18/12/2024

Eu tenho problemas com tudo # 39

Tinha um exame médico para fazer, para o qual, segundo a funcionária que me atendeu, devia ir com o intestino limpo, uma vez que, dessa forma, a senhora doutora vê melhor as imagens, sem nada que impeça. Perguntei: Blocos, calhaus?, rimos muito e desligámos. O exame não é intestinal nem estomacal, esta da tripa limpa é novidade, mas quero lá saber, façam-me o raio do coiso e não nos aborreçamos mutuamente.

Entro na farmácia, que frequento muito mais vezes do que gostaria, mas também é, e talvez por isso, um terreno meu, onde me sinto completamente em casa, verifico que estão quatro pessoas acercadas do balcão, duas são casal e já estão a ir-se embora, uma outra está a ser atendida e, num dos extremos, um senhor de idade, aparentemente à espera de alguém, enrolando em tubo um calendário de parede. Sou atendida na ponta oposta do balcão e digo a Jorge, pelo canto da boca: “Microlax, se faz favor”. Ele, exactamente da mesma forma, confirma: “Microlax?”. E eu, no mesmo tom: “Microlax. É que vou fazer um exame e tenho que levar os canos desentupidos, não sei porquê”. 

Nisto, o senhor que enrolava o calendário intromete-se no assunto e pergunta, alto e em excelente som, de modo a que se ouça, pelo menos, até à porta: “A senhora vai fazer um exame ao cocó?”. 

Considero que tenho muita sorte em ter um superpoder de improviso, encaixe, humor e abstracção, nomeadamente para o inesperado e o non sense. Primeiro gargalhei e imediatamente respondi, no mesmo tom: “Não senhor, não vou fazer um exame ao cocó”. Ana Teresa, aflitíssima, socorreu-me assim: “É para o teu filho mais novo, não é?”. “Não, é para o meu cão que, coitado, é muito preso. Não sei se é da trela ou das grades na janela”.


17/12/2024

Desculpa nunca ser Inverno

Não haverá Natal em que eu viva, que não rume à minha Sandra para, numa tentativa muito tosca, desajeitada e débil, tentar por mais e mais uma vez agradecer-lhe, faz agora três anos, ter-me rapado o cabelo, deixando para trás a família e abrindo o cabeleireiro só para mim. Foi no dia 26 de Dezembro.

Vou e ofereço muito menos do que ela merece, naquele dia um anjo da guarda recortado numa medalha de ouro, depois bijuterias com o significado que lhe quero dar, este ano uns brincos com a pedra do azul mais bonito, turquesa, pedra do signo dela do zodíaco, dizem os astros, e cujo significado os homens entendidos lhe deram como sendo “saúde”. 

Apareço sem avisar, embrulhinho cor-de-rosa na mão, digo uma tontice acerca do Pai Natal e abraçamo-nos apertado, dos olhos dela caem lágrimas iguais às daquele dia, sem som nem eco, depositam-se no meu cabelo comprido que as absorve; os meus, secos, nem um soluço, não tenho solução: hei-de ser sempre a mesma bruta, só comigo sou incapaz de me comover, tenho pavor da autocomiseração e a comiseração sufoca-me, sem dó. 

Também foi assim no dia 26 de Dezembro, há três anos.


15/11/2024

L’enfer

Existe qualquer elemento na estação de Correios da área da minha residência — pode ser o ar que lá se respira, misto de cartão, electricidade e cabelos —, que me transforma num monstro. É raríssima a vez que lá vou, não por vergonha da cena anterior, mas por saber que me vou irritar, abrir as goelas e partir a loiça toda (não literalmente, já que ali praticamente nada é de porcelana). (Há uma mulher assim no Continente, mas essa é maluca.)

Um destes dias, quis o Cão que eu tivesse ido lá deixar um envelope do meu microscópico negócio on-line. Entrei, entreguei, paguei e sumi-me. Nem parecia eu. Passada uma semana, a destinatária avisou-me que a pequena encomenda ainda não chegara. Pedi-lhe que esperássemos mais uma semana, e assim fizemos. O pacote (olarilolé, olarilolé, bailar assim sabe tão bem) não chegou, cá me meti na chanata e ala para a estação. Lá chegada, verifico que tenho cerca de vinte pessoas à frente e aquele odor a Correios tomou conta do meu nariz, das minhas unhas, dos meus dentes, dos meus cotovelos, mãos e pés. Chega uma chica, pergunta a Paula, aquela funcionária com quem já me alterquei milhares de biliões de vezes, se pode fazer só uma perguntinha, e fica lá. Ao cabo de cinco minutos, avisei a que estava ao meu lado, já divertidíssima com os meus comentários, que ia largar a bomboca, para depois ficar a ver o circo a arder. Perguntei então de que tamanho era a pergunta da freguesa, tão demorada, que me respondeu que tinha ali hora marcada. Ia falecendo a rir com a resposta absurda da criatura, mas o resto do povo ficou a pontos de linchar a mulher, que nem oportunidade de argumentar com ela me deu. Cambada de chatos, nunca dizem nada, tem sempre que ser aqui a pioneira que toma as rédeas de tudo (eu nessa casa, tudo eu). 

A funcionária que me atendeu disse que eu podia escrever uma queixa no portal lá deles. 

Para me responderem o mesmo que a senhora me está a dizer?

Sim.

Ah, penso que vou declinar.

Hoje a que me fez a encomenda comunicou-me que a recebeu, vinte e três dias depois da expedição. Esteve sem saber da chave da caixa do correio uma semana e meia (ou terão sido duas e meia?). Apetece-me fazer agressivo uso das minhas unhas, dos meus dentes, dos meus cotovelos, mãos e pés.


06/11/2024

A gata e ele

O meu menino azul, de olhos copiados do meu pai —, mas grandes, grandes —, que me olham, agora já só de vez em quando com aquela luz de deslumbramento que era plena quando no berço, começou há um par de anos a sacudir as peninhas e a abri-las em ensaio de voo, coisa que percebo pela maior escassez dos abraços primeiros, que vinham sempre depois das minhas tempestades. Disse um dia, há muitos meses, que queria ir de Erasmus, e eu atónita, como se ele ainda estivesse dependente da minha opinião, autorização ou dores muito maiores, perguntei, nunca saberei se a brincar: “A mamã pode ir contigo?”. Também nunca saberei, talvez nem ele, da seriedade da resposta: “Podes.” 

“A gata vai morrer de saudades tuas.”

Agora prepara afincadamente a candidatura para um mestrado longe de mim o suficiente para que não possa amparar-lhe alguma queda, pois imagino que sente as asas fortes e a desnecessidade das minhas mãos. Longe de casa, longe da gata. Há pouco avisou-me que vai para ficar, porque aqui não há nada.

Deita-se na cama, acabado de chegar do treino, a gata corre-lhe para cima do peito, ele afaga-lhe o dorso e ela fica num transe amoroso, a olhá-lo nos olhos, enquanto ronrona. É a imagem dele, pequenino, deitado sobre mim em êxtase perante a perfeição que já perdi. Diz ele exactamente o que penso naquele instante: “Não sei o que será desta gata quando eu me for embora.”

A gata vai morrer de saudades dele.


04/11/2024

Rabos e caudas

Tens uma coisinha branca a sair do rabo, disse-me ela assim, pouco depois do início de uma aula de alongamentos — em que uma pessoa se torce e retorce no chão, levanta perna, abre pernas, faz espargata, vira-se de rabo para cima, fica de gatas, reza a Alá, mesmo que Meca não seja para aquele lado, o povo do stretching é uma bússola, vira a raba para onde lhe dá na cabeça. Do rabo? Mas o quê? Pensava eu já que era o que realmente era, um bocado de papel higiénico, só não estava a perceber como é que tinha ido ali parar. Sobretudo, queria retirar a cauda, mas, por cambalhotas (metáfora) que desse, não a encontrava. 

A partir daí, passámos as duas a aula a rir, ela de gozo e eu de nervos, ou talvez ao contrário — visto que ela via e eu só imaginava —, muito em particular quando era suposto adoptarmos posições que envolvessem decúbito ventral. Eu vestia uma saia de paddle, que dão um jeitaço para uma pessoa se mexer à vontade, sobretudo na dança, pois têm uma cueca incorporada, esticam até caberem lá duas dentro e são de um conforto absurdo. Além disso, no meu caso em particular, não permitem que desidrate/ desmaie logo ao início da aula, pois, por conta e risco do anti-ressidivas, transpiro como um pugilista, salta-me água de todos os recantos da cabeça, braços e pernas (o resto está tapado, mas a m. é a mesma), se espirrar ou rebentar em águas ninguém dá por nada. Uma tristeza. Vejo-me obrigada a beber um litro de água durante uma aula de quarenta e cinco minutos, quando não logo a seguir mais meio litro, pois saio aos ziguezagues. Mas é preciso, como navegar. E viver também é preciso.

O assunto resolveu-se nos momentos finais da aula, quando era suposto fazermos a posição "happy baby" e eu decidi que dali não passava. Pés para cima, arranquei a fralda. 

Sou uma vítima de mim mesma. Isto explica-se assim: entre duas aulas, fui fazer chichi, mas forrei a sanita (farta de agachamentos ando eu, que aquilo queima as pernas e dói). Limpei-me como sempre, com uma toalhita, deixei-a no depósito próprio e segui caminho. Já de cauda a abanar, pelos vistos. A tal coisinha branca estava apenas presa no elástico da cueca. Podia ter sido uma vergonha inesquecível, se não tivesse sido comigo. Mas ainda fui contar ao professor e rimos até às lágrimas a propósito disso. 


