Não sei por que diachos fui embora deste modesto espacinho e não voltei mais cedo, mas acredito piamente que hoje para aqui ando, cheia de entusiasmo a bater as teclas do meu ruidoso teclado, e sou bem fulana para me evadir e só voltar daqui a dois meses, quando tiver assunto. Não que hoje o tenha, mas preciso prementemente de registar aqui dois ou três factos da minha existência.
Há aqui um que vai, com certeza, deslocar-me placidamente para a categoria das elitistas classistas, mas, já em minha defesa antes que venha de lá a primeira pedra, tenho a dizer que eu sou a entidade empregadora nesta relação.
A que falava muito calou-se para sempre, isto há coisa de cerca de um mês e meio, daí que já não espere que a voz lhe regresse. Deu-se que esteve de férias duas semanas e, no dia anterior a proceder a sua rentrée, à noitinha, então não é que me manda uma mensagem a dizer-se doente há muitos dias e que não poderia trabalhar nos dias seguintes? Saltou-me logo a mola, que está sempre mal apertada, e respondi-lhe que estava farta das semanas inteiras de férias que a pessoa fazia, com prejuízo do meu trabalho, do meu descanso e, sem querer pôr um peso pesado na argumentação — que não pus —, já para não falar na minha saúde. Madame Dona Senhora ainda me devia, e deve, dois dias de trabalho, que me pediu para tratar de uns assuntos, que eu lhe concedi imediatamente sem questões (não fosse ela desatar a língua e eu, sim, ter que meter baixa enquanto entidade patronal, pois, como se sabe, ela seca-me até eu ficar em modo esqueleto), ela a insistir para tratar de uns assuntos e eu calada que nem um rato, já me cheirava a gato por todos os lados ["Queres ver que esta me vai pôr a trabalhar de graça para ela, para além de lhe fornecer duas abébias seguidas?"], nunca soube que raios de assuntos queria tratar ela, pois normalmente são rixas de bairro e eu já dei para esse peditório. Aproveitei e consultei o mapa de férias dela, ilegalíssimo porque eu não sou tida nem achada na escolha dos dias, e descobri para lá uma semana em Novembro, inteirinha, em que me iria faltar porque faz anos nessa sexta-feira. ["Ai, que maçada, tenho ao meu serviço há vinte e sete anos a rainha de Inglaterra e só hoje é que descubro? Naturalmente que Sua Majestade Venerandíssima precisa de uma semana para comemorar os seus cinquenta anos!"] Bumba, foi a talhe de foice, cortei a segunda e a terça dessa semana, para que me devolvesse então os dois dias que usou para tratar de assuntos.
Então não querem saber que Votre Majestée anda amuada comigo desde aí? E como é que eu sei? Fácil: entra de manhã, zurra "Bom dia", não responde a nada do que lhe digo, às minhas perguntas vai um "sim" ou um "não", no máximo, e suspira. E tosse. Constantemente. Quando não é uma, é outra. Mas eu tusso mais alto, literalmente: efeito secundário de uma droga com que me drogo. Mas ninguém a bate a suspirar. "Ai" quando eu passo, "haaai" quando pousa roupa passada em cima das camas (tem que se inclinar, compreendo que é chato), "haah" quando tira um tacho do armário, toda uma série de espasmos que já ponderei seguir-lhe os passos, para ver se comigo também resulta assim.
Não é com vinagre que se apanham moscas, lá dizia o dono da "Dum-dum". E eu sou uma mosca. Chorem-me, expliquem-me o que lhes vai na dorida alma, solucem-me, funguem-se-me dos narizes, escrevam-me uma carta que me faça largar uma lágrima e cinco gargalhadas, que me levam até ao raio que já me partiu. Agora bezerras? Amuanços? Nem noto. Ando numa alegria que a endoidece. Trabalho mais e melhor, saio de casa sem alguém me perseguir até ao elevador com seus assuntos de m., já não tenho que saber quantos filhos tem cada irmã das dela e saber os nomes e datas de nascimento deles de cor (nunca consegui decorar, sei que há um Daniel e uma Daniela, mas depois é todo um sortido de Igores que uma pessoa rebolava os olhos e arredondava a saia de cada vez que ela se especava porque eu desacertava as Soraias com os Telmos).
Chiu. O silêncio é de ouro.