Presa por um dos meus trabalhos, que anseio por que surjam e, quando acontece, entro em parafuso, acho que prego martelado e torto, ai porque não tenho tempo, ai, porque o prazo é sempre espartano, ai como é que atendo à casa, cada vez mais pequena, ou, deve ser isso, cada vez mais vazia, sempre me convenci que as casas aumentavam de tamanho quando saía uma pessoa, afinal encolhem, sai um e leva o quarto, a cadeira à mesa, os alimentos do frigorífico, as tralhas e ele mesmo, a gente a ver as paredes avançarem para nós por encolhimento do lar, não sei explicar isto muito bem, mas há um fenómeno arquitectónico quando um vai embora. Podemos falar alto, andar em pêlo pela casa, mas que vantagens tem isso, se não uso nem quero nenhuma das duas? A televisão só nossa, esta sou eu, a ver televisão.
Faço uma pequena pausa para ir almoçar, primeiro tenho que dar dois ou três suspiros de alívio, de cansaço e de desânimo, é um trabalho duro, podiam até pagar-me o meu peso (não quero falar sobre isso, a comprimidagem ofereceu-me um corpo que eu não reconheço lá muito bem) em ouro, que seria sempre mal pago. Suga-me as energias, a alegria e a vontade de me mexer, nem que seja para assoar um espirro. Vou a levantar-me da cadeira que me assa e recose e frita e salteia e estufa o rabo, e leio no canto do computador a hora, três minutos para a uma, e o dia, dezoito. De repente, acende-se um fósforo na minha memória, "dia dezoito é dia de consulta", a minha agenda são consultas, e só me dou tempo de passar das calças de ganga e t-shirt cinzenta para um vestido de cetim (ainda bem que não agarrei nenhum de lantejoulas. Ah, já sei, não tenho nenhum) e sair a voar para o consultório. Estou sem tempo, estou sem carro, estou sem almoço, mas avanço, o consultório fica a trezentos metros da minha casa, o que é um aborrecimento de saltos altos. A médica atrasa-se sempre, eu sou a primeira da lista, devia ir a assobiar e a colher flores. Em vez disso, chego oito minutos depois das treze, sento-me a respirar fundo e a readquirir-me, alinhada, concentrada no que vou dizer. Ajeito as fitas das sandálias que, entretanto, entraram em roda livre, limpo o lipgloss que tinha posto, já me está a enervar os lábios e evito o contacto visual com a funcionária do balcão, que tem dois capachos, em vez de pestanas. A médica chega praticamente às duas. Gosto daquela médica. Ouve-me, e, conforme eu vou relatando as minhas coisinhas, ergue as sobrancelhas, junta-as, carregando o olhar, descai o pescoço com a boca em linha, ou então ri-se com gosto, a ponto de ficar descontrolada e eu ter que esperar que lhe passe.