30/10/2024

Ainda falta um ano para acabarem os sete de azar

A minha casa está sistematicamente em obras. Em trinta e um anos e meio já sofreu — e nós com ela — três intervenções cirúrgicas, sendo que a única que correu bem foi chefiada por um senhor que morreu entretanto. Foi precisamente nessa obra que se partiu um espelho enorme: pousado numa das varandas, levou com uma rabanada (aí o Natalinho…) de vento e fez-se em cerca de dois mil cacos. Isto ainda foi só há seis anos. Depois dessa, sofremos solidariamente outra obra o ano passado, por conta — mas à nossa conta — de dois jeitosos, que percebiam tanto de infiltrações como eu da apanha da pêra, e que nos fizeram entrar em casa sei lá se quinhentos ou mil litros de água, não fora sofrer dos nervos e teria pegado na prancha de surf do rapaz e faria a minha incursão na modalidade contra aqueles dois calhaus com olhos, “Ai sióra, isso é norrmau, já aconteceu e vai voltar a acontecerrr”, que giros.

Uma filha voltou para o lar, pois estava a morar no Bairro Azul, numa casa linda e excelente, não fora escorrer água pelas paredes e o covid que ela teve em 2021 não permitir brincar às saunas do terceiro mundo. Portanto, regressou com dez sacos daqueles que agora se usam para as compras, cheios de roupa enrolada como faz aquela anaconda das arrumações, que põe tudo em rolinhos. Fazia-me isso às minhas roupas e engolia logo um conjunto de lingerie, só para ver se gostava assim tanto de rolinhos.

Hoje acordei e fui à cozinha do lar para ver em que pé estava aquilo a que cônjuge chamou “uma inundação”, embora fosse uma gota de água a escorrer lentamente nas costas do despenseiro. Pelo caminho, por uma mínima tangente que não pisei vomitado de uma das gatas. Não sei se era essa que estava a comer da taça quando entrei na fábrica das papas. Subitamente, virou-se para o lado e vomitou. Antes de tomar banho, já tinha limpado duas vomitadelas. Na passadeira, verifiquei a presença de um ovo castanho e julguei que era chocolate. Já ia pôr-lhe a mão quando o cosmos me disse: “Lindíssima, isso é m.”. Brigadas, fico a dever-te uma, que pagarei sei lá como.

Chamei os senhores da obra do prédio, que também está em obras, para além da casa da vizinha do lado, para verem a gotinha parede abaixo e eles avisaram-me que é preciso rebentar com a parede da cozinha para mudar a canalização, uma vez que está toda podre. Lembrei-me do prédio dos meus pais, que tem cinquenta e oito anos e está ali para lavar e durar. Hoje em dia, parece que as casas são feitas com uma argamassa de areia da praia e bolacha de água e sal, que apodrecem por dentro como eu quando estou de mona.

Passei a manhã a carregar caixas de roupa para a arrecadação. Destralhei talvez vinte pares de sapatos (quatro por usar, três usados uma vez — magoaram-me, cortei logo relações), que farão a festa de amigas das minhas raparigas e, depois de triados até ao limite, da que fala que se desunha. Não posso meter stilettos nos contentores de roupa. Aquilo são autênticas armas de vazar vistas.

Depois caí no sofá a arfar. Resolvi não ir à dança porque não. Só que tentei desmarcar demasiado tarde e fiquei penalizada. Agora não posso marcar aulas durante três dias. Forniquem-se. Vou sem marcação, quero ver quem me barra as piruetas.



28/10/2024

Voo picado, aterragem sem espinhas

Como em outros semestres de há alguns anos para cá, lá me pus nas tamanquinhas (eufemismo de ténis), a caminho da Corrida Sempre Mulher. Há duas por ano: uma começa e acaba nos Restauradores, a outra é no Parque das Nações. Ambas têm o comprimento de quinhentos mil centímetros. Isto, dito assim, faz-me sentir uma iron woman, que é, no fundo, o que sou. Posso já não ter uma saúde de ferro, mas continuo a ter uns nervos de aço. Steel woman, eu. 

Tinha treinado numa das passadeiras do ginásio, mas não havia passado dos dois mil metros, e quase à custa de dopping. Não sei quem inventou as passadeiras, mas estimo que tropece naquela coisa e se enfie no rolamento, para sair qual folha de papel na próxima volta. (Lá estou eu a ver desenhos animados a mais). Quanto a mim, saía de lá suada que nem um reco, com ganas de cuspir o segundo pulmão, visto que o primeiro já mastigara e engolira. Convenci-me e conformei-me que não ia conseguir cumprir tanto milímetro que a prova exigia, mas consegui. Este post não é sobre a corrida, é sobre toda uma preparação física — da qual já falei — psicológica, [Vai, mulher, tu dá-lhe. Interessa é estares lá e não tropeçares] e emocional. Já uma vez falei aqui do estado sinuoso em que se encontram os passeios do Parque das Nações, por conta das raízes das árvores e da falta de vontade, com a desculpa do dinheiro, nhé-nhé-nhé, de os municípios se entenderem e arranjarem aquele pedi-paper de Dakar. Passaram vinte e seis anos sobre a construção, imaginando que ao fim de seis anos as raízes rebentaram com o cimento, façam lá as contas, que eu não estou capaz. Pois, está tudo na mesma. 

Mas eu ainda não ia preocupada com a crueldade do piso, pois ia apenas a dirigir-me ao ponto de partida. Calcorreava, então, a passadeira de ripas que tem as colunas que suportam os mastros das bandeiras não sei de onde, quando meu téni se encaixou na perfeição numa das imperfeições de uma ripa qualquer, tropecei olimpicamente, senti que houve ali um milionésimo centésimo de segundo em que os meus dois pés estiveram no ar em simultâneo [I believe I can fly], tudo num ralenti muito rápido, olhei para a frente e avistei de muito perto um dos postes e, pelos meus cálculos, apercebi-me de que ia marrar de frente com ele, ainda meditei [O que é que lhe dou? A testa, o nariz ou os dentes? A testa, assim como assim já cá cantam duas costuras, feitas no espaço de seis meses, de quando era uma petiza distraída], mas subitamente decidi que ia fazer do inimigo meu amiguinho, estendi os dois braços e zás, abracei-o com toda a comoção que o momento exigia. Fiquei de pé, agarrada ao poste, impecável, sem uma dor, sem uma unha lascada. Pensei em fazer uma dancinha do varão ali mesmo, mas estava apressada, tenho zero forças nos braços e, em bom rigor, sei lá eu fazer essas excentricidades.

Tenho quase a certeza de que esta grande vitória na luta entre mim e a gravidade contribuiu em muito para a pequena glória de ter ultrapassado a meta em vários minutos, mais ou menos os mesmos que fazia antes de ter adoecido. Está tudo na cabeça? Sim, e nas pernas, ide lá plantar anonas, que aquilo custa um nico. 

 

10/10/2024

Alegria de estar viva

Talvez a explicação para o estado de euforia com que entrei hoje no cabeleireiro seja a de que aquele espaço me acompanhou desde o início, através das bondosas mãos da Sandra e depois da Jaqueline, quando decidi fazer um tratamento para que o meu cabelo nascesse forte e saudável, que é só o que se deseja nos tempos que antecedem um nascimento. Reconheço que tagarelei em excesso, que ia dominada pela alegria de estar viva e poder pintar o meu cabelo, já comprido. À minha direita estava uma senhora que sorria, à minha esquerda uma outra, mais velha, a quem a minha Sandra punha quadrados de papel de alumínio e pintava com uma tinta azul. Reparei nos ténis, iguais a uns que também tenho, nas meias de compressão elástica, na saia desinteressante, na maquilhagem disparatada, nas bochechas sumidas ossos adentro. A expressão era dura e incomodada, talvez porque estava verdadeiramente contrariada com o meu excesso. Tinha insistido em ler a última Hola!, que ainda não estava disponível no cabeleireiro. E eu, num passo de mágica gaffe, disse que não percebia nada da vida daquelas gentes. Não foi com desdém, apenas quis evitar que me oferecessem revistas dessas, por considerá-las um assunto que não domino. Também não leio revistas de Física Quântica, já agora. Até que, de repente, ela me estende três dessas revistas como uma espada ameaçadora e pergunta: “Quer?”. Aquilo amedrontou-me, assim à queima-roupa. Disse que sim e sentei-as no colo. Percebi que era uma forma de me mandar calar como se faz às crianças: toma lá a chucha. 
Depois a minha Sandra falou no dia em que teve que rapar o meu cabelo. “Um dia de tempestade horrível, era mesmo um dia de pesadelo. Lembra-se do que chovia?”. Lembro-me do que chovia, a tempestade fez parte da tormenta dela. “Lembro-me do que chovia, lá fora e nos seus olhos”. “É verdade, eu a chorar e ela ali, impecável, como se nada fosse”, disse para a velha d’ A Casinha de Chocolate. Foi um amansar de expressão instantâneo. Sorriu-me. Fez-se humana. Só por causa de um cancro que nem lhe dizia respeito.
Eu, feliz, abracei Sandra, Jaqueline e Andreia, “Adeus, minha querida”, “Adeus, meu amor”, “Adeus, linda”. E saí para o ar fresco, sem chuva nem tempestades.

