05/03/2019

"Vamos para casa, menina"

Faz hoje dez anos que nasceu a minha Mia. Sei a data com precisão porque a dona da mãe mo disse, quando a fui buscar, com vinte e quatro dias de vida. Foi um absurdo, que reconheci quase imediatamente, tê-la trazido tão pequenina, mas ela não morava aqui ao lado, teríamos de voltar dali a duas semanas, tudo parecia conjugar-se para que eu tivesse tomado a decisão por outras cinco pessoas indecisas, pegando-lhe e segurando-a junto ao peito, "Vamos para casa, menina". E assim veio, minúscula, perdida, mal sabendo andar, tomando biberon de três em três horas, quando não menos espaçados. 
Culpa minha, ou porque seria sempre assim, nunca a senti feliz, nunca lhe vi uma atitude de alegria ou gozo pleno de bem-estar, como vi nas outras duas gatas que, uma, tivemos, outra, temos. Desconfiada, agressiva, ressentida, muito em particular nos primeiros anos. Escolheu uma humana para ela, de entre as minhas três filhas, apesar de, com o passar do tempo (e a esterilização?) ter amansado gradualmente, até se ter tornado uma senhora, com toda a altivez, independência e sobriedade que isso implica. Hoje já não trepa para o topo dos armários, não se recosta a dormir na parte mais alta dos roupeiros, junto ao tecto, não caminha pelos varões dos cortinados ou pela parte superior das portas, naquela elegância ímpar da magríssima jovem ginasta da trave olímpica. Reveza os seus dias entre o pequeno caixote de papelão da sua eleição, contendo uma manta macia, e suficientemente perto de um radiador, as suas idas à casa-de-banho, às taças e a uma torneira específica da casa, única por onde bebe, algumas incursões pelos cantos da casa, especialmente se banhados por sombras, a janela maior, a cama da humana eleita e várias perseguições à Molly, que pesa, seguramente, o dobro e tem menos de um terço da idade dela.
Sabemo-la doente, com a vida a prémio, em contagem decrescente. Mas não é essa a realidade efectiva de todos nós, mesmo que saudáveis? Não tem qualquer sinal de mal-estar, o último caroço não cresceu nem mudou de configuração, a patinha não inchou, ela não coxeia, não se mostra incomodada nem dorida. Tem dez anos, são cinquenta e seis em humanos. Percebo-lhe os enfados, as faltas de paciência, os dias de morrinha, por me perceber a mim própria quase assim. Não é uma desistência, é uma espécie de desvontade. 
Quero para ela o que lhe desejei hoje, ao enchê-la de festas e beijos na cabeça: "Só mais dez, por favor, por favor, por favor!". 

créditos para uma das minhas crianças, a humana da Mia

4 comentários:

  1. Um dia, o dia do desenlace chega, e embora saibamos que assim tem de ser, é do caraças senhores ouvintes, dói muito. Não sou fã de gatos, sou mais cães e têm de ser granditos, não gosto de cães de bolso. Tenho uma labrador retriever, linda de morrer que, espero dure uns anitos valentes.

    Mas, essa gata é das duras, vai durar bué d'anos eheheheh

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    1. É certo, noname, basta estarmos vivos...
      Eu também adoro cães, mas neste momento seria impossível ter um. De qualquer maneira, não sei se aguento mais desenlaces, para além dos das duas gatas que ainda tenho em casa. Depois delas, não sei se quererei mais animais.

      Espero bem que sim, que dure, a dura. Mas com a qualidade que tem hoje :)

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  2. Parabéns Mia, Menina Gata!
    Hoje é dia de festa e nao vale a pena pensar em mais nada. Todos, homens e gatos , somos finitos .

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    1. Claro que não, Ana, e claro que sim!
      Obrigada :)
      (Só hoje me chegou o teu comentário, e tive que o ir buscar ao feed...)

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