26/09/2024

Afinal ela fala tanto

O silêncio dela durou exactamente três meses e dez dias. Hoje, enquanto fazia duas malas — visto que vou correr o país de Norte a Sul no próximo domingo, rali que leva o tiro de partida amanhã (eu sei que não há tiros nos ralis, era uma metáfora) —, encontrei o anel que procurei durante uma infinidade de meses. Aquelas situações em que às tantas já procuramos onde é impossível estar — no armário dos medicamentos, debaixo de uma cómoda que tem poucos centímetros de altura entre o chão e o início da coisa (teve que ser com uma régua de um metro e meio, que, ainda que me espalmasse contra o chão, não conseguia ver para lá de onde o sol se põe), em cima do frigorífico, dentro das minhas narinas, na gaveta dos collants, eu sei lá, menina — e nada de anel. Tinha-a avisado que o anel ia aparecer, nem que eu tivesse que meter uma retroescavadora dentro do lar e arrebentar cu parquê e cus azulejos. Sacudiu os ombros, pois andava a amarrar o bode, e eu virei-me para o lado que durmo melhor. Claro que a culpa ia morrendo solteira, como sempre, e então, “Terá sido uma das gatas?”, que são quem tem as costas mais largas do lar, tipo Schwarzenegger.
Normalmente, quando ando à pesca de alguma coisa, primeiro vejo onde sei que ela estava, depois pego num objecto com o mesmo peso e tamanho, atiro ao chão e verifico a área que ele alcança. Se não encontro, parto para os locais improváveis e só depois os prováveis. A experiência diz-me que as distracções nos levam a deixar as coisas em lugares que nem o diabo acredita. Esgotei todos e nada de anel. Encontrei-o hoje, numa bolsinha onde já tinha procurado vinte vezes. Assim que lhe disse, a mulher desatou a língua há muito presa (pouco tempo para mim, o silêncio é-me tão caro que me arruino) e contou-me a história das unhas dos pés dela, que eu já sabia de trás para a frente. Apeteceu-me dizer: “Estava a gozar, o anel continua desaparecido. Mas também posso contar a história de um furúnculo que vi uma vez numa pessoa”. Chata.

24/09/2024

O vidro desceu, o lodo escorregou, a terra tremeu, a mulher correu e não ganhou nenhuma medalha. Tem sempre que brigar com um espanhol, também

Este ano já fiz muitas férias, mas assim uma semana de cada vez. Será a vantagem de ser dona do meu (extremamente belo e bem feito, obrigada mãe, obrigada pai, aquilo na Av. Roma correu bem) (eu fui concebida na Av. Roma, n.º 40) nariz: ganha-se malíssimo, quase não dá para os alfinetes (cinco euros uma caixinha com uns vinte), mas faço a mala e ponho-me na alheta (destino de sonho) em menos de um fósforo. 

Fiz Marbella, fiz o Açor, fiz Islantilla e ainda vou estender as peles para o Algarve para a semana. Entretanto, ainda tenho um casamento lá onde a nação foi fundada. Ninguém merece, fazer no mesmo dia como passageira uma viagem de quatrocentos quilómetros e depois pegar na roda, já como condutora, e marchar para o sul, mais uns trezentos. Mas tudo pelo bem de mim. Mas alguém ainda casa? Não percebo a cena destes dois. No casamento dos pais do noivo, apanhei uma caganeira intoxicação alimentar que me meteu na cama por uma semana em plena época de exames, só a gregoriar, parecia o canto gregoriano, mas em bolçado. 

Islantilla foi giro. Não houve nada que não nos tivesse acontecido. No final da viagem, um dos vidros de trás do carro abriu e já não fechou. Eu fui, durante quinze quilómetros, a rebentar os tímpanos e a agarrar o cabelo, parecia que íamos num cabriolet. Não houve truque nem traque que movesse a m. do vidro. Ainda meti a manita naquele buraco de onde ele sai, mas só consegui fazer entrar até ao início dos dedos e não o alcancei nem com as unhas. Desistimos e fomos para a praia, deixando o carro num parque exterior. À noite, deu-me uma epifania e resolvi que devíamos tentar uma última vez algo que já havíamos tentado: motor ligado e carregar no botão da própria porta. Muito impante e cheia de mim, disse a cônjuge: "Liga o motor". E assim o vidro subiu. Senti por instantes que faço falta neste mundo. 

