23/09/2016

Ando a deixar rasto por aí

Por me conhecer tão bem como a mais ninguém, exactamente como as palmas das minhas mãos, ou melhor ainda, tenho o cuidado de fixar o sítio onde fica o carro, cada vez que o deixo num daqueles parques em que tudo são colunas, cores, números, pontos de encontro e sistemas de fixação do lugar através de uma máquina que nos dá o papel. Quando estou mais fora da caixa, ou longe de mim, fotografo o número do lugar (existem parques cujos lugares têm números de quatro dígitos, e vá que nunca me calha o 1111), por causa das coisas.
Deixei meu boi perfeitamente estacionado num lugar de privilégio — assim o senti —, por ser em frente do elevador, e deserta estou eu para andar a cansar as pernas para mais do que o que já canso, fui-me à selva urbana, sobrevivi com um vestido novo debaixo do braço, e foi no regresso ao parque que pensei que tinha entrado na quinta dimensão: o lugar estava lá, mas o boi não, e, pior, estava outro, no espaço onde o tinha deixado. 
Espaços escuros, e eu; espaços de paisagem uniforme e eu; espaços fechados e eu; espaços onde só passam carros e eu. Uma suadeira. Puxar pela memória? Mas como é que se puxa por uma coisa que não se tem? (E não, isto não é uma piada dessas.) Pensei em tudo: que me haviam rebocado o boi e tinham lá posto outro, só para me baralhar; que meu boi havia ganho asas e voado, como naquele filme que vi em miúda; que talvez o tivesse posto noutro sítio, e era apenas uma questão de o procurar. Corri a zona, usei o truque da chave, aprendido numa outra vez que me aconteceu coisa semelhante (obrigada, Silent, mas ainda não foi desta que resultou), até que parei diante do sítio onde tinha a absoluta certeza de o ter deixado, olhando o lugar, incrédula, furiosa, transpirada e a sentir surgir em mim aquela vulcânica vontade de fazer A birra, deitando-me para o chão a chorar, quero a minha mãe!, quando passou um segurança, num daqueles carrinhos, e desabafei, entre soluços reprimidos:
- Deixei de saber onde está o meu carro...
[Não disse "perdi o meu carro", porque não era essa a verdade.]
E ele, como uma voz do Além, como um adivinho dos bruxedos, como um profissional experiente em assuntos semelhantes ao meu, como se já me conhecesse, a mim e a meu boi (e será que não?), respondeu apenas:
- Minha senhora, a senhora deixou o carro no - 2.

(Já devo ter ficha em determinados locais.)

6 comentários:

  1. Só tu Linda. Tenho a solução perfeita para ti e o teu abandonado boi
    https://estouaqui.mai.gov.pt/Pages/Home.htm

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    1. Obrigada, Be. Não sei como não pensei nisso antes.
      Não é fácil ser eu.

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  2. O Segurança até já conhece o teu ar de pânico :P

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    1. De certeza, ou então apanha lá tanta tonta igual, que já diz sempre a mesma coisa :P

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  3. Já me aconteceu a mim, já deve ter acontecido à maioria dos mortais destrambelhados como nós. Acho que os seguranças já sabem isso...

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    1. Sabem, deve ser o pão deles de cada dia. Para nós, é a cegueira total, ou cegada...

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