01/03/2016

Ela fala tanto # 7

Chega-me cá ao lar, num enfado, num sacrifício, num arrastão de lamúrias e penas pesadas que se vê no corpo, em toda a postura, na cara chapado um hoje-é-segunda-feira-não-me-chateies. 
(Já tive uma que, cada vez que faltava ou se atrasava cerca de duas horas, entrava e dizia "Não me diga nada!". E eu não dizia, que ela vinha encabrestada e já tinha estado internada no Júlio de Matos. E eu respeito isso.)
Tosse. Tosse, uma tossica seca, repetida, antiga, permanente, constante — há meses. Aquela mesma tosse que os bebés, ainda no berço, também usam, para chamar a atenção. Mas acontece que a mim não me apetece dar-lhe atenção. Tenho a minha própria tosse — séria —, e não me apetece ouvir mais não sei quantas vezes a conversa dos pretos, dos ciganos, dos "esquisitos", da filha que é a única que trabalha lá no supermercado, do homem com quem vive que é o único que trabalha lá na firma, e dela própria, que é a única que trabalha em outro trabalho que tem, quando não está na minha casa. 
Acho que o que mais me custou foi o Olhe.
Está há dezoito anos na minha casa e trata-me por Olhe. As pessoas têm nome.
- Olhe, eu hoje não posso fazer esforços, que tenho uma dor que vai desde o ombro até às pontas dos dedos.
E eu, cruel capataz, a pensar E mais tivesses para além das pontas dos dedos e também te doeria
Logo ontem, que ia solicitar-lhe delicadamente a porra de uma limpeza de pó, da lavagem do ecoponto, da lavagem da caixa da gata, da lavagem das varandas, de uma lavagem qualquer, desde que não fosse a mim própria!
Baixou em mim a fascizóide.
Mandei-a para casa. Disse-lhe que não me voltasse a aparecer doente e que metesse baixa. É para isso que as contribuições para a Segurança Social existem. Eu só não posso pagar-lhe ordenado quando falta, Segurança Social para quando ela falta e ainda a outra pessoa que faça o trabalho dela quando ela falta.
Não fui eu trabalhar, para ficar a fazer o dela. 

Ao fim do dia, mandou-me um texto daqueles que me iluminam a noite de estrelas, derivado aos derivados e a todo o conteúdo prosápio. 



Hoje mandou-me outra mensagem de teor íntimo, comunicando-me a baixa até sexta-feira. Então, começámos a distribuir tarefas de substituição por todas, num esquema machisto-matriarcal:
- Eu tusso.
- Eu falo sobre a minha filha.
- Eu fico agarrada ao telemóvel.
- E eu? Finjo que trabalho?

2 comentários:

  1. Anónimo1/3/16

    sem comentários, nem raios -x ! a análise à situação fica para mais logo!
    Beijinhos, Linda.
    Boa noite!

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    1. Ai, Mia, cada vez que vou a acalmar, tenho mais 30.000 tarefas para cumprir e entro outra vez em ebulição.
      Beijinhos :)

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