03/10/2024

Em primeiro lugar

Pela terceira vez voltamos a Sul já no Outono, as duas vibrantes, gloriosas e após penosa contagem decrescente, por sabermos que vamos encontrar céu e sol e mar e areia, num vestígio que lembra ainda o Verão. Deixamos para trás homens, trabalhos, casas, supermercados e ginásios, e mais tudo, notícias mundiais e mundanas, unhas impecáveis, maquilhagem e “o que é que hei-de vestir hoje?”. 

Almoçamos nos restaurantes da praia, e é ali perto que está um gato ao sol, dormindo ou o que seja que os gatos fazem quando estão deitados de olhos fechados, tamanha é a rapidez com que se levantam, totalmente despertos, quando pressentem o perigo. Diz-me ela que ele está muito magoado na cara e lá vou eu, de um salto, interrompendo a refeição que ainda não comecei. A mancha branca e laranja aninha-se ao murete do canteiro, chego-lhe perto, faço-lhe festas na testa em direcção ao nariz e ele regala-se. Digo-lhe “indecências” em gatês, abrando a mão e ele ergue a cabeça, miando. Pede mais. Dou-lhe mais uns mimos, enquanto observo as feridas: um golpe fundo na cana do nariz, vestígios de sangue seco nas pálpebras, que praticamente não o deixam abrir os olhos. Pergunto por ali de quem é o gato, “Os gatos aqui não são de ninguém”. Faço uma lista mental do que levar no dia seguinte: pomada antibiótica, mas que exige que lhe ponha também um abat-jour, sob pena de ele limpar tudo com a pata. Alguém que lhe dê uma injecção de antibiótico, mas como é que a compro? Posso dar-lha eu, porém preciso de assegurar que outra pessoa não tem a mesma ideia. Faço um cartaz a pedir um veterinário pro bono? Pode nunca aparecer. Ligo para a Câmara a pedir ajuda? Boa ideia, se não for para o enfiarem num gatil.

No dia seguinte, confirmo a presença do gato no mesmo local, mas reparo em tacinhas de comida e água à porta de uma das lojas. Pergunto à senhora que me atende se o gato é dela. É como se fosse, trata dele. Peço-lhe que o leve ao veterinário, caso contrário ele morre com a infecção. Que não, que de vez em quando são os cães, é um vidro, são as folhas secas dos cactos. Mas depois passa. Que ele está velhote, mas é muito bem tratado. Tem as vacinas em dia e tudo. 

Não posso mudar o mundo. Acerco-me do gato, ele abre os olhos e vejo um azul e um âmbar. São dois corais rodeados de sangue. Ouço a voz da minha terapeuta, “Tem que colocar-se em primeiro lugar, o seu papel de cuidadora já terminou”, e penso que não quero estar em lugar nenhum, quero apenas sarar as feridas que puder sarar.


26/09/2024

Afinal ela fala tanto

O silêncio dela durou exactamente três meses e dez dias. Hoje, enquanto fazia duas malas — visto que vou correr o país de Norte a Sul no próximo domingo, rali que leva o tiro de partida amanhã (eu sei que não há tiros nos ralis, era uma metáfora) —, encontrei o anel que procurei durante uma infinidade de meses. Aquelas situações em que às tantas já procuramos onde é impossível estar — no armário dos medicamentos, debaixo de uma cómoda que tem poucos centímetros de altura entre o chão e o início da coisa (teve que ser com uma régua de um metro e meio, que, ainda que me espalmasse contra o chão, não conseguia ver para lá de onde o sol se põe), em cima do frigorífico, dentro das minhas narinas, na gaveta dos collants, eu sei lá, menina — e nada de anel. Tinha-a avisado que o anel ia aparecer, nem que eu tivesse que meter uma retroescavadora dentro do lar e arrebentar cu parquê e cus azulejos. Sacudiu os ombros, pois andava a amarrar o bode, e eu virei-me para o lado que durmo melhor. Claro que a culpa ia morrendo solteira, como sempre, e então, “Terá sido uma das gatas?”, que são quem tem as costas mais largas do lar, tipo Schwarzenegger.
Normalmente, quando ando à pesca de alguma coisa, primeiro vejo onde sei que ela estava, depois pego num objecto com o mesmo peso e tamanho, atiro ao chão e verifico a área que ele alcança. Se não encontro, parto para os locais improváveis e só depois os prováveis. A experiência diz-me que as distracções nos levam a deixar as coisas em lugares que nem o diabo acredita. Esgotei todos e nada de anel. Encontrei-o hoje, numa bolsinha onde já tinha procurado vinte vezes. Assim que lhe disse, a mulher desatou a língua há muito presa (pouco tempo para mim, o silêncio é-me tão caro que me arruino) e contou-me a história das unhas dos pés dela, que eu já sabia de trás para a frente. Apeteceu-me dizer: “Estava a gozar, o anel continua desaparecido. Mas também posso contar a história de um furúnculo que vi uma vez numa pessoa”. Chata.

24/09/2024

O vidro desceu, o lodo escorregou, a terra tremeu, a mulher correu e não ganhou nenhuma medalha. Tem sempre que brigar com um espanhol, também

Este ano já fiz muitas férias, mas assim uma semana de cada vez. Será a vantagem de ser dona do meu (extremamente belo e bem feito, obrigada mãe, obrigada pai, aquilo na Av. Roma correu bem) (eu fui concebida na Av. Roma, n.º 40) nariz: ganha-se malíssimo, quase não dá para os alfinetes (cinco euros uma caixinha com uns vinte), mas faço a mala e ponho-me na alheta (destino de sonho) em menos de um fósforo. 

Fiz Marbella, fiz o Açor, fiz Islantilla e ainda vou estender as peles para o Algarve para a semana. Entretanto, ainda tenho um casamento lá onde a nação foi fundada. Ninguém merece, fazer no mesmo dia como passageira uma viagem de quatrocentos quilómetros e depois pegar na roda, já como condutora, e marchar para o sul, mais uns trezentos. Mas tudo pelo bem de mim. Mas alguém ainda casa? Não percebo a cena destes dois. No casamento dos pais do noivo, apanhei uma caganeira intoxicação alimentar que me meteu na cama por uma semana em plena época de exames, só a gregoriar, parecia o canto gregoriano, mas em bolçado. 

Islantilla foi giro. Não houve nada que não nos tivesse acontecido. No final da viagem, um dos vidros de trás do carro abriu e já não fechou. Eu fui, durante quinze quilómetros, a rebentar os tímpanos e a agarrar o cabelo, parecia que íamos num cabriolet. Não houve truque nem traque que movesse a m. do vidro. Ainda meti a manita naquele buraco de onde ele sai, mas só consegui fazer entrar até ao início dos dedos e não o alcancei nem com as unhas. Desistimos e fomos para a praia, deixando o carro num parque exterior. À noite, deu-me uma epifania e resolvi que devíamos tentar uma última vez algo que já havíamos tentado: motor ligado e carregar no botão da própria porta. Muito impante e cheia de mim, disse a cônjuge: "Liga o motor". E assim o vidro subiu. Senti por instantes que faço falta neste mundo. 

No dia seguinte, de novo na praia, entrámos no mar e começámos imediatamente a escorregar, como se tivéssemos uma pista de gelo debaixo dos pés, o que nos pareceu impossível. Agarrámos os ombros um do outro e começámos a rodar e a gritar: "Agarra-te!", "Agarra-me!", "Não te deixes cair, senão eu também caio!", até que, depois de uma figura viralizável em qualquer rede, saímos dali, mas cônjuge batera com o pé numa pedra (ainda bem que não caímos, caso contrário era com a minha cabeça que a pedra vinha ter) e sangrava. Dirigiu-se ao Salvador, que era um petiz para aí com dezoito anos e que, muito divertido, lhe contou que, só naquela manhã, já tinha feito seis pensos. Parece que em Espanha não há bandeirolas para delimitar zonas perigosas, põem uma criança a colar pensos nas pessoas crescidas e já está. 

Entrementes, a Terra tremeu. Era de noite, a pessoa soube imediatamente o que estava a dar-se. Disse a cônjuge, que dormia placidamente e que duvidou da minha palavra até que lhe perguntei por que raios tremia a cama, "Ah, pois é". [Suspiro profundo.]

Fomos três vezes ao ginásio e nenhuma ao spa. O máximo que corri foram dois quilómetros e não sei como não saí dali em ombros, dado que exerci um esforço demasiado tremendo. 

Para não variar, briguei com um espanhol, que, ao contrário do outro (que tinha toda a razão), tinha metade da razão. Mas nem vou contar, que isto já vai longo e eu quero almoçar. 




