22/09/2021

Às vezes, também eu vivo no limite

Rosinha, minha canoa, transmutou-se, por motivos não óbvios, mas vários, num carro partilhado do lar que acolhe estes ossos que agora aqui escrevem. Meu boi envelheceu drasticamente, talvez nem seja possível arranjar-lhe novo dono, encontrando-se apenas à espera que um meteorito venha dar-lhe paz, o que pode nunca vir a acontecer, pois está jazendo na garagem.

Depois, acontecem episódios destes: pessoa humana liga a ignição de Rosinha, toda lampeira que vai dar um giro, e lê o sinal de falta de combustível. Havia emprestado a viatura a uma das crianças durante a manhã, ou melhor, um dos consortes havia feito uso do bem comum. Quando aquele sinal se ilumina, costuma carregar lá no botão que avisa quantos quilómetros ainda pode percorrer sem ficar apeada de colete reflector vestido e ar compungido numa qualquer estrada da vida. Digamos que deu 0. Zero. Dava para, tipo, minha gente, zero. Zero mais zero, é igual a zero. Podia, em suma, ligar o motor e ficar dentro do carro estacionado, à espera que ele se desligasse naquilo a que os antigos chamavam o peido mestre. 

Raciocinando soluções, ir buscar um jerrican de gasóleo era qualquer coisa de impensável: as quatro bombas mais próximas, equidistantes, todas a mil e quinhentos metros: uma a direito, duas a subir, outra a descer. Três mil metros de saltos altos não me pareceu fazível, pelo que se está mesmo a ver qual das quatro escolhi: se tudo falhasse, era destravar Rosinha e weeeee, lá vai disto. Pois, porque empurrar a coisa, lá está, de saltos altos, nem falecida, quanto mais a vender saúde. 

Enfim, ar condicionado desligado, vidros abertos, um quilómetro e meio de rezas e algumas promessas — nomeadamente, “Apagas-te agora e nunca mais levas Evologic” —, transgressão muito bem efectuada com vista a atalhar caminho, lá levei Rosinha até à manjedoura com tranquilidade. Para ela, porque a pessoa condutora ia nuns nervos tais, que desconhece ainda hoje como é que não entrou em auto-combustão, agravada pela profusão, no local, de combustível, passe o pleonasmo.

Ainda não foi desta que estreei o colete (tamanho XXL, não acho normal. Terei que lhe fazer uns ajustes e personalizá-lo com um cinto, ou assim), nem tive que adoptar aquele semblante de vítima do infortúnio.


2 comentários:

  1. Eu empresto a minha viatura a mim própria diariamente, acontece que o meu outro eu me deixa com o sinal de falta de combustível aceso mais vezes do que seria expectável. Irrita-me a luz, a juntar à voz de "Francine" (a senhora que, até hoje macaquitos acreditam, viver no motor do carro) "carburant nível reserve, autonomie limitée", mas mesmo assim ando demasiadas no limite. É que nem a vez que nos deixei a pé e levei o maior ralhete da minha vida me serviu de lição.

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    1. Vê tu bem, eu devo ser, então, ou muito organizada, ou muito ansiosa. Mal aquilo avisa falta de combustível (como era no caso de meu Boi, que fazia um estrilho capaz de acordar mortos, Rosinha é mais discreta em termos sonoros, avisa através daquele símbolo amarelo), lá vou eu a correr pôr combustível. E nunca, nunca fiquei apeada. Nem ponho essa possibilidade, especialmente porque o colete reflector me fica malíssimo :D

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