17/06/2025

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar ao supermercado # 63

Acerco-me, confiançuda, das caixas em que a gente, pessoas humanas, é que faz tudo: desde o registar ao pagar — no qual deveríamos ser agraciados com um respeitoso desconto —, ao ensacar, nada passa pelas mãos dos funcionários. Isto, claro, em se tratando de um vulgar terrestre, já nado com o dom da tecla e da leitura óptica. Em cada compra das minhas, o mínimo de vezes que chamo a ex-antipática do braço entrapado são umas três. Hoje, perdi-lhes a conta. Fui confrontar-me com uma máquina que absorveu o mau génio que dominou em tempos a ajudante-de-clientes-aflitos, e que implicou comigo logo à cabeça. Primeiro artigo, um par de rolos de papel de cozinha. "Artigo desconhecido" [Oh, Deus, queres ver que vim comprar ouro em pó?]. Ela veio, tocou em trinta e dez botões, passou aquela coisa que parece um secador de cabelo [hei-de experimentar] por vários cartões que trazia no bolso, e sentenciou: "Pode continuar." Continuei. Passa isto, passa aquilo, tudo a eito. Ah, não, espera. Passei um artigo que pesava vinte gramas e a máquina indiferente. Passei uma embalagem de fiambre, põe-se ela: "Peso de artigo não especificado". [Fiambre já pesado na fábrica, capaz de ter uma barata a dormir dentro da embalagem, chiu, não acordem a menina]. Lá veio a senhora dos botões e da leitura óptica e repetiu que continuasse. Estava aqui a pessoa a passar uma embalagem de cajus, atira-a com uma certa determinação para aquilo a que chamam balança, mas que mais não é do que uma passadeira estática (como, aliás, deveriam ser as de todos os ginásios), vê lá escrito Caju - não sei quantos euros, mas não vê os cajus em parte nenhuma. Rebusca no tapete dos registados, Ai, queres ver que sou o novo David Copperfield e, ao invés de um avião, faço desaparecer frutos secos?, nada do pacote, rebusca no chão, na vizinhança e, atónita, exangue, lá chama outra vez a amiga loira, que vem a rir, e ainda se ri mais quando lhe é explicado o facto. Depois encontra os cajus atrás da máquina, toca em mais quarenta e oito botões e usa aquele taser [não sei como não na minha testa] e some-se, não para trás da registadora, mas lá para o posto de vigia dela. Tento, então, passar um conjunto de três embalagens de toalhitas para a higiene do povo do lar, que a gente é suavemente limpinhos e, ao preço a que está o papel higiénico, mais vale isto, mas verifico que não tem um código de barras único e lembro-me que não sei multiplicar por três lá naqueles botões do ecrã. Por isso, rebento a fita que os une e pretendo passar um a um, que lá somar, isso sei. Passo o primeiro, pouso na passadeira e leio logo: Peso errado, ou coisa que me valha. A outra aparece-me e explico-lhe a minha enésima dificuldade, e é então que ela me esclarece que cada código daqueles é referente às três embalagens de toalhitas. Continuo sem entender, visto que acabei de passar seis litros de leite e tive de os virar de cabeça para baixo porque a asa com o código está no topo.

É claro que, muitos minutos depois, chegou o momento do pagamento. E paguei. E enchi um saco de supermercado, para além do meu, íntimo e pessoal, que já transbordara desde a cena do papel de cozinha. Tudo aquilo me exaspera. A alternativa, que é alguém registar as compras por mim, simplesmente não me assiste. Demasiada conversa parva para meus actuais parâmetros. A velhice tem destas coisas: poder escolher, poder dizer “não”, poder não dar contas porque. E peguei no segundo saco e o cheiro a peixe podre era assim algo de histriónico. Todo molhado por dentro. A água que teve, apodreceu ali. E eu a pensar numa solução. Tudo, menos chamar a minha já velha serva. Vou comprar outro saco. Não, tenho dezenas em casa. Vou deitar este fora. Não, este pesadelo custa uma parte do intestino grosso. Vou comprar sacos de plástico. Não, que eu sou pelo bem. Vou deitar-me para o chão e gritar que quero a minha mãe e que estou farta de viver estes pesadelos acordada, e depois, quando efectivamente acordo, são verdade. Vou fugir. Deixo aqui as m. todas e defeco no assunto. Não posso. Já entrei na recta da meta. E essa é uma rota de colisão. Então, a mais luminosa que me ocorreu foi pegar em parte de um dos rolos de papel de cozinha e limpar aquele nojo, enquanto paguejava, P. da minha vida, só me acontecem m., depois de todas as m. por que já passei aqui, agora tenho o c. do saco a cheirar a escargots podres. É isto, a velhice. É tudo descarrilar e ainda termos forças para trovejar, encher o saco com mais dez quilos de trampas e levar tudo para o lar. 