Descreve o teu estado de espírito ou de alma ou de fantasma, tanto faz

Ando um bocado embezerrada comigo mesma: outro dia, porque o telefonito me alertou de estar enfartado, resolvi dar-lhe espaço, como em qualquer relação saudável, e comecei pelos emails. Cliquei aleatoriamente num daqueles que toda a gente recebe, talvez Perfumes e Companhia ou outra vaidosice qualquer, onde nunca entro, dizia lá duzentos e eu vai de apagar tudo. E assim fiz com todos os que eram Temu e outras chinesices, aquilo foi apagar até me doerem os dedos, e depois, não contente com o feito, ainda fui à caixa dos apagados — que eu acho que ocupa imenso espaço, quanto mais não seja sideral — e apaguei como uma bombeira desvairada. Pum. Foi quando percebi que tinha apagado os mails dos últimos dois anos. Todos, de todas as contas: desta, do profissional, do hobby e a do de pessoa normal. O que mais me custa? A troca de mails com as minhas bloggers mais queridas, de que nem cinzas restaram, ao menos para que tentasse reconstruir este passado que, apesar de constituir os anos mais aflitos da minha vida, foi e está a ser também uma fase muito feliz. Não sou bipolar, meu povo, sou apenas a pessoa mais normal que conheço (no que a minha terapeuta concorda, portanto tenho declaração carimbada). Ter terapeuta não faz de mim anormal, simplesmente preciso, como uma perna partida precisa de ortopedista. E eu fiquei um bocado confusa quando soube que estava a correr para as portas da morte, com pensamentos do género e por esta ordem: "Ainda bem que não foi com nenhum deles"; "Que maçada, nunca poderei dar medula à minha irmã, se ela precisar"; "Que aborrecimento, nunca mais poderei dar sangue". Sou um poço, um vulcão, uma cratera de abnegação. 



07/09/2024

Ela já não fala tanto (e que Deus a conserve assim, como um pickle, muitos anos e bons)

Não sei por que diachos fui embora deste modesto espacinho e não voltei mais cedo, mas acredito piamente que hoje para aqui ando, cheia de entusiasmo a bater as teclas do meu ruidoso teclado, e sou bem fulana para me evadir e só voltar daqui a dois meses, quando tiver assunto. Não que hoje o tenha, mas preciso prementemente de registar aqui dois ou três factos da minha existência. 

Há aqui um que vai, com certeza, deslocar-me placidamente para a categoria das elitistas classistas, mas, já em minha defesa antes que venha de lá a primeira pedra, tenho a dizer que eu sou a entidade empregadora nesta relação. 

A que falava muito calou-se para sempre, isto há coisa de cerca de um mês e meio, daí que já não espere que a voz lhe regresse. Deu-se que esteve de férias duas semanas e, no dia anterior a proceder a sua rentrée, à noitinha, então não é que me manda uma mensagem a dizer-se doente há muitos dias e que não poderia trabalhar nos dias seguintes? Saltou-me logo a mola, que está sempre mal apertada, e respondi-lhe que estava farta das semanas inteiras de férias que a pessoa fazia, com prejuízo do meu trabalho, do meu descanso e, sem querer pôr um peso pesado na argumentação — que não pus —, já para não falar na minha saúde. Madame Dona Senhora ainda me devia, e deve, dois dias de trabalho, que me pediu para tratar de uns assuntos, que eu lhe concedi imediatamente sem questões (não fosse ela desatar a língua e eu, sim, ter que meter baixa enquanto entidade patronal, pois, como se sabe, ela seca-me até eu ficar em modo esqueleto), ela a insistir para tratar de uns assuntos e eu calada que nem um rato, já me cheirava a gato por todos os lados ["Queres ver que esta me vai pôr a trabalhar de graça para ela, para além de lhe fornecer duas abébias seguidas?"], nunca soube que raios de assuntos queria tratar ela, pois normalmente são rixas de bairro e eu já dei para esse peditório. Aproveitei e consultei o mapa de férias dela, ilegalíssimo porque eu não sou tida nem achada na escolha dos dias, e descobri para lá uma semana em Novembro, inteirinha, em que me iria faltar porque faz anos nessa sexta-feira. ["Ai, que maçada, tenho ao meu serviço há vinte e sete anos a rainha de Inglaterra e só hoje é que descubro? Naturalmente que Sua Majestade Venerandíssima precisa de uma semana para comemorar os seus cinquenta anos!"] Bumba, foi a talhe de foice, cortei a segunda e a terça dessa semana, para que me devolvesse então os dois dias que usou para tratar de assuntos.

Então não querem saber que Votre Majestée anda amuada comigo desde aí? E como é que eu sei? Fácil: entra de manhã, zurra "Bom dia", não responde a nada do que lhe digo, às minhas perguntas vai um "sim" ou um "não", no máximo, e suspira. E tosse. Constantemente. Quando não é uma, é outra. Mas eu tusso mais alto, literalmente: efeito secundário de uma droga com que me drogo. Mas ninguém a bate a suspirar. "Ai" quando eu passo, "haaai" quando pousa roupa passada em cima das camas (tem que se inclinar, compreendo que é chato), "haah" quando tira um tacho do armário, toda uma série de espasmos que já ponderei seguir-lhe os passos, para ver se comigo também resulta assim. 

Não é com vinagre que se apanham moscas, lá dizia o dono da "Dum-dum". E eu sou uma mosca. Chorem-me, expliquem-me o que lhes vai na dorida alma, solucem-me, funguem-se-me dos narizes, escrevam-me uma carta que me faça largar uma lágrima e cinco gargalhadas, que me levam até ao raio que já me partiu. Agora bezerras? Amuanços? Nem noto. Ando numa alegria que a endoidece. Trabalho mais e melhor, saio de casa sem alguém me perseguir até ao elevador com seus assuntos de m., já não tenho que saber quantos filhos tem cada irmã das dela e saber os nomes e datas de nascimento deles de cor (nunca consegui decorar, sei que há um Daniel e uma Daniela, mas depois é todo um sortido de Igores que uma pessoa rebolava os olhos e arredondava a saia de cada vez que ela se especava porque eu desacertava as Soraias com os Telmos). 

Chiu. O silêncio é de ouro. 


23/07/2024

Fui a um Açor

Não posso afirmar que fui aos Açores, porque aterrei numa ilha só, a Terceira, cujo nome revela inequivocamente que os nossos navegantes já sabiam contar até três. Com aquele pavor que me assiste quando a ideia é voar, pedi socorro a uma das médicas que me atura e ela recomendou dois xanaxes quando fosse para o aeroporto e outros dois quando fosse para o avião. Assim fiz, e não posso dizer que tenha corrido mal, pelo menos não tive que sacar do saco de papel para hiperventilar lá para dentro. O comissário explicou as regras de segurança caso aquilo caísse aterrasse mal, braços para os lados, braços para trás, braços para a frente, toda uma dança que me deu vontade de lhe ensinar uns passitos básicos de latinas, mas os xanaxes mantiveram-me colada à cadeira, que parecia que tinha utilizado Araldite na raba. De qualquer modo, tinha à frente as instruções do que deveria fazer caso o engenho desse em capotar, e não tinham nada a ver com o que ele estava a dizer: havia uma rampa insuflável a sair da porta e a acabar não sei aonde (no mar?), para uma pessoa se atirar, descalça, qual aquaparque. Não percebi por que é que não é obrigatório irmos todos de fato de banho por baixo das vestes, pois pode ser muito útil. Soube também que, à altitude a que uma pessoa chega dentro daquilo, se atingem temperaturas negativas ao nível do Ártico, o que me levou a lamentar mentalmente que não existisse, na composição do kit de segurança, um para-quedas, um blusão quentinho e umas luvas grossas. Era o mínimo, embora saiba que chegaria cá abaixo com a boca cheia de cieiro até ao nariz. 

Aquilo levantou logo voo, não fez como antigamente, que dava uma voltinha pelas pistas todas e depois começava a acelerar e zás. Agora levantam logo, não dão oportunidade a uma pessoa enervada de se preparar. Voou sem grandes tremuras, e as que sofreu foram avisadas pelo comandante. Por acaso, estive para lá ir protestar que o achava demasiado distraído com mensagens de voz para a cabine, em vez de tomar atenção à "estrada". Mas quem sou eu? O homem mandava-nos manter os cintos apertados, e eu, que levava uma roupa sem cinto nenhum, presumi que era aquela coisa com uma fivela indecifrável que, para apertar, tive que pedir ajuda. 

A Terceira é linda de morrer, mas eu estou viva. Não se vê uma beata no chão, um cocó de cão, um papelinho, uma folha de plátano (deve ser porque não há plátanos). Tem praias de querer ficar a morar ali para sempre, água parada, quentinha como no banho (duche de Verão, mais propriamente), zero porcarias, até me dei à maluqueira de nadar até às bóias. Depois voltei.

Vi a gruta e o algar, desci cento e setenta e tal degraus (o meu TOC põe-me a contar estas m. que não interessam nada) e a seguir tive que os subir. No último, a vontade era deitar-me no chão e fazer a minha sesta, mas aquilo era bastante húmido. 

Toda a paisagem é de cortar a respiração, mas aguentei firme e nunca me faltou o ar. Estava na terra onde existem mais vacas do que pessoas. E ainda vi crias de veado (que podiam ser vacas mascaradas), que sei perfeitamente que nenhum era o Bambi porque ele era filho único.


Ah, e acreditem ou não, abracei o fundador da nação. 

Quando voltei, consultei a médica dos xanaxes, contei como foi, disse que tinha conversado toda a viagem, e ela, estupefacta, perguntou se, com aquela dosagem (0,5 mg x 4 = 2 g) eu não tinha dormido nada. Que não, que nem uma pinga de sono. Engelhou-se toda e disse: "Para a próxima, toma seis". Ainda passo por mentirosa, já agora.


