26/09/2021

26 de Setembro

Muitos, muitos anos no corpo miudinho de pele escura, apoiado na canadiana, cabelo branco como algodão, há-de ter sido por tudo isso que o encarregado da Junta lhe soprou ao ouvido que podia passar à frente na fila para votar. Outra Maria, fico sempre com as Marias, e há sempre muitas, de todas as idades, tamanhos e feitios. Não quis exercer a prioridade, e, no entanto, por não me ter visto — demasiado grande, de calças vermelhas, invisível a esse ponto —, colocou-se à minha frente, e eu permiti, em silêncio. Amarga, a mulher Maria que lhe calhou à frente, virou a cabeça penteada com rolos postos em casa, óculos de aros dourados, nariz pontiagudo e boca desaparecida na ruga da contrariedade, também ela próxima do mesmo motivo de prioridade, Tem que manter a distância de segurança, mas Maria boa — Mariazinha —, não entendeu ou não ouviu o que disse Maria má, pois as pessoas boas vivem noutro comprimento de onda e não escutam, por não captarem, o ruído, ora sicioso, ora num silvo, da maldade. Assim, deixou-se estar, encostada à muleta, a muleta apoiada à parede, enquanto Maria má, sacudindo os ombros e estalando saliva, se afastava o suficiente para não respirar o mesmo ar que a Mariazinha — tanto, mas tanto, que foi ficar quase colada a Maria neutra, que esperava vez à sua frente. 

E eu, Maria inútil, para ali fiquei, calada, desconhecendo-me, toldada de raiva e mágoa, encostada à mesma parede, sem muleta, Mariazinha, podia ser a minha mãe, podia ser a minha mãe.


2 comentários:

  1. Extraordinário texto.
    Confirma a minha necessidade de ser fiel a à tua espantosa escrita.
    Maravilhoso. Tão bem estruturado, tão bem construído, tão perfeito.
    Obrigada.

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    Respostas
    1. Obrigada, Gaffe. Muito.
      Confirma também a tua generosidade.
      Já agora, deixa-me devolver-te todos esses elogios. De alguma maneira, única.

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