Um dia acertamos contas, Hades. Há-des ver.  


27/05/2025

O que interessa é participar?

Blhag, não. O que interessa é ganhar; ou então, ficar numa posição que não envergonhe as gerações vindouras. Ai, "Os últimos são os primeiros". São nada. Os últimos a entrar num elevador estreito como os do meu prédio, são os primeiros a sair, senão ninguém sai. 

Só balelas.

Aqui há bastantes semanas, nem me quero lembrar, fui enfiar-me numa corrida à noite, para percorrer um milhão de centímetros. Não treinei grande coisa, por preguiça, falta de vontade e ânimo e por achar inútil. Cada um sabe de si. [Hoje estou inquinadinha de ditados populares.] Foi ainda no tempo das monções que este país sofreu, pelo que os três primeiros quilómetros foram feitos à chuva. Nada de especial, não fora estar um frio de ananases, mas a pessoa humana ia resguardada com uma camisolinha por baixo da camisola da competição, fora a manga que uso às vezes para que o braço não se transforme numa pata de elefante. Nem dei por ter parado de chover, pois já suava as estopinhas e outros paninhos ordinários. Mas ia determinada a não parar nem para beber água, de tal modo que até levava um cantil de dois litros às costas — e ainda hoje ponho a possibilidade de terem sido aqueles dois quilos a mais a prejudicar o meu resultado —, para não ter sequer que abrandar. É claro que, ao primeiro quilómetro, já pensava coisas ao melhor estilo vernáculo (é um estilo!), mais ou menos: "por que piiii me vim meter nesta m.?". Não me doía nada, nem os pés [agora encravam-se-me as unhas, a quimioterapia ainda circula alegremente. E também devo estar um nico radioactiva], nem os joelhos [que nunca doem, mas é uma queixa vulgar do povo], nem os pulmões, nem o burro. Mas doía-me, sobretudo, a alma, muito em particular quando me vi sozinha, de noite, numa cidade cujos contornos mal conheço, a tentar correr, e nem pelotão à frente, nem atrás, com a possibilidade (que teria sido superiormente inteligente) de me atirar para o chão e chamar os meus bombeiros, que me levassem para a barraca e me dessem miminhos, como já aconteceu. Ao invés, havia uma força estúpida que me ordenava: "Continua, bruta!". Devia estar no sexto quilómetro, a solidão iniciara-se há minutos, quando me aparece uma anja alada e me diz: "Vamos embora, juntas até ao fim!". Explicou-me que faz tracking e que, nessa modalidade, ninguém fica para trás. O último é sempre acompanhado pelo "vassoura". Então, começou a varrer-me na direcção da meta, os piores quatro quilómetros que já corri na vida. Dores, agora sim. Dores nas plantas dos pés, a queimar, dores nas ancas, dores nas mãos, a inchar como salsichas frescas, dores nas costas, dores na cauda equina, dores, dores, dores, e estrada, estrada, estrada. Não sei quantas vezes morri. Ia acompanhada da minha bruxa fada e dois polícias de mota, com muitas luzes azuis, ou eu já as multiplicava, tamanho e tão penoso era o calvário. Aproveitei e contei a história da minha vida à Vassoura, porque já estava a correr há mais de uma hora e estava aborrecida de estar calada. Pedi a um dos agentes que me deixasse acabar a corrida sentada na garupa do motociclo dele, e ele riu-se de nervos. Tudo me ocorreu, mas tudo corri e cheguei, atravessando a meta de braços vitoriosos (ainda não sei como consegui erguê-los naquele momento). Uma multidão esperava por mim para a ovação, um dos polícias tirou o capacete e disse-me que queria dar-me um abraço. Assim que o fez, segredou-me ao ouvido que nunca viu um exemplo de resiliência como o meu. Cada um dá-lhe o nome que lhe quer dar, eu acho que sou só teimosa como uma mula.