02/07/2024

Leoa negra

Cada vez que ali vou, venho de lá doente. Parece um anacronismo, só ali vou porque também eu. E, de tempos a tempos, convém espreitar se o bicho não está à espreita. Passei para as consultas semestrais, o que foi uma escalada imensa na invisível montanha que tenho para subir, algumas vezes com pedrinhas e espinhos que se espetam na minha carne para me fazerem doer a alma. Basta ter uma doença paralela — gastroenterite, como há duas semanas —, que é ali que vou. Uma espécie de oráculo que sabe tudo e tudo resolve às pessoas como eu, doentes oncológicos. Isso obriga-me a lá ir muito mais do que duas vezes por ano. Quando foi das dores de barriga, na espera daquela sala tenebrosa, encontrava-se um senhor com uma peça plástica na garganta. De minuto a minuto, emitia um som de asfixia e assoava-se por ali. Eu sou forte, já vi muitas coisas, já fui sujeita a dores inimagináveis, mas, naquele dia, enfraqueci até ao limite, disse à senhora que estava ao meu lado que ia desmaiar e agarrei a cabeça para poder baixá-la. Pus a possibilidade de bater com a cabeça no chão, mas pareceu-me que qualquer coisa era melhor do que voltar a assistir à agonia do homem. Ela deu-me um rebuçado, abençoada. 

Foi ontem a consulta semestral. Enquanto esperava, fiquei numa saleta improvisada do hall dos elevadores. Ao meu lado, estava uma enorme africana, braços largos de abraço gordo — os melhores, não é? —, pés gigantes em chinelas de borracha, trancinhas de extensão vermelhas e um vestido maravilhoso, certamente feito à medida, de florzinhas encarnadas. Apoiou os potentíssimos cotovelos na imensidão das pernas, a cabeça tombou-lhe para as mãos de festas grandes e adormeceu. Assim que o fez, ecoou pela sala, pela outra ao lado e pelo corredor um ressonar, um ressoar, um ronco de exaustão. Ao cabo de vinte minutos fez-se silêncio, parou a ressonância que já me embalava a mim também, e acordou uma cara de criança, lisa e bochechuda, que quase ia jurar já ter visto numa imagem pintada, tamanha era a obediência aos cânones de beleza dela. Levantou-se da cadeira, o quadril gigantesco a bambolear no vestidinho fino e dirigiu-se a um rapaz que eu tomei por ser marido dela, a quem tratou por filho. Ele tinha o tumor mais agressivo que já vi ao vivo: num olho, em metade da cara. Tudo tapado por uma espécie de lenço de tecido fino e uma gaze. Não percebi o nome dele, porque as enfermeiras o trataram sempre por "querido" ou "meu amor". De prender a respiração, este sinal que elas, sem querer, dão. 

A mãe, que provavelmente o deu à luz com catorze anos ou menos ainda, estivera afinal a fazer uma reza de leoa, um pedido por conta de uma aflição, uma promessa irrealizável pela sua cria. O trovão que lhe saía da garganta mais não era do que um rugido de leoa acossada.


22/05/2024

O meu percevejo

Admito que sou muito atreita: tudo vem ter comigo, ele é cães a ladrar, ele é teias dos plátanos, ele é até piolhos — foram duras, as duas vezes que me atacaram, pois passei as fases quase todas do luto, desde a negação (muito duradoura, enquanto eles picavam e eu dizia que tinha uma dermite não seborreica, como se isso existisse), até ter tido que saltar a fase da raiva e ter passado directamente para a da aceitação quando, uma noite em que dormia plácida, um deles se atreveu a passear na minha testa, oh, meu amigo, aquilo foi morte imediata para ele, e pânico sem botão onde carregar para mim. A única lição que retirei dessas duas pragas foi a de que mãe que apanha piolhos, é mãe que abraça e beija. As piolhosas são as melhores mães. 

Por razões que não interessa aqui explicar, mas há que dar umas dicas, no passado domingo fui visitar um dos meus velhinhos — já tenho muito poucos, o que significa que estou quase a tomar-lhes a vez — que tinha tido há semanas uma praga de percevejos em casa, mas coisa para afectar colchões, sofás, maples, enfim, toda a mobília com panos, cortinados incluídos. Mas tinha mesmo que lá ir: íamos buscar um carro e eram precisos dois condutores para o regresso. Além disso, acho que valeu a pena, porque consegui fazê-lo dar a maior gargalhada que algum dia lhe ouvi, quando a cadela da cuidadora, que já teve cancro da maminha e agora tem no estômago, se deitou aos pés dele e eu disse: "Deixa lá, querida, estamos as duas na mesma". 

Tinha perguntado à cuidadora se era seguro lá ir, ela que sim, que estava tudo muito limpinho, e que nem ela nem o senhor tinham picadas novas há semanas. Fui, um bocado desconfiada, lembrando-me do caos que foi em Paris, com hotéis a fechar, infestados da bicheza, o que até compreendo. Eu, se fosse hotel, também fechava, então ia arrendar quartos com animais lá dentro? Há mínimos. Mas associei o histerismo ao do papel higiénico na pandemia (e nós, fabricantes de papel higiénico, achámos o quê? Que íamos defecar sem parar enquanto estivéssemos confinados?). Sentei-me numa cadeira estofada e ali fiquei meia-hora, falando e rindo, tudo muito corriqueiro. Vai daí, saio lá de casa e sinto picos nas costas, assim como se elas fossem uma bebida com gás. Queixei-me a cônjuge, que me respondeu que "isso é psicossomático". Pois, não eram as costas dele. 

Fiz a viagem de oitenta quilómetros, pica, pica, pica, mas cheguei inteira, apenas com menos milionésimos de mililitros de sangue no corpo. No dia seguinte, as minhas costas pareciam as de um adolescente, tive mesmo vontade de ir para a praia a sentir-me jovem, sei lá. Em vez disso: lençóis de cama, resguardo e toda a roupa branca que tinha usado no dia anterior, tudo para a máquina a 60º, a roupa preta usada naquele dia, para o congelador por quatro dias (ainda lá está, vou cheirar a lombinho e a almôndegas por uns tempos), secador do cabelo no colchão, no sofá onde tinha estado, na cadeira do condutor, pomada de cortisona, anti-histamínico (que não faça dormir, senão nem um terramoto me acorda), creme para as comichões ao preço de um metro de intestino delgado, e vá lá que não me mandaram enfiar numa banheira cheia de enxofre. 

O que é certo é que não apareceu bicho nenhum, as borbulhas não alastraram e estão a secar. O meu percevejo era macho — caso contrário, ter-me-ia deixado bebés nas costas, e nada. Seria uma fêmea estéril? Nunca saberei —, pouco fiel à pessoa, mas muito à santa terrinha, o que, na essência, foi a melhor opção. Eu não poderia aturá-lo por muito tempo, acabaríamos à briga, um de nós teria que morrer e era demasiado trágico para arriscar tal cenário.

Adeus Percy*, até nunca mais.


* Percy: Significa “furar barreiras”, “perfurar cercos” ou “filho do fogo”. Inicialmente, Percy foi um sobrenome inglês toponímico, derivado de uma cidade normanda chamada Perci-en-Auge. Este era um sobrenome bastante comum entre a nobreza inglesa.

Fonte: https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/percy/

14/05/2024

Nunca ponhas palmilhas. Põe algodão, papas de sarrabulho, cuspo, o que vier. Tudo, menos palmilhas

Excelenticíssim@s Senhor@s,

Vai em cabeçalho por não poder ser em rodapé — sob pena de não me lerem o resto desta missiva, considerando-me preconceituosa (eh!) — a presente nota de cabeçalho: está com arrobas de arrobas exactamente porque assim não se distingue o género nem a tendência binária, trinária, tetranária, olhem, já ando tão perdida nas designações que inventaram para o que cada um lhe apetece, que qualquer dia nos alocam por preferências de fruta. Sei que sou heterossexual, o que, bem feitas as contas, já parece um crime afirmar, pois parece logo que sou anti-tudo o que não o seja. E gosto de dióspiros, cajus, leitãozinho da Mealhada já não quero gostar porque ai os porquinhos de leite, mas, se me dissessem que só podia comer um único alimento para o resto da vida, escolheria mesmo o amendoim, que marcha até em pasta para barrar, mas às colheradas. 

A vida continua, engordo fielmente na barriga, qualquer dia só me avio em lojas de pré-mamã. Não há problema, sou tetra-pós-mamã, que é quase o mesmo. Continuo a dançar, deixa cá ver: todos os dias, menos quinta, porque não gosto de quintas-feiras. Tenho este problema há anos: abro o roupeiro, atiro mil coisas para cima da cama, umas não me servem, as outras fazem-me parecer a mulher de Chelas, daí que acabo por, derivados ao cansaço, pôr a primeira albarda que me vem à mão depois da desarrumação. Ainda assim, sinto-me lindamente comigo mesma, devo estar a viver uma realidade paralela oferecida de bónus pela medicação. Dizia eu que danço seis vezes por semana. Ao contrário do que anuncia o Instagram nos intervalos do meu jogo, a dança não emagrece. Nem um grama. Sobretudo se, como eu, devorarem tudo o que é doce que vos passa nem que seja pela visão periférica. Ontem foi o último dia. Vou experimentar a dieta brasileira: tem fome? Bebe água e come gelo. Talvez não tão à risca, mas uma coisa equivalente, sem gordalheiras. 

