01/10/2021

Mudança cosmética

Alta madrugada, levanto-me da cama, faço o que tenho a fazer para o copo esterilizado, guardo-o no plástico da embalagem, depois na caixa, ponho num saco opaco, visto umas calças de ganga e camiseiro branco, calço umas sabrinas e ala para a rua, ainda o dia é apenas um recém-nascido de bem com a vida, satisfeito e apaziguado. Percorro cem metros e chego ao centro de análises, onde já estão duas pessoas: uma mulher, que pousou o boião da urina no balcão de atendimento, envolto num plástico com uma quantidade tal de fita adesiva, que antevejo a necessidade de utilização de uma motosserra para descartar semelhante embalamento; e um homem, cujo frasco para análise há-de ter contido em tempos o pó de cevada, chicória e centeio do pequeno-almoço de uma família inteira, imagem que me põe a especular por que diabos as detentoras de anatomia que mais complica a urinação para um micro-copo, são precisamente as que cumprem a função, ao passo que aqueles que podiam urinar para uma carica à distância de três metros, o fazem para um jerrican de vidro.

Enquanto a funcionária processa os meus dados — mais uma incrédula perante o nome que consta do meu cartão de beneficiária do seguro, nada menos do que o da zebra do filme infantil “Madagáscar”, não adianta escondê-lo: procurai por Maria Marti, e achais-me —, entra uma rapariguinha apavorada, com o potezinho do chichi na mão, o líquido orgânico visível à transparência. Lembro-me de ter a idade dela e de as agulhas me causarem um frio na barriga, que se estendia pelo corpo e ficava alojado impiedosamente nas extremidades todas. Depois tive filhos.

Duas horas volvidas, regresso ao mesmo local por me ter esquecido de (mais) um papel, nesta que deveria ser a época da informatização. Levo já o pequeno-almoço e o banho tomados, a maquilhagem pregada à cara, o vestido de ganga da minha predilecção e umas sandálias de salto. A mesma funcionária que me atendeu antes não me reconhece. Aponto para as pestanas, agora com o dobro do tamanho, e digo-lhe: “Eu sou a outra que aqui esteve há bocado, ou melhor, eu sou eu, mas em edição revista e melhorada”.

A camuflagem cosmética, como qualquer outra, permite-nos sermos duas, criando um trompe l’oeil (não traduzível aqui para “ilusão de óptica”, pardon mon portugais) aos outros e, sobretudo, a nós mesmas. É um crime perfeito, sem castigo, cometido sucessivamente ao longo de anos.


2 comentários:

  1. Como eu gostava de me duplicar assim, mas não sei, sou uma naba com maquilhagem e saltos.
    ~CC~

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    1. É uma questão de hábito, ~CC~. Já faço isto há tantos anos (acho que desde o 12º), que quase posso fazê-lo de olhos fechados :)

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