10/04/2025

Equação do coração

Cheguei ao balcão e esperei a minha vez. Percebi imediatamente que estaria demorada para chegar, pois havia apenas uma registadora para duas funcionárias, e um cliente que espalhara um rol de roupa a todo o comprimento e uma das senhoras registava peça a peça. Camisas de boa qualidade e trapos velhos. Uma toalha de banho esfarrapada em todo o rebordo, debotada ou só cansada da idade. Fiz um breve sinal com a cabeça à que iria atender-me, sussurrei, “Aquela toalha?”, ela olhou com o mesmo espanto para o pano, “Essa toalha é para quê?”. “Pra coser”, e depois um suspiro, quase um gemido infantil. Quem sou eu para julgar, se ainda guardo a minha toalha de praia do tempo que se perdeu pelos mares e muita dobrinha de carne me há-de ter secado?, quem sou eu, se ainda guardo a minha almofada do tempo da cama de grades? “Cada vez que estás doente, falas com mais sotaque. Porquê?”. Respondi por ela: “Saudades da mãe”, ela com os olhos molhados cravados nos meus, “Como é que ‘cê sabe?”, e logo um beicinho, “Faz três anos que não vejo minha mãe.”. “Fácil equação: começa a falar a língua materna cada vez que se sente fragilizada, criança de novo, a precisar de mãe”. 
“É isso mesmo, olha só…”, toda ela encolhida, de cabeça baixa, quando tive que virar costas e sair dali.

06/04/2025

Pode ter sido

por ir sozinha, sem a minha companheira destas estupendices, por estar em competições internacionais das suas danças — e já ter no papinho que eu fiz e me cheirou a bebé até que deixou de ser possível cheirá-lo, dois primeiros e um segundo prémios —, e essa ausência dela me imprimir a responsabilidade acrescida de correr pelas duas, ou por ter tomado magnésio e uma beberagem hidratante que sabia a Coca-Cola mas era doce e enjoativa como mel, ou terá sido aquele segundo café do dia que não tomo há anos e vai permitir que eu adormeça talvez depois de amanhã, ou então daquela ida à casa-de-banho fazer duas gotas de chichi, mas que me haviam convencido que iam transformar-se em dois litros, e ter estado dez minutos metida numa escada estreita com cada degrau, sua mulher, um cheiro contagioso a amoníaco das trezentas urinas já ali depositadas, mas um autoclismo corajoso e espadaúdo, gargalhadas escadas abaixo, ou se foi do cantil de dois litros que levei às costas e me dava um misterioso ar de fumadora de cachimbo de água, mas me manteve hidratada todo o caminho, não tivesse eu bebido três quartas partes do conteúdo, ou se foi da chuva, que não deu tréguas e soube tão bem, água no suor, hão-de experimentar, mas me obrigou a colocar o boné cor-de-rosa bordado com “Never give up” e o laço, porque o hijab que havia feito com a blusinha estava a permitir que a chuva me borrasse o rímel e então ia chegar à meta como um membro dos Kiss, ou se foi a gana de completar a corrida sem abrandamentos de passada larga, a verdade é que não desacelerei, não parei, e fiz o meu pior tempo de sempre, mas foi a primeira corrida feita de seguida no meu pós-guerra e pode ter sido a minha melhor corrida de toda a vida, sempre, para Sempre Mulher.


25/02/2025

Uma de nós

Começámos o programa um pouco por curiosidade e interesse em informação acerca do que nos traria a vida pós-cancro, éramos todas desconhecidas, unidas por um laço triste como são os da pouca sorte, iguais àqueles que domam à força um cavalo selvagem.

Com o passar das semanas, algumas desistiram por motivos lá delas, outras mantivemo-nos intactas, procurando, através do exercício físico, respostas para os nossos corpos retalhados e as nossas cabeças quebradas. O ambiente foi sempre cordial e, às vezes, alegre.

Mas ontem houve abraços e houve lágrimas. A uma de nós apareceu “uma coisa” num pulmão. Todas vivemos com esses dois monstros a ensombrarem-nos os dias e as noites, sejam de sol, de chuva ou de lua cheia: os pulmões e o cérebro, para onde dispara, quando prime o gatilho, o que tivemos, umas há três anos, outras há cinco, cada caso é um caso, cada organismo é um organismo. Temos estes chavões gravados com ferro em brasa nas nossas almas, agarramo-nos a eles nas horas mais aflitas e também nas mais aliviadas.

Dei comigo a dizer-lhe: “Deus é grande, não há-de permitir. O pior já nós passámos”, logo eu, que só acredito num Ser maior, que tudo pode e nem sempre nos faz a vontade, mas não me levem aos padres, que eu não fui feita para aqueles rituais sem nexo nem lógica.