A minha podóloga desencravou-me as duas unhas dos polegares dos pés, ainda consequência da quimioterapia, que já lá vai há dois anos. Achei-a óptima e, quando acho alguém óptimo, sou compelida a começar a depenar a conta bancária com essa pessoa. Ela convenceu-me (nem precisou de muitos argumentos) de que eu precisava de umas palmilhas, dado que tenho os pés chatos. Disse-lhe imediatamente que sim, paguei-lhe o equivalente a um par de sapatos (três, se forem da Temu*) e ela fez os moldes. Folguei em saber que o esquerdo é mais chato que o direito, o que me trouxe a vantagem de poder chamar "chato!" a quem me aporrinhe a paciência, com a desculpa de que estou a falar com o pé. Entretanto, ela traz-me as palmilhas já feitas, diz-me para andar com os ténis e elas por casa até à corrida que ia fazer dois dias depois, mas não me apeteceu porque estava calor, porque o pezinho de princesa gosta é de andar com os porquinhos à solta, de modos que, na manhã da corrida, vai de meter as palmilhas, duras que nem um corno, dentro do téni e do outro também, e ala para a corrida, convencida de que aquilo me ia transformar numa gazela e faria os cinco quilómetros em duas ou três pe(r)nadas, qual milagre de Natal. A dita corrida (EDP**), e eu sabia por não ser a minha primeira vez (mas foi a última) é do mais desorganizado que há: os que caminham e os que correm partem ao mesmo tempo — de modo que, ao início, não corremos, fazemos slalom entre muros de gente —, não há chip para a corrida, para controlar o tempo de cada um, o pavimento consegue ser pior do que o da Expo, com calçada solta de um metro de largura, e pedras, e areia solta, e asfalto cheio de buracos, enfim, o fim. A pessoa correu dois quilómetros, já os pés gemiam "tira-me esta m.", o meu pensamento "chatos, chatos", até que avistei o stand da Vitalis* e comecei a andar porque percebi que não iria conseguir correr mais quinhentos metros só para salvar a minha vida. Outra desorganização: paletes por abrir, velhos mal dispostos, a dar alento ao povo, só porque esticávamos a mão a pedir uma garrafinha: "Mas vão ganhar alguma coisa só por terem uma garrafa?". Fui, óbvio, a única pessoa que respondeu: "Meu avô, temos sede!", enquanto estendia a mão para a garrafa de uma senhora que já tinha conseguido a dela, não percebi se porque a confundi com uma hospedeira de eventos ou se lha ia roubar, mesmo, tal era a minha transtornação naquele momento. Os pés já gritavam que se suicidavam, bebi a água toda, mas isso não me valeu de nada. Continuei a caminhar, fiz os restantes três quilómetros ainda não sei como, mas sei que cinco — CINCO — pessoas me vieram perguntar se eu estava bem e três delas, não acreditando no meu sorriso azul-turquesa, "Estou bem, muito obrigada", deram-me garrafas de água. Entretanto, deu-se início em mim a umas dores nas costas ao nível da cauda equina, e acho que só doeu mais porque nunca na vida tinha tido dores nas costas. Atravessei a meta com a sensação de já não ter pés e de que ia passar o resto da vida a andar de gatas. Deram-me um gelado da Olá*, uma medalha de participação que pesa um boi e queriam dar mais água, mas lá estava o avô da Heidi na distribuição e eu prescindi. Faltavam trezentos e cinquenta metros para o estacionamento da Champalimaud e ainda tive que descansar a meio do percurso. Ia apoiada na minha companheirinha de sacrifícios, que tinha levado menos de meia-hora a cumprir aquela maratona para IronWoman, é pequeníssima e leve como uma pluma, imagine-se o cenário. Agradeceria uma maca, ou um gorila que me carregasse.

Conduzir foi fácil, ia sentada. Mas chegar a casa e esparramar-me no sofá, foi tão duro que, só por isso, merecia outra medalha. 

Não sei onde enfiei as palmilhas. Sei só onde gostaria de as enfiar. 

Com estima, amizade e dores, 

Linda Blue


* NMPPI

** Ninguém me paga para me calar

07/04/2024

Lançamento do livro, um dia modalidade olímpica

Pergunta-me se não me importo de a acompanhar a “uma grande chatice”. Digo logo que não, pois que chatice maior haverá do que um funeral? Estivemos há poucas semanas juntas em memória de outra amiga dela, mais nova dois ou três anos do que nós, e, se fosse o caso, ela avisar-me-ia. Além disso, eu sou pro em esperar em salas de médicos e hospitais, acho que passei as vinte e quatro horas de Lisboa nos últimos dois anos. Antes perder um dia para ganhar uns milhares do que ao contrário. Ora, quem já aguentou esperas dessas, aguenta qualquer seca. Diz-me ela que foi convidada para ir ao lançamento do livro de um ex-colega e já se negou a dois ou três eventos do mesmo tipo (no duplo sentido de homem e classe de encontros), não pode negar nem mais um.

É o primeiro livro dele, de poesia numa língua que, se calhar, nem ele próprio entende. A mim, falam-me de lançar um livro e eu faço imediatamente a imagem mental e literal da coisa, tal e qual aquelas pessoas que se põem à beira-mar a atirar um disco de plástico uma à outra, muito atléticas e compenetradas. Ou então, aquela modalidade olímpica do lançamento do disco, que eu estou mesmo a ver que um dia se faz boomerang e sai de lá um lançador sem dentes. Devo andar a ver muitos desenhos animados.

Disse-lhe que sim, ela apreensiva, pois toda a gente — essencialmente marido e filhas — lhe disse que não. Fiz finca-pé, e vou, e vou, e vou, no dia ela ainda me pôs à vontade para desistir, ai a tua saúde, ai a chuva, ai as areias vindas do sul de todos os sules, que no mapa é norte, mas eu argumentei que já estava vestida e calçada a preceito, o que constitui o argumento mais inderrotável para qualquer mulher.

Calhou-nos um fim de tarde de céu chorão e ferroso, um trânsito absurdo na cidade, lá se foi uma hora das nossas vidas para percorrer um caminho de sete milhões de milímetros. Chegámos e a sala muito composta de cabeças maioritariamente brancas, e nós, que pintamos as nossas de castanho. O auto-homenageado (soube a posteriori que ele pagou a impressão de sua jóia) surge de kilt e eu penso que é hoje que vou saber se é verdade ou não que os escoceses não usam lingerie. O homem senta-se de pernas abertas, mas o pano pregueado cai-lhe por entre elas. Portanto, fiquei na mesma, felizmente. A figura era a do professor Girassol, mas sem chapéu e ainda menos cabelo. Para nos entreter, chamaram uma rapariga muito pouco bonita, mas com um cabelo extraordinário, que foi entoar uma música celta, com uma voz tão linda como os seus cabelos, e desafinou barbaramente três ou quatro vezes. Como se aquilo tivesse uma dificuldade de física quântica. Tragam-me os Dexis!

Quando eu contava com um croquete (de espinafres), uma empadinha (idem), uma flute de champanhe (sem álcool), começou a assinatura dos livros, de que ela comprou um exemplar ao preço de quatro mil réis em moeda antiga, que eu folheei e basicamente não tinha nada lá dentro — uma folha com uma palavra, uma folha com uma poesia em escadote, uma folha com outra poesia a rimar nuvem com nuvem, uma outra cujo poema falava de liberdade e de como estamos (?) acorrentados a ela. Mas, como havia muitas palminhas e um homem gordo ainda gritou “Bravo!” com sotaque francês, quem sou eu para achar que protagonizei mais um filme de David Lynch?

Ela quis o exemplar que comprara assinado por sua sumidade, que, entre gargalhadas inoportunas, lhe pediu: “Lembre-me o seu nome”. Estou até hoje sem perceber como é que ela resistiu a lançar-lhe o livro.


22/03/2024

Intervencionada(s)

Há cerca de meia dúzia de semanas a dividir por dois, a pessoa foi a intervencionar. A radioterapia arrasou com uma das meninas e elas brigavam todo o dia. Como a paciência tem limites, resolvi acabar com o assunto, eu sou mais redonda, eu estou mais alta, tu estás mais dura, és feia, és mais baixa, um ror de insultos que marquei, fui avisada na semana anterior que era "para a semana", nada de exames e análises feitos, no dia seguinte aviei tudo numa pernada só. 

Vai daí, dou entrada. Não me lembro de estar tão bem disposta e sem uma pinga de nervos num internamento. A pobre da auxiliar insistiu em carregar a minha mala, que ainda hoje não sei o que levava lá dentro que pesava uma bigorna mais motor automóvel, a desgraçada percorreu dois corredores com aquilo na mão, mais pequena e magra do que eu, toda inclinada para o lado do monstro, mas ela quase me arrancou o peso pesado das mãos, quem sou eu para entrar em lutas físicas para a seguir carregar um boi? Deixou aquilo num quarto duplo, onde já pairava uma senhora e um biombo separava as nossas camas. Não entabulei logo conversações, pois nunca sei se me sai uma azeda ao caminho, e esperei que ela o fizesse, se quisesse. Estava já vestida com a bata cirúrgica, os chinelos e as meias de contenção. Os olhos estavam semi-cerrados, entre o Jessica Rabbit e o Marlene Dietrich. Disse-me que lhe tinham dado "uma coisinha" para acalmar e que também me iam dar a mim. Respondi-lhe que sou resistente a "isso", mas tudo bem, podiam dar-me cicuta ou cianeto, que eu tomava na mesma, desde que me acordassem com as meninas no lugar e mais pequenas, mas gémeas idênticas. 

Não perguntei, mas ter-me-ia arrependido se tivesse perguntado: "Eu vou ser operada às hemorróidas". A única parte boa da coisa foi ter logo concluído que não era com o meu médico - o senhor é um cavalheiro, não faz essas coisas - e, portanto, não me passaria à frente. 