No dia seguinte, de novo na praia, entrámos no mar e começámos imediatamente a escorregar, como se tivéssemos uma pista de gelo debaixo dos pés, o que nos pareceu impossível. Agarrámos os ombros um do outro e começámos a rodar e a gritar: "Agarra-te!", "Agarra-me!", "Não te deixes cair, senão eu também caio!", até que, depois de uma figura viralizável em qualquer rede, saímos dali, mas cônjuge batera com o pé numa pedra (ainda bem que não caímos, caso contrário era com a minha cabeça que a pedra vinha ter) e sangrava. Dirigiu-se ao Salvador, que era um petiz para aí com dezoito anos e que, muito divertido, lhe contou que, só naquela manhã, já tinha feito seis pensos. Parece que em Espanha não há bandeirolas para delimitar zonas perigosas, põem uma criança a colar pensos nas pessoas crescidas e já está. 

Entrementes, a Terra tremeu. Era de noite, a pessoa soube imediatamente o que estava a dar-se. Disse a cônjuge, que dormia placidamente e que duvidou da minha palavra até que lhe perguntei por que raios tremia a cama, "Ah, pois é". [Suspiro profundo.]

Fomos três vezes ao ginásio e nenhuma ao spa. O máximo que corri foram dois quilómetros e não sei como não saí dali em ombros, dado que exerci um esforço demasiado tremendo. 

Para não variar, briguei com um espanhol, que, ao contrário do outro (que tinha toda a razão), tinha metade da razão. Mas nem vou contar, que isto já vai longo e eu quero almoçar. 




Descreve o teu estado de espírito ou de alma ou de fantasma, tanto faz

Ando um bocado embezerrada comigo mesma: outro dia, porque o telefonito me alertou de estar enfartado, resolvi dar-lhe espaço, como em qualquer relação saudável, e comecei pelos emails. Cliquei aleatoriamente num daqueles que toda a gente recebe, talvez Perfumes e Companhia ou outra vaidosice qualquer, onde nunca entro, dizia lá duzentos e eu vai de apagar tudo. E assim fiz com todos os que eram Temu e outras chinesices, aquilo foi apagar até me doerem os dedos, e depois, não contente com o feito, ainda fui à caixa dos apagados — que eu acho que ocupa imenso espaço, quanto mais não seja sideral — e apaguei como uma bombeira desvairada. Pum. Foi quando percebi que tinha apagado os mails dos últimos dois anos. Todos, de todas as contas: desta, do profissional, do hobby e a do de pessoa normal. O que mais me custa? A troca de mails com as minhas bloggers mais queridas, de que nem cinzas restaram, ao menos para que tentasse reconstruir este passado que, apesar de constituir os anos mais aflitos da minha vida, foi e está a ser também uma fase muito feliz. Não sou bipolar, meu povo, sou apenas a pessoa mais normal que conheço (no que a minha terapeuta concorda, portanto tenho declaração carimbada). Ter terapeuta não faz de mim anormal, simplesmente preciso, como uma perna partida precisa de ortopedista. E eu fiquei um bocado confusa quando soube que estava a correr para as portas da morte, com pensamentos do género e por esta ordem: "Ainda bem que não foi com nenhum deles"; "Que maçada, nunca poderei dar medula à minha irmã, se ela precisar"; "Que aborrecimento, nunca mais poderei dar sangue". Sou um poço, um vulcão, uma cratera de abnegação. 



07/09/2024

Ela já não fala tanto (e que Deus a conserve assim, como um pickle, muitos anos e bons)

Não sei por que diachos fui embora deste modesto espacinho e não voltei mais cedo, mas acredito piamente que hoje para aqui ando, cheia de entusiasmo a bater as teclas do meu ruidoso teclado, e sou bem fulana para me evadir e só voltar daqui a dois meses, quando tiver assunto. Não que hoje o tenha, mas preciso prementemente de registar aqui dois ou três factos da minha existência. 