Deus é grande, não há-de permitir. O pior já nós passámos.


24/02/2025

Dez dias, três borboteiras

Precisava com urgência para anteontem de uma borboteira, e então mandei vir daquela megastore da China (já sei as vossas opiniões, as quais partilho, porém também me farta pagar a multiplicar por dez pela mesma m. que posso pagar a dividir por dez), 

(aliás, aprendam comigo, que eu, injustamente, não duro para sempre: também havia mandado vir da mesma mega um par de sapatos de dança, depois recebi um mail a confirmar o envio, depois recebi outro a anunciar que o meu pagamento tinha um defeito qualquer, refiz a encomenda, acrescentei três itens à minha vontade, um dos quais os sapatos de dança e, antes de pagar, lembrei-me que a primeira encomenda já vinha a caminho, fechei a aplicação sem ter pago a segunda, e não pensei mais nisso, até ao dia em que me chegaram a casa os cinco artigos, dois pares de sapatos de dança incluídos. São tão extremamente confortáveis que só me apetece dormir com eles, e custaram doze paus — um par, porque o outro, conforme já disse, me saiu de graça e ofereci logo à que fala tanto, a ver se ela se calava. Não calou.)

porque até havia uma no lar, mas não a encontrei na balbúrdia da minha casa nem no caos de uma das arrecadações, pelo que presumo que deu o peido mestre e foi com a vara. Chegou-me uma coisa que fazia o barulho de borboteira, praticamente não tinha depósito para borbotos e era recarregável como um telemóvel, algo de inalcançavelmente evoluído. Vai que só tinha cerca de cinco minutos de autonomia, o que nem chega para a manga de um pullover, e depois era preciso esperar talvez doze horas para que a máquina se autonomizasse de novo. Como não sei falar mandarim, fui em demanda por outra. 

Chego à loja da catedral, onde normalmente sou bem servida pois fujo a sete ou oito pés da que começa por Wor e acaba em ten (nunca comprei lá nada que não viesse avariado, ou não avariasse no espaço de uma semana), acerco-me de uma funcionária cujos olhos dispararam na minha direcção um "odeio-te" muito claro, vá-se lá perceber porquê (havia de ter-lhe perguntado por uma rebarbadora para o buço, mas nunca me lembro destas piadas no momento certo), e digo: 

- Boa tarde. Ando à procura de uma borboteira.

- Boa tarde. Hã? Borboteira? — E era ver o nariz dela, ou lá o que era aquilo, alçar-se todo para cima, os dentes de cima, ou lá o que eram aquilos, todos à mostra, a chispar. Lembrou-me aquelas hienas do Rei Leão, mas eu estava em missão, não queria perder o foco. — A senhora quer dizer 'uma máquina para tirar borbotos?' [Oh, pá, está aqui uma sumidade linguística a perder-se a vender tralha eléctrica, agora percebo a revolta.] [Que nome sugeriria sua sumidade para uma máquina que só serve mesmo para tirar borbotos? "Depilaborbotos"? "Saca-bolas da lã"?] 

- Sim.

Mostrou-me duas ou três marcas, modelos todos iguais, pequenas e frágeis como eu já tive uma, que arrancam um borboto de cada vez e não os trinta mil de que cada pullover de cônjuge já padecia, além do que mordem que se fartam, à pincher, e fazem buracos na lã.

- Muito obrigada, quero daquelas grandes que parecem um ferro de engomar. Lá terei que ir à Wor ten.

E fui. Muito bem atendida, desta vez era um homem, que entendeu a palavra "borboteira", me fez a encomenda para a fábrica/ armazém e prometeu que a teria daí a três dias. Assim aconteceu, máquina maravilha, limpou duas ou três camisolas e, ao terceiro dia, descansou. Eternamente. Confirmada a minha teoria pela enésima vez, devolvi-a e recebi a quantia que despendera por ela. 

Meti-me numa loja de rua que vende quase tudo o que é eléctrico, pedi por uma borboteira, o senhor percebeu a palavra e simplesmente vendeu-me uma máquina decente, que já limpou o que faltava limpar e está ali para as curvas que as lãs também têm. 

Moral da história: nenhuma. Foram três borboteiras em dez dias. Nada má, esta média, como sempre, em mim. 


