09/03/2016

Irremediáveis decisões irrevogáveis

Vocês, não sei, mas eu lembro-me claramente de me estar a desdobrar de ser unicelular para duas e depois quatro, e foi esse o momento em que decidi ser mulher. Não é que já tivesse cérebro, que esse acho que veio mais tarde. Ainda estava para lá mergulhada no quentinho do meu pai e da minha mãe, sentia-me assim um pouco vitoriosa por ter sido eu a conseguir atingir o alvo, deixando os outros cabeçudos todos para trás — num ooooh colectivo de estádio ao rubro, ao verde-lima, quando a equipa falha um golo de baliza aberta —, andava naquele desespero escorregadio, a tentar agarrar-me às paredes, como se disso dependesse a minha vida (porque dependia mesmo), depois espreitei cá para fora, através da linda e transparente pele da minha mãe, vi e ouvi o que não queria, apesar de ainda não ter as orelhas feitas, já para não falar dos olhos  (seria um grande feito e ligeiramente estranho, um desdobramento celular com orelhas ou com olhos), e decidi: fêmea. Então, embrionária, mergulhei em águas de rosa.
Ser fêmea pareceu-me mais fácil, à partida, que era onde me encontrava (isto, se não contarmos com a corrida desenfreada com os cabeçudos. Mas, nessa, ainda não era eu-eu, era só eu): não teria que ir à tropa (nem à guerra), não teria que fazer a barba todos os dias, nem ser valente, nem nunca chorar, não teria que me casar com uma mulher (perspectiva que me parecia uma verdadeira tormenta), podia ter filhos dentro da barriga, (quase) tudo me seria perdoado e a maior parte dos esforços poupados. 
Não sabia dos gritos e das injustiças. Nem da falta de flores. 
(Vá que não gosto de receber flores.)

(Ainda assim, ser mulher é para aí a melhor coisa do mundo, logo a seguir a ser pessoa. Mas só quando se nasce num mundo ocidental mais ou menos civilizado, com o corpo inteiro e a cabeça no lugar. Tivesse eu nascido no Afeganistão ou na Arábia Saudita e, provavelmente, no momento do desdobramento e da decisão, teria mergulhado em águas azuis.)

(Nunca me arrependi, nem por um segundo.)

4 comentários:

  1. Gosto de ser mulher. Muito.

    Beijocas, Lindinha azul :)

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    1. Eu também, mesmo muito. Nem me vejo com outra casaca.

      Beijos, Maria Poesia :)

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  2. Apetece-me dizer um monte de coisas, vou só dizer que gosto muito!
    Beijo sem flores

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