Pela terceira vez voltamos a Sul já no Outono, as duas vibrantes, gloriosas e após penosa contagem decrescente, por sabermos que vamos encontrar céu e sol e mar e areia, num vestígio que lembra ainda o Verão. Deixamos para trás homens, trabalhos, casas, supermercados e ginásios, e mais tudo, notícias mundiais e mundanas, unhas impecáveis, maquilhagem e “o que é que hei-de vestir hoje?”.
Almoçamos nos restaurantes da praia, e é ali perto que está um gato ao sol, dormindo ou o que seja que os gatos fazem quando estão deitados de olhos fechados, tamanha é a rapidez com que se levantam, totalmente despertos, quando pressentem o perigo. Diz-me ela que ele está muito magoado na cara e lá vou eu, de um salto, interrompendo a refeição que ainda não comecei. A mancha branca e laranja aninha-se ao murete do canteiro, chego-lhe perto, faço-lhe festas na testa em direcção ao nariz e ele regala-se. Digo-lhe “indecências” em gatês, abrando a mão e ele ergue a cabeça, miando. Pede mais. Dou-lhe mais uns mimos, enquanto observo as feridas: um golpe fundo na cana do nariz, vestígios de sangue seco nas pálpebras, que praticamente não o deixam abrir os olhos. Pergunto por ali de quem é o gato, “Os gatos aqui não são de ninguém”. Faço uma lista mental do que levar no dia seguinte: pomada antibiótica, mas que exige que lhe ponha também um abat-jour, sob pena de ele limpar tudo com a pata. Alguém que lhe dê uma injecção de antibiótico, mas como é que a compro? Posso dar-lha eu, porém preciso de assegurar que outra pessoa não tem a mesma ideia. Faço um cartaz a pedir um veterinário pro bono? Pode nunca aparecer. Ligo para a Câmara a pedir ajuda? Boa ideia, se não for para o enfiarem num gatil.
No dia seguinte, confirmo a presença do gato no mesmo local, mas reparo em tacinhas de comida e água à porta de uma das lojas. Pergunto à senhora que me atende se o gato é dela. É como se fosse, trata dele. Peço-lhe que o leve ao veterinário, caso contrário ele morre com a infecção. Que não, que de vez em quando são os cães, é um vidro, são as folhas secas dos cactos. Mas depois passa. Que ele está velhote, mas é muito bem tratado. Tem as vacinas em dia e tudo.
Não posso mudar o mundo. Acerco-me do gato, ele abre os olhos e vejo um azul e um âmbar. São dois corais rodeados de sangue. Ouço a voz da minha terapeuta, “Tem que colocar-se em primeiro lugar, o seu papel de cuidadora já terminou”, e penso que não quero estar em lugar nenhum, quero apenas sarar as feridas que puder sarar.