14/02/2025

Tenho um timor, senhora

Foi o que ouvi ao velho negro, quando lhe pedi mais uma obra na minha casa, que só me lembra a Casa Inacabada lá de baixo, da Expo, que as minhas duas filhas mais velhas um dia acabaram e foram expulsas do jogo, pois era suposto nunca se terminar aquela obra, como grande parte das públicas, que geram cadernos de encargos dignos de Eça, arrastamentos e deslizes de prazos de execução e orçamentos finais engordados como porcos para a matança.
Não sei por que escrevo tudo isto, quando venho apenas aqui contar que entrei em 2025 com os pés tortos, ainda por cima na ilusão de que estava a bailar uma dança sabida de cor, até de olhos fechados. Apanhei o susto destes últimos três anos, quando o médico me disse: "Tem um lipoma, se calhar vou ter que lhe cortar um bocado do intestino", isto eu ainda desacordada de um sono bom e justo (paguei-o, não é?) e sem sonhos — prefiro não os ter, desde miúda que sofro de terrores nocturnos e depois de graúda acordo cônjuge com gritos, choros ou, mais raramente, gargalhadas, no lugar dele eu já tinha mudado de quarto —, tudo o que termina em "oma" me congela de medo, eu "Ó senhor doutor...", já a pensar "Olha, queres ver? Agora são timores atrás de timores, vai um deles um destes dias e leva-me embora daqui", mais exames, mais análises, mais esperar por resultados (escutem, que eu não duro sempre: mais cruel do que qualquer exame — qualquer — é a espera pelos resultados), mais nervos, mais pensamentos com palavrões, mais preparação para mais uma cirurgia. Depois de dias intermináveis, eis que surgem relatórios de sol e luz, cirurgia desnecessária, timor benigno, gordura no intestino, conclusões à gaja: “Agora sou gorda no intestino. E se eu pedisse ao médico para me tirar o oma e, de caminho, recolocar-me a cintura de solteira, eu era a ´Vespa´ para um colega de faculdade” que, por acaso, morreu ontem. Estamos velhos. Nunca mais terei cintura de vespa, ele nunca mais coisa nenhuma. 
Vou viver com o meu timor com alegria, festa e dança, até me cansar dele. Ou ele de mim. 

20/01/2025

Ela fala tanto # 32

Infelizmente, desembezerrou.

Tinha um sinal estranho (agora acho tudo estranho em mim, menos o que é verdadeiramente estranho) (agora o sinal já não é estranho porque já fui mostrá-lo a um especialista). À saída para a consulta, disse-lhe:

- Vou agora ao médico para ele ver um sinal que tenho, que acho suspeito.

Resposta:

- Eu tenho uma nódoa negra no cotovelo que não imagina. Está roxa e preta. Foi ontem, fui bater com o braço no puxador da porta da minha cozinha, nem sei como é que lá fui dar. Foi com tanta força, que até fiquei zonza e tive que pedir ajuda. Isto também pode ser da anemia, que eu, com estas hemorragias todas, ando anémica. Por isso é que me dói tudo, é pulsos, é joelhos, é braços, é pernas. E tenho medo de cair, tenho tantas tonturas. Mas isso deve de ser derivado aos cristais. 




