29/03/2019

magro, seco, bronzeado

Podia ficar dias a fio no átrio das chegadas do aeroporto - mais rico, talvez, em histórias ricas do que o das partidas -, que teria, dessa forma, sempre o que contar, assuntos sobre os quais escrever. 

Ela era alta, corpulenta, e imaginei que apenas por esse motivo calçasse sabrinas, uma vez que destoavam no vestido de corte clássico, apesar de largo, folgado, camuflante. Dava por ali passos miúdos, inquietos, incapazes de sossegar. Sob o vestido vermelho revelavam-se-lhe palpitações de sangue quente, descontrolado, numa espera de quem desespera sem saber se alcança. Ele chegou no avião que veio de África, desceu a rampa trazendo apenas uma mala de cabine a rolar pelo chão - denunciando uma curta estadia por lá ou por cá -, e era magro, seco, bronzeado do sol. Aproximaram-se em silêncio, e nesse silêncio proferiram uma palavra muda cada um, talvez olá, chegaram-se os lábios e tocaram-nos ao de leve. Ela um pouco maior do que ele - talvez por isso o calçado tão raso -, maior também em opulência e palpitações de espera, fez menção de o abraçar de saudades, mas ele era todo magreza, secura e bronze: permitiu os braços dela em torno, o nariz dela no pescoço, sei lá que lamentos, alívios ou promessas ao ouvido, e permaneceu estático, um braço na asa da mala, o outro nas asas da falta de paixão. E lá seguiram, lado a lado, como dois ocasionais, ela em tudo muito maior do que ele.



LB's challenge rumo aos 3000 chouriços em 6 anos
#done

4 comentários:

  1. Eis a perfeição na escrita. Como é possível contar uma história destas de forma tão visível, tão imensa?!

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    1. Que exagero tão lisonjeiro, Gaffe. Mas muito obrigada.
      Sabes, há poucos dias estava a ler o teu post do "homossexualismo" e a pensar, precisamente, que uma ironia tão fina também tem que partir de um punho cirurgicamente preciso!

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  2. Não sei se a ironia é fina, mas o punho tem mesmo de ser certeiro. É um caso em que a ironia pode não matar que não importa, mas o punho...
    Acredita que não exagero. É surpreendente a tua escrita. Passo do riso à comoção muito facilmente aqui. Obrigada. Admiro-te imenso.

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    1. Fico mesmo sem saber o que responder, Gaffe. Tu és uma das minhas bloggers eleitas (e são tão poucos), isso assim, vindo de ti, é ainda um prémio mais saboroso. Obrigada, muito.

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