13/04/2020

primogénita

Nasceu em primeiro lugar, quem sabe se por acaso ou então por haver desígnios. Chegou pequenina, uma “amostra de gente” que se manteve assim mesmo até hoje - e até sempre, disso já terei certamente uma certeza. Em tanto me traz a minha mãe de volta, no tanto de melhor que tinha, até nisso do tamanho em altura e leveza, ambas medíveis com pouco mais de meia-dúzia de palmos, impossível medir-me eu aos palmos com qualquer das duas. Eu sempre demasiado grande perto de uma e de outra, infinitamente pequena se com elas comparada. Tantas vezes invertemos os papéis, sobretudo quando o horizonte se estreitou e os amanhãs da minha mãe foram deixando de existir. Deve ser isso o envelhecimento, essa troca inadvertida, suave e natural, em que um dia somos filhos dos nossos filhos, numa eterna dança que eles também dançarão um dia com os filhos deles. Talvez por isso mesmo, nestes dias de tempestade, em que as boas notícias tardam em chegar e são raras como milagres, quantas vezes ao pedir-lhe numa lamúria quase infantil, "Dá-me os números bons", foi ela, pequenina, os olhos enormes que perscrutam este Mundo inteiro e ainda o outro que é só dela, as duas mãozinhas agarradas aos meus braços, tão séria, tão mamã, "Hoje tivemos uma taxa de aumento de quatro por cento". Acredito fervorosamente que aqueles olhos enormes e aquelas duas mãos pequeninas interferem, lá naquele outro planeta que ela também habita, nalguma fórmula secreta de inversão da tal tendência, pois todos os dias, protectora, cheia de candura, toda ela feliz, me vem trazer os números bons.

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