15/01/2025

Eu tenho problemas com médicos # 33

E com tudo # 40

Senão, vejamos: consulta semestral de oncologia. Em vez da minha médica, sou atendida por um maçarico daqueles que ainda seguram a ponta da caneta com os dedos todos. Sorridente, nervoso, deixou logo que eu dominasse a sala, o que nem sempre joga a favor de um médico. Tive a impressão que podia mandá-lo fazer o triplo mortal encarpado à retaguarda, que ele faria. Achou logo muita piada à minha falsa surpresa: “Dra. Rita, está tão mudada!”. Perguntou-me o peso e eu recusei-me a dizer. Chega de indiscrições. Levei-lhe todos os exames que fiz ultimamente, uns por auto-recriação, outros nem por isso. Gostou de tudo menos dos vómitos. Eu também não aprecio, propriamente. Disse-lhe que já não padeço desde que tomo uma cápsula em jejum. Não se ficou, mandou-me fazer dois exames, um deles extremamente invasivo. O que vale é que estarei a dormir. Pode ser que sonhe com coisas puras. Tipo “A música no coração”, sem a parte das S.S.
Depois o delfim resolve perguntar-me se tenho diarreia. Eu, apesar de me parecer que a conversa já ia a extrapolar para a intimidade indesejada, respondi: “Sr. Dr., eu estive muito tempo presa”. E ele com os olhos a pularem pelas órbitas, aposto que a traçar mentalmente o caminho para a Psiquiatria do hospital. “Não reclusa, não detida. Ainda assim, agora sou livre”. 
Volto lá qualquer dia. Espero que a minha médica já não esteja constipada [rolling eyes].
~
Fui a uma loja comprar cuecas. Agora decidi que sou alérgica aos elásticos e a tudo o que não seja algodão. Ou muito me engano, ou acabaram-se as cuecas da coboiada, sob pena de a pessoa ter que ter ao lado um frasco de Betadine. Entrei na loja onde sei que há roupa dessa sem costuras e com o tecido pretendido. Comprei umas quantas, ainda me ofereceram mais um par, e toca para casa. Na minha rua, abro a mala do carro, o saco cai-me de boca para baixo e as trezentas e cinquenta mil cuecas espalham-se pelo passeio. Devem ter-se multiplicado, porque eu metia umas no saco e espalhavam-se mais duzentas. Fora, é claro, dois sacos de víveres num braço e um saco cheio de frigideiras lá da enorme superfície, que eu, durante a batalha Linda-cuecas, nunca quis largar. Quando, finalmente, venci a coisa, passou por mim um papá com seu bebé, com um semblante extremamente preocupado e disse-me: “Bom dia”. Eu, descabelada, exausta, com cara de cueca, carregada e com a vergonha toda perdida pelas ruas da amargura, respondi: “Bom dia”. 

02/01/2025

Dormi, corri, lagartei

Passei o reveillon numa festa do maior luxo e abundância, entre peles verdadeiras de marta e arminho, perfumes daqueles que nunca mais nos saem do nariz, nem que o arranquemos, penteados armados com duas embalagens de cola laca, bâtons de tons histriónicos, gargalhadas falsas e champanhe Moët & Chandon a escorrer pelas goelas delas e deles, ou delos, ou lá como é que agora temos que dizer, senão ainda nos açoitam, ai de mim se digo que sou heterossexual, apontam-me logo a unha gigante (como é que limpam o rabo com aquelas garras?) em guinchos de "binária!", dizia eu, eram cigarrilhas, música que nunca ouvi, à meia-noite silvos de foguetes e de gente inebriada com o espelho e...

Ah, era eu de pijama e robe, aquilo tinha sido um delírio ou um pesadelo acordada, tirem-me de ambientes desses, eu bebi uma garrafa quase inteira de Champômix e fiquei logo viciada, garanto que vou tornar-me dependente daquilo, como se fosse verdade que tem mesmo maçã. Ao passar do ano, chamada via whatsapp dos filhos todos, uns longe, outros perto, mas todos fora da minha asa, gargalhadas autênticas e votos bons, de coisas doces. 

Meia-noite e trinta, a bela adormece, para só acordar ao meio-dia e meia, já do dia 1. Sento-me na cama e digo a cônjuge que vou correr. Era o prometido para o primeiro dia do ano, mas não àquela hora. Indiferente, a cidade dorme como eu até há pouco. E lá vamos, ele mais veloz, eu a meditar por que raio me meto nestas aventuras logo assim que raia o dia para mim. 

Mas corri. Estava a terminar os seis quilómetros para os quais me determinara, quando vejo, a atravessar o caminho de todos os grandes atletas como eu, uma corda muito bonita. Parei (boa desculpa) e observei. Pensei: "Oh, uma cobrinha tão comprida, mas tão magrinha!". Uma vez que a minha prioridade não era alimentá-la, mas sim salvar-lhe a vida — em claro risco, devido à velocidade a que se deslocava e à quantidade de humanos que ali passavam —, pelo que agarrei num pauzinho, a ver se ela enrolava ali a cabeça e depois eu poderia atirá-la para as relvas, ou assim. Mal lhe toco com o pau, a coisa começa a desfazer-se como um Lego mole, em pedaços de três centímetros. Só assim percebi que se tratava de uma comunidade, pelos meus cálculos com sessenta e tal elementos — não tinha menos de dois metros de comprimento — e resolvi ir-me embora, a Natureza que seguisse o seu curso e eu o meu percurso. 

Só mais tarde fui informada, de forma informal, que se tratava de uma fileira de lagartas do pinheiro, relativamente perigosas. Ainda bem que me pus à fresca. Não quero apanhar mais porras. E estava demasiado preocupada com o facto de ter dormido mais de metade do ano, até àquela hora.