Chega a enfermeira, daquelas pessoas que só são bonitas ao perto (ao longe, meh) com a bata e os chinelos. Perguntei pelas meias, respondeu, olhos abertos de ameaça para os meus (mal sabe ela que eu tenho tanto medo de enfermeiras como de baratas. Zero), furibunda porque se havia esquecido das meias e não queria dizer. "As meias não se põem em qualquer cirurgia". "Pois, mas eu vou pôr meias. Trago dois pares na mala (queres ver que era isso que pesava os cornos?) e, seguramente, não ponho os pés na sala de cirurgia sem elas. Já as uso desde a minha terceira cesariana e, desde lá, quer que lhe conte quantas vezes fui operada? Digo-lhe que adormece". Então explicou-me que as meias de contenção só se usam em cirurgias com duração superior a quinze minutos. Revirei os olhos mentalmente, imaginei o meu médico a tratar do meu assunto num quarto de hora, ou então aparecer ao dentista dos olhos bonitos com aquela porra enfiada nas pernas e sorri, falsa, enquanto ela ia buscar as meias e me metia um comprimido debaixo da língua. 

Não tive sono até, já no bloco, me injectarem uma poderosa droga veias afora. Antes disso, ainda me lembro de me mostrarem a touca verde, e eu sobrepor as duas mãos sobre a cara, gemendo: "Não, a touca não, por favor, não quero pôr isso, fica-me malíssimo!". Depois apaguei.

Acordei no melhor dos mundos, sem touca. Está tudo bem com as gémeas. 

12/03/2024

Botei

o voto na urna. Não foi fácil. Pelo caminho, cerca de seiscentos metros, ainda ia, já não como em tempos — a fazer undolitá — a votar mentalmente por exclusão de partes “Neste não, naquele nem pensar, no coiso era o que faltava”. Como sempre, fiquei na sala exclusiva das Marias, de Maria Eduarda a Maria Viviana. Tinha tido um cuidado desmesurado a escolher a hora para ir exercer os meus direitos, que os tenho, minha senhora, para não encontrar as caridosas do “Estás bem?”, a enterrarem os olhos nos meus, uns ares tão sérios que julgo que vão ralhar-me já, já, eu naquela, “Estou, estou bastante bem, que eu saiba”, elas logo a amolecer o olhar, “Isso é que é preciso, espírito positivo”, como quem diz, “Coitada, diz que está bem, é deixá-la viver na ilusão de que não é a primeira de nós todos a morrer”, sabem lá elas se dali a cinco minutos não vem uma betoneira desgovernada que as mistura com o cimento. Escolhi tão afincadamente a hora, que as encontrei todas, mas consegui tornar-me invisível à mais empenhada, que quis um dia tomar café comigo no pós-tratamentos e esteve todo o tempo a chorar porque havia saído recentemente de uma peritonite. 

À minha frente encontrei dezanove Marias até à curva que dava acesso à sala. Chegou a minha vez, o rapaz que presidia aquela mesa ia adormecendo a ler o meu nome (já estou habituada) e deu-me aquela folha gigantesca, onde constavam partidos dos quais nunca tinha ouvido falar, como o fálico (?) “Ergue-te!”, ou bíblico, sabe Deus (“Levanta-te e anda!”), para além de mais um ou dois, agora não sei precisar quantos desconhecia. Quase todos, vá.

Já no meu cantinho, pronta para exercer, reparo que não há ali caneta ao meu dispor. Procuro na mala, sei que é raro ter uma caneta (trauma com uma que se me rebentou dentro da mala, não quero lembrar-me; o mesmo para os pacotes de açúcar; e as saquetas de molho de soja), mas desta vez lá estava uma, triste, só e abandonada, gelada, gelada. Nos entrementes, ouvia-se o meu murmúrio, “Não há aqui caneta? Uma pessoa puxa pelo cordelinho e não vem nada na ponta. Se não tivesse uma na mala, a esta hora não votava”. Fui à mesa entregar o meu papelinho e comuniquei: “No meu cantinho não havia caneta. Senti um convite, mais, um incitamento, ao voto em branco”. Rimo-nos todos muito e depois voltei para casa, com o meu dever (não me enganei, não) cumprido.


06/03/2024

Aprendam comigo, que eu não duro sempre

Quando tu, mulher, desconfiares que algo está errado porque alguém mexe no teu corpo, é porque está. Não estás errada. Deixa-te de dúvidas, “Será que…?”, “Não pode ser…”, “Sou eu que tenho a mania”. Não, não és: os abusadores não têm escrito na testa “tarado”. Das duas vezes que fui atacada — mesmo, com perseguição e encurralamento — eram homens novos, fato e gravata, malinha de cromados.

Outra vez na fila do supermercado. Tinha ido comprar só batatinhas para assar, postas num saco de rede. De repente, sinto um toque na cauda (vá, não me obriguem a chamar rabo ao meu rabo), que deslizou um pequeníssimo instante sobre o meu vestido. O primeiro instinto foi puxar as batatinhas atrás, com a intenção de as espetar na cara do fdp. Virei-me em décimos de segundo, à espera de um rapazola da escola profissional, para se gabar aos amigos, ou um bêbado qualquer, mas deparei com um senhor, muito bem posto, que, naquele momento, muito providencialmente, mexia nas suas próprias compras. Aí é que me vieram as dúvidas, “Foi impressão minha”, “Dou-lhe com as batatas no focinho e ainda cometo uma injustiça”, etecetera e parva. Paguei, as lágrimas a quererem chegar no pior momento, como sempre, saí para o vento e admiti a mim mesma: “Não foi nada impressão tua, devias ter-lhe enfiado batatas cruas até à garganta e, simultaneamente, demonstravas naquele lugar a quantidade de palavrões que uma senhora sabe aplicar no momento certo”.

Nunca se esqueçam disto: não há impressão ou desconfiança ou dúvidas, de que alguém, sem o nosso acordo, nos está a tocar. Está. Sempre. Mesmo.

(Em casa, perguntei a uma das crianças se estava ordinária, dentro de um vestido roxo de gola camiseiro, não curto, não justo, e ela ensinou-me: “Até podias estar nua, o problema não está em ti, está nele”.)


04/03/2024

Errare

Ainda não sei porquê e admito que nunca vou saber, meti-me um destes dias no supermercado. Já na fila para pagar, lembrei-me do bolo do caco, que não constava do meu cesto. Ali o abandonei e saí da fila, “Falta-me o bolo do caco!”, por acaso a pensar por que diachos se chama bolo àquele pão — já para não escalpelizar a palavra “caco” (monco? Burrié?) — e depois se chama pão àquele bolo de ló (e “ló” porquê? Por que não “dó” ou “lá”?) Pronto, já sei: devia estudar a etimologia das palavras antes de me meter aqui. Depois voltei para a fila, e “Ai, onde é que estão as minhas coisas? O meu carrinho?”. Estive mesmo para fazer um espavento, “Fui assaltada!”, mas depois lembrei-me que os bagulhos só são meus a partir do momento em que os pago. Foi quando percebi que estava na bicha errada. Enfim, só não erra quem não faz. 

Saí dali direitinha à loja de lingerie, entrei e disse à funcionária: “Olá. Eu sou a dos sutiãs.”. Isto porquê? Porque já entabulara diversas conversações telefónicas acerca daquela peça em particular, cor, tamanho, encomenda, já chegou, vou buscar, eu guardo. A pessoa, extremamente maquilhada (verde na parte não móvel da pálpebra, muito anos ‘70), respondeu-me assim: “Eu não sou daqui, sou de Odivelas.”. Curioso — pensei, pondo a cabecita de lado, como fazem as galinhas quando estão baralhadas (amiúde) — já não é a primeira vez que esta retro me responde isto quando a abordo. Será que diz o mesmo a todas as freguesas? Para a próxima, entro na loja e digo: “Eu não sou de Odivelas, sou daqui.” Só para ver o que é que acontece. 

Deslindado o imbróglio, chegámos à conclusão que as negociações que eu havia entabulado não haviam sequer tido lugar com alguém daquele espaço comercial, mas sim de um outro, para lá da Estefânia. Tudo culpas do Google, que uma pessoa põe “loja de x no lugar y” e o destravado apresenta-nos o lugar z. Não importa, a verdade é que estava tão empenhada na aquisição que me despedi da de Odivelas e determinei-me a zarpar Rosinha, minha canoa, até para lá da Estefânia. Acerco-me da viatura e deparo-me com um idoso, dentro do carro estacionado ao lado, a ver no telemóvel mulheres sem sutiã. É o mal de darem smartphones àquela faixa etária, coitados. Depois enganam-se e vão parar ao inferno, ou ao céu, ou lá o que é.