Há aqui um que vai, com certeza, deslocar-me placidamente para a categoria das elitistas classistas, mas, já em minha defesa antes que venha de lá a primeira pedra, tenho a dizer que eu sou a entidade empregadora nesta relação. 

A que falava muito calou-se para sempre, isto há coisa de cerca de um mês e meio, daí que já não espere que a voz lhe regresse. Deu-se que esteve de férias duas semanas e, no dia anterior a proceder a sua rentrée, à noitinha, então não é que me manda uma mensagem a dizer-se doente há muitos dias e que não poderia trabalhar nos dias seguintes? Saltou-me logo a mola, que está sempre mal apertada, e respondi-lhe que estava farta das semanas inteiras de férias que a pessoa fazia, com prejuízo do meu trabalho, do meu descanso e, sem querer pôr um peso pesado na argumentação — que não pus —, já para não falar na minha saúde. Madame Dona Senhora ainda me devia, e deve, dois dias de trabalho, que me pediu para tratar de uns assuntos, que eu lhe concedi imediatamente sem questões (não fosse ela desatar a língua e eu, sim, ter que meter baixa enquanto entidade patronal, pois, como se sabe, ela seca-me até eu ficar em modo esqueleto), ela a insistir para tratar de uns assuntos e eu calada que nem um rato, já me cheirava a gato por todos os lados ["Queres ver que esta me vai pôr a trabalhar de graça para ela, para além de lhe fornecer duas abébias seguidas?"], nunca soube que raios de assuntos queria tratar ela, pois normalmente são rixas de bairro e eu já dei para esse peditório. Aproveitei e consultei o mapa de férias dela, ilegalíssimo porque eu não sou tida nem achada na escolha dos dias, e descobri para lá uma semana em Novembro, inteirinha, em que me iria faltar porque faz anos nessa sexta-feira. ["Ai, que maçada, tenho ao meu serviço há vinte e sete anos a rainha de Inglaterra e só hoje é que descubro? Naturalmente que Sua Majestade Venerandíssima precisa de uma semana para comemorar os seus cinquenta anos!"] Bumba, foi a talhe de foice, cortei a segunda e a terça dessa semana, para que me devolvesse então os dois dias que usou para tratar de assuntos.

Então não querem saber que Votre Majestée anda amuada comigo desde aí? E como é que eu sei? Fácil: entra de manhã, zurra "Bom dia", não responde a nada do que lhe digo, às minhas perguntas vai um "sim" ou um "não", no máximo, e suspira. E tosse. Constantemente. Quando não é uma, é outra. Mas eu tusso mais alto, literalmente: efeito secundário de uma droga com que me drogo. Mas ninguém a bate a suspirar. "Ai" quando eu passo, "haaai" quando pousa roupa passada em cima das camas (tem que se inclinar, compreendo que é chato), "haah" quando tira um tacho do armário, toda uma série de espasmos que já ponderei seguir-lhe os passos, para ver se comigo também resulta assim. 

Não é com vinagre que se apanham moscas, lá dizia o dono da "Dum-dum". E eu sou uma mosca. Chorem-me, expliquem-me o que lhes vai na dorida alma, solucem-me, funguem-se-me dos narizes, escrevam-me uma carta que me faça largar uma lágrima e cinco gargalhadas, que me levam até ao raio que já me partiu. Agora bezerras? Amuanços? Nem noto. Ando numa alegria que a endoidece. Trabalho mais e melhor, saio de casa sem alguém me perseguir até ao elevador com seus assuntos de m., já não tenho que saber quantos filhos tem cada irmã das dela e saber os nomes e datas de nascimento deles de cor (nunca consegui decorar, sei que há um Daniel e uma Daniela, mas depois é todo um sortido de Igores que uma pessoa rebolava os olhos e arredondava a saia de cada vez que ela se especava porque eu desacertava as Soraias com os Telmos). 

Chiu. O silêncio é de ouro.