10/07/2015

Palmeirinha

Nós éramos tão iguais e somos tão diferentes.
Saídas da mesma barriga, no espaço de doze meses, calhámos Escorpião as duas. Devíamos ter nascido no mesmo dia, só se estragava uma data. 
Andávamos sempre à solta. Ela nasceu aos 39 e eu aos 40 anos da nossa mãe.
Vestíamos o que queríamos, éramos tão foleiras. Mas não penteávamos o que queríamos, que foleiras que éramos.


Que grande merda de penteado a que nos sujeitavam a ambas. Mesmo sendo conhecida, na escola, por Palmeirinha, alcunha tão mimosa, eu detestava o penacho. E ela também. 

Teria eu quatro e ela cinco anos, era Verão e íamos receber a visita da nossa avó, que vinha do Porto, onde morava. Levou-nos a nossa mãe a um cabeleireiro, para aparar a melena a toda a volta da árvore que nos encimava as cabeças, e também as ramagens dela, para que não ficassem tão grandes, que as pontas tocassem na cabeça. Aquela coisa tinha um preceito com requintes — e nunca se viu uma palmeira com os ramos no chão, a não ser agora estas que morrem que nem tordos. Mas as nossas nunca foram atacadas pelo escaravelho vermelho, para mal dos nossos pecados, os tais que se têm aos quatro ou cinco anos. 

Ela esteve atenta à tesoura da Dona Maria José, artista da naifa cabeleireira, mas, como sempre que a iluminava uma ideia brilhante, manteve-se calada e quieta, congeminando um plano infalível, que nos libertasse às duas do peso da árvore maldita no topo das nossas caixas da imaginação, que, pelos vistos, já era alguma. E fértil. 

Não consigo lembrar-me, mas lembro-me, à custa de tanto me ter sido contado por ela, em gargalhadas que partilhamos — sozinhas, que ninguém mais entende — até hoje, de a ver sentada no chão, tesoura em punho, golpes certeiros, o mais rentes possível, pela base da palmeira. E de me ter sussurrado, Também queres? Anda cá. E eu, mana mais nova, a achar aquilo a nossa fuga de casa, a nossa libertação, o nosso Nirvana, a entregar-lhe o alto da cabeça, para que ela fizesse com a tesoura o melhor que achasse à aberração que me encimava o crânio. E ela, zás, rente, tesoura qual machado, abateu-me a maldita, que nem raízes me deixou, certamente. 

A nossa mãe não gostou, mas não havia tempo a perder, devido à aproximação da chegada da sogra, e, assim, nos levou, pela segunda vez no mesmo dia, às hábeis mãos da Dona Maria José, que nos recebeu de boca franzida, colocada de lado, em sinal de desaprovação e desapontamento pelo estrago feito ao seu trabalho. E refê-lo o melhor que sabia, e que era muito. Saímos do salão, que era assim que se chamava à sala de desbaste na época, de cabelos muito curtinhos, palmeirinhas quase só o toco do elástico, e caras de anjo maléfico.

Já em casa, levadas pela decisão irrevogável de nos livrarmos do impertinente penteado, pegámos cada uma na sua tesoura, e cortámos o toco de palmeira mal plantado, tão rente, que dele sobrou apenas um nada, e, no lugar, para que não ficasse mesmo nada, deixámos uma pelada. Talvez para que o resto da cabeça não ficasse desigual — cheias de sentido estético e preocupações de proporção —, cortámos rente outras zonas de cabelo, de maneira que ficámos malhadas, de tantas peladas plantadas no couro cabeludo, agora couro careca. 

A nossa mãe não gostou, ralhou o que entendeu ralhar, mas, cada vez mais pressionada pela chegada da sogra, levou-nos, pela terceira vez naquele dia, ao cabeleireiro. A Dona Maria José recebeu-nos de boca franzida e, desta vez, o sobrolho também, e proferiu: 

- Agora, pouco ou nada lhes posso fazer, a não ser rapar o cabelo todo, e isso não faço. Fossem elas minhas filhas e levavam a tareia da vida delas.

Não éramos, é certo. Mas levámos a tareia das nossas vidas, espaçada no tempo, ao longo do dia: de cada vez que a nossa mãe olhava para nós, lembrava-se das palavras da mestra tesoureira, e lá vinha, cega, para mais umas palmadas nos dois rabos. Foi muito cansativo. Mas muito bem feito.

Para que se perceba a dimensão do estrago, isto deu-se em Junho. Em Setembro, nas termas, as pessoas ainda passavam por nós e exclamavam Ai, coitadinhas!, pensando que tínhamos tinha.

14 comentários:

  1. Hahahahahahahahahahahahahaha.
    Marafadas mas enfim, de rabo alçado.
    Muito bem! Qué lá isso de deixar crescer ramos (e macacos) no sotão.
    (Delicioso)

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    1. Eu não te dizia ontem? Rabo alçado!
      Nada, para o sótão só vai tralha, e é para ficar trancada para sempre, até vir o pessoal do lixo, que nos carregue, como o diabo.
      (Obrigada, Uvy. Éramos tão cabrinhas.)

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  2. Obrigada, fizeste-me rir a valer.

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    1. Obrigada eu, por essa confissão tão saborosa :)

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  3. Anónimo10/7/15

    ...e a palmeira? Não voltou?

    :)

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    1. Não, nunca mais! O nosso temor de voltar a apanhar seria inferior ao temor da nossa mãe de que repetíssemos a façanha :)

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  4. Sumário executivo do que apetece dizer: Magnífico!

    Boa tarde, LP :)

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    1. E está dito! Resta-me agradecer, cheia de contentamento.

      Boa tarde, Xilre :)

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  5. Tive eu e minha prima, tb muito juntas, um momento de tesoura assassina, Nós duas padecíamos do mesmo mal, uma franja horrorosa, que parecia que era colocada um tigela para ela ficar tão redondinha. um dia olhamos uma para outra, em jeito de querer ajustar as pontas da mesma, corta-mos um pouco aqui, outro pouco acolá, e fomos cortando até acharmos que estaria ordeira, quase simétrica.Quando nossas mãe nos avistaram, quase que lhes deu um piripaco de tão pouco cabelo nos restava a tapar a testa.
    Andamos uns belos meses, de bandolete, tapando a zona afectada, dando tempo ao novo cabelo!

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    1. Que libertação tão boa. Nós nem nunca tivemos complexos de andar meses naquela figura. Ainda quisemos acrescentar uns óculos sem vidros, que cravámos a uma prima, porque tínhamos o desejo de usar óculos!

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  6. Boa escrita, gostei do blog

    http://oshomensnaosaotodosiguais.blogspot.pt/

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    1. E eu do título do teu :)
      Vou espreitando, ok?

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  7. E ainda não tiveste uma réplica de comportamento "desviante" aí por casa? :P :P

    Beijos, menina rebelde de toco de palmeira. :)

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    1. Só uma, que é doida, e pendura-se de tudo.
      Até me pergunta como. Parecem uns anjinhos, ao pé do que nós éramos :)

      Beijos, menina poetiza. :)

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