21/01/2024

Fui à festa e, parecendo que não, diverti-me bastante

Então, lá fui ao aniversário de um dos professores de uma das danças que pratico. Tinha a morada do restaurante, mas a senhora do GPS devia estar com a cabra e, em vez de me mandar pela Av. Berlim, mandou-me por estradas nunca antes percorridas, mas o certo é que fui lá ter, orgulhosamente independente e crescida. Lá chegada, dou com mesas e mais mesas de senhoras grisalhas, pelo que pensei que me havia enganado na porta e fora parar ao octagésimo aniversário de uma anciã deste mundo. Já ia rodar os saltos quando descobri uma cara conhecida, acerquei-me e anunciei que não conhecia ali ninguém. Parece que fora ideia do aniversariante: “misturar tudo”. Ah tá bem. Fui sentar-me noutra mesa, à espera da mistura que me calhava na lotaria, que chegou praticamente em manada e a quem conhecia todos. Todos, não é bem assim: um pequeno homenzinho de cabelos pintados com tinta Robbialac branca e moldados por uma bisnaga inteira de wet gel extra firme, à prova de bala, com plastificação a quente, depois congelado a cinquenta negativos, com recurso a uma massa branca cimenteira munida de electrochoques a quem ousasse tocar naquilo, todo ele vestido de branco até aos pés, anéis, pulseiras e colares dos que se vendem nas lojas de piercings e — cereja no topo do bolo de noiva (ou Virgem Santíssima?) —, o seu perfume patchouli. Ao lado de quem é que se sentou a flausina? Pois.

Depressa concluí que era totalmente indiferente quem nos calhava perto, pois ninguém ouvia ninguém, derivados da barulheira que um senhor fazia, de violinha em punho, gritos de agonia, “Meu bem, você me deixou”, isto com a desculpa que se tratava de música ao vivo.

Uma velhota que já estava com uma cadela de todo o tamanho quando eu cheguei, veio dizer-me ao ouvido que teve uma loja que faliu e prometeu ir a pé a Fátima quando conseguisse livrar-se dela. E que estava, por isso, a angariar um grupo para a acompanhar. Olhem, ide, mas não vos esqueceis do garrafão para a organizadora, senão ela nem de Loures passa.

Também foi uma briga com a ementa, era só pratos de maminha, peito não sei de quê e salsichas. Parti para o menu das pizzas e escolhi a verde, mas sem o pimento e a cebola, que são dois alimentos que adoro do coração, simplesmente, quando comidos ao jantar, falam comigo toda a noite. E eu preciso de dormir.

Comecei a ver passar jarradas de sangria e achei oportuno, só naquela de deixar um bocadinho de mau ambiente (o proclamado “peidinho social”), avisar que só pagava o que comesse, pois também já não estou na idade de cair nessa de pagar as borracheiras dos outros. E foi o que aconteceu no fim: pizza vegetariana e 7UP, que eu agora estou do mais abstémio que existe à face. Continuo pasmada com o facto de ainda não ter sido canonizada.

Ao meu lado direito ficou uma rapariguinha e a sua mãe, que me pareceu que não falavam com ninguém, a não ser uma com a outra. À frente de ambas, uma das nossas que levou o marido (má ideia, isso nunca se faz!), que pendurou a cabeça em modo de crucificado e já só a levantou quando acabou a refeição. 

Disse à miúda: “Já viste o emplastro que me saiu ao lado?”, do que ela riu muito, passou à mãe, que também riu muito e, encorajada pelo tricot que iniciara, prossegui: “E o casal que está à vossa frente? Duas múmias. Não sei se ele chega vivo ao final da festa”. A criança não se riu, mas eu não estranhei. Passei mais tarde um nico de aflição quando percebi que os quatro não se largaram o resto da noite em amena cavaqueira. Eu sou pro neste tipo de gaffes.

Foi muito divertido, dancei muito, só com um 7UP no estômago, não houve necessidade de capirinhas, cervejas ou sangrias. Só agora percebi que não é daí que vem o swing.


18/01/2024

Macaquinhos, cada um tem os seus

Chego perto dos elevadores e ela já lá está. Acaba de abrir-se o que chamou e tem à frente, encara perifericamente comigo — creio que o pescoço não mexe — e salta para o lado, para a porta do outro elevador, em cujo botão toca freneticamente, mas que, obviamente, não vem, visto que está o outro ali mesmo, à espera que alguém se digne entrar. Digno-me eu, com um suspiro inaudível (?), e sigo. Batalha esta inglória, visto que uma e outra íamos para o segundo andar. Confesso que nem ponderei ir pelas escadas, vinha de uma aula violenta de dança e carregada de tralha. Ela, por sua vez, carregada de fantasmas, que devem pesar toneladas: casaco comprido, botas altas, gorro até aos olhos, luvas. Faz-me lembrar uma criatura que viajava diariamente comigo no metro, há cerca de dez anos. E, de repente, apercebo-me que é exactamente a mesma pessoa. É filha da mulher do saco do El Corte Inglès, anciã que habita este caixote há tantos anos como eu e, desde que o marido morreu e o filho — que morava portas com portas com os pais, e cuja mulher me odiava por estar permanentemente grávida, como se eu lhe tivesse furtado a fertilidade e o mundo fosse injusto e Deus não tivesse uma justiça distributiva — se foi, levando a mulher e o São Bernardo que tinham enjaulado num T2, nunca mais tendo dado as caras nem mais parte nenhuma do corpo, que a mulher do saco passou a usá-lo como uma mala cara de estimação. Depois de várias conjecturas mórbidas que fiz acerca do conteúdo do saco, um dia apanhei-a distraída na paragem do autocarro e fui vasculhar. Decepção: eram só jornais. Ainda tive relações de cordialidade com a pessoa até ao dia em que ela chamou parvo ao meu filho — andava ele de skate debaixo da janela dela e a filha, aquela calmeirona para mais de trintas (ou oitentas?) queria dormir a sesta —, que nunca mais me viu a dentadura à mostra.

Portanto, a filha é assim desde muito antes do covid: deve ter a panca dos ácaros, das bactérias, dos vírus, do diabo a quatro patas. Anda por aí muita gripe A e também a outra sem direito a letra, tudo tosse, tudo funga, tudo se desfaz em ranho e eu, por uma vez, passo sambando na cara das inimigas. Também tenho meus macaquinhos no sótão, mas até acho que estou coberta de razões. Quando a outra pulou para o elevador do lado, pensei, hipocondriacamente: “Será que esta já sabe e, como é avariada da marmita, julga que isto se pega?”. Mas depois sosseguei a vítima que há em mim, com “Hah, ela faz isto com toda a gente. Eu, tal como os outros, temos a carraça, a lepra, o dengue, o E. Coli e a malária, tudo junto.”

É que nem imagina que eu tenho mais motivos para me proteger dela do que ela de mim.

04/01/2024

Post com dois assuntos cientificamente relevantes

Tenho um clube de formigas extremamente pequenas no lar. Deslocam-se em carreiros, desconheço onde é o formigueiro, mas já salvei a vida a umas dezenas delas. É que se afogam numa gota de água, apesar de terem uma resistência louvável. (Nem sei se têm pulmões, mas devem ter.) Ontem estava a beber água por um copo, espreito lá para dentro e vejo uma delas, muito sossegadinha, muito quietinha. Considerei preferível verificar se morta, se viva, mas a fulana não me agarrava o dedo, para que eu pudesse colocá-la numa folha de papel de cozinha e devolvê-la às manas. Peguei então numa colher e retirei-a do oceano. Pensei mesmo que estivesse morta, porque continuou inerte. Quando a ia passar para o papel, vi mexer uma patita, mas ela não largava a colher molhada. Insisti na manobra e deve ter sido aí que a torci um bocado, pois aterrou no papel toda torta e baralhada. Também podia estar em pré-afogamento, coitada. Destorceu-se, endireitou-se e lá seguiu caminho toda manca, à procura das outras. E bebi a água, sim, que a vida não está para finuras.

Mas não era a isto que eu vinha, embora o tema formigas ainda não esteja esgotado. Fica para o último parágrafo.

Hoje entrei na quinta dimensão. Estava a cozer uns lombos de pescada na Biby — que ela coze pessimamente — e na receita mandava guardar a água da cozedura para depois a misturar com uma poção qualquer que já estava em preparação no meu caldeirão. Pus um coiso de palha por baixo do jarro e vai de verter o precioso líquido lá para dentro. Quando chegou à última gota, pás!, explodiu como que dinamitado. Pensando bem, acho que implodiu. Sei que era vidros por todo o chão da cozinha que chegavam ao corredor. E meio litro de água perfumada de peixe, que se transformou em cinco litros, pois era a minha calça, o meu pé e respectiva chinela (desculpem, mas tenho que acabar com este mito rural: eu sou como as outras pessoas. Ou pior), era o chão, era toda a bancada e a derramar-se para dentro das gavetas e armários. Valeu-me minha Sandra que, quando faço uma refeição em vez dela, até se lambe, parece que ainda tem maior ensejo para dar à matraca. Lado bom: ninguém se magoou, nem sequer com aqueles vidrinhos do tamanho da minha formiga (é assim que o cosmos me agradece) e também, menos um mono.

De vez em quando sinto um bichinho a passear pela minha testa, junto à raiz do cabelo. Depois desce, passa-me pelo nariz a atira-se em bungee jumping para o meu ombro. Há dias percebi que era uma formiga das minhas, se calhar veio agradecer-me ter salvo a coxa.

Hoje estava nas minhas danças e lá sinto outra vez um bicho pequeno a percorrer a minha raiz do cabelo. Sacudi com cuidado, para não assustar o animal nem o lesar e disse para a que estava atrás de mim: “Tenho formigas na cabeça”, que há-de ter sido a frase mais esquizofrénica que proferi na vida. Ela desesperadamente a tentar disfarçar o seu incómodo, “Pode ser algum champô que estás a usar”, mas eram de aflição os olhos dela quando eu esclareci: “Tenho imensas formigas em casa, nunca tinha visto umas tão pequeninas e, de vez em quando, uma ou outra vem passear na minha cabeça.”