17/10/2021

A vizinha lá do fundo

é — ou foi — actriz das telenovelas, designadamente aquela dos morangos sem chantilly, pormenor do qual muito me confrange lembrar, uma vez que, quando se mudou para o caixote com telhado comum que passou a partilhar com a gente, deslocou-se propositadamente à minha porta com o intuito de se apresentar, e era ela de olhos esbugalhados e eu sem perceber o motivo de tanto escancaranço, tendo compreendido mais tarde que a explicação era apenas que aqui a xanxa não sabia quem era a vedeta. Não pude — nem posso agora — explicar-lhe que não assisto a semelhantes enredos radiotelevisivos, pois despendo as minhas horas livres com outro telelixo, uns furos abaixo daquele que a vizinha protagonizou. Também não guardo mágoa desse episódio, já que ela se fartou de me mentir, por exemplo quando disse ser mãe de três, quando afinal é de apenas dois (o terceiro é do companheiro e saiu de outra barriga, ou seja, matematicamente, a pessoa estava a considerar os meus, os teus e os nossos, dado que um dos dela também não saiu daquele peny com o qual coabita), claramente a tentar medir pilas comigo, só porque eu sou mãe de quatro (chiu, respeito).

Acontece que esta mamã de todos deixa sacos de cinquenta litros cheios de fraldas de cocó — que eu presumo pertencerem ao mais novo, com coisa de três anos e cerca de um metro e trinta e quatro de altura — na conduta do lixo, que fica exactamente junto à porta cá do lar, algo longínqua da dela, já que habita nos fundilhos do patamar. Portanto, a enorme cria defeca, imagino que tarolos olímpicos, ela guarda aquilo uns dias dentro de casa, e depois vem despejar sacos cheios de calhaus putrefeitos à minha porta. 

Ora, vamos lá a ver: a conduta destina-se apenas a lixo reciclável. Todo o restante deve ser metido cano abaixo, lá naquela portinhola fedorenta. Então, a vizinha, de duas, uma: ou considera a possibilidade de as fraldas do seu pimpolhão serem recicladas (para adubo de plantações de cápsulas de café), ou teme que os sacos entupam a conduta comum. A mim, deixa-me de mãos e pés atados, não me restando alternativa senão enfiar eu mesma cada saco cano abaixo, se não quiser ter meu lar a feder a ETAR. Porque devolvê-los para a porta dela seria a solução para este imbróglio, só que, lá está, eu sou uma senhora, não faço essas coisas. Mais depressa lhe deixo um bacio à porta, a ver se incentivo o desfralde à criança. Que já virá tarde, ainda assim.


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