingir que tô-nem-aí. 
Também gostaria que alguém me explicasse aquelas cinco funcionárias do balcão da entrada do Hospital da Luz. Até são seis, visto que anda uma a cirandar, ali do lado de fora do balcão, que é a que nos aborda. O que é que deseja? [Apetece-me sempre responder a questões deste teor com Um carro, uma casa e um plano poupança-reforma como deve ser. Ou não é por demais evidente o que é que eu desejo deste balcão?], a pessoa explica, e recebe em troca um bem rasgado A colega já a chama, quando chegar a vez da senhora (que é basicamente já, pois não se encontra ali mais nenhuma alma viva), mas sem o sorriso. Depois somos vagamente chamados por uma das cinco, através de um sinal de pestanas — juro que não passa disto —, tão imperceptível, que tanto faz de qual das cinco nos aproximamos: na verdade, nenhuma está a fazer coisa nenhuma, a não ser a praticar a incapacidade para descolar os olhos — cravejados de pestanas postiças — do monitor, que imagino estará ligado ao Tinder, ao Pentágono ou simplesmente bloqueado no Solitário Spider. Repetimos ao que vamos, e ficamos ali, a admirar aquele admirável mundo novo, composto por cinco mulheres, não só todas vestidas de igual modo porque a isso são obrigadas, mas também de unhas iguais, feitas de gel, com quase um centímetro a sair do dedo, em tons que variam entre o bege e o castanho. Afinal, todas usam as tais pestanas, todas pintam o cabelo de negro-negro-negro como o meu destino à noitinha, todas se tornaram incapazes, algures no seu processo de formação, de levantar os olhos para uma pessoa, o que, lá está, é aborrecido, sobretudo para elas, tendo em conta que eu possuo o dom e a arte e o engenho e o super-poder e a admirável capacidade de fingir que tô-nem-aí.


6 comentários:

  1. Anónimo30/11/16

    Ah, esses lugares mágicos! Mas eu sou mais dada aos estudos dos funcionários dos transportes públicos, que estão nos guichets. Gosto do ar de enfado ou de superioridade, dependendo da clientela. Gosto do constante "não sei". Gosto especialmente de nunca olharem para o interlocutor. Não sou assim tão feia.
    M. Lopes

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    1. E "Isso é com a minha colega", "A senhora tem que esperar a sua vez" (senhora, La Palice não diria melhor), "Veja se me entende", "Está na fila errada", "A sua senha não é essa", um constante revirar de olhos que não há salário mínimo que justifique, porque mínimo já ele era no dia em que entraram, e não sabem nem sonham se estão a lidar com alguém que nem o mínimo aufere.

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    2. Anónimo30/11/16

      Bem observado (sem ironia).
      Compreendo a desmotivação, a falta de perspectivas, as chatices da vida e um salário baixo, mas nada sabem sobre quem está a ser atendido, que às tantas pode viver em circunstâncias muito mais complicadas. A mim tanto me incomoda ser atacada por um enxame de vendedoras-melgas como o oposto, revirarem os olhos com ar de "olha-me esta, não deve ter mais que fazer senão vir aqui chatear-me".
      Um abraço
      Paula

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    3. Claro. Melhor do que colocarmo-nos no lugar do outro, é o exercício de imaginarmos que vida tem o outro, mesmo achando a nossa vida uma desgraceira.
      Hoje estive na fila para comprar peixe no supermercado, as funcionárias todas muito mal dispostas, eu só olhei à volta e vi uma mulher da minha idade tão doente (nem sei se "só" de cabeça), que me pus a imaginar se também a iam tratar mal a ela.
      É este o espírito de Natal...?
      Abraço, Paula

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  2. Se elas olhassem para ti, como se iria justificar a "ajudante" sempre-em-pé?

    Beijos, Lindona :)

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    1. É uma espécie de olhos delas?

      Beijos